"O processo de modernização significou um processo de autonomização cada vez mais acentuado da economia que se tornou fim em si mesma e de predominância de uma liberdade privada sem referências éticas e sem responsabilidade coletiva"
O artigo é de Manfredo Araújo de Oliveira.
Manfredo Araújo de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universität München Ludwig Maximilian de Munique, Alemanha, mestre em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, escritor e professor no programa de mestrado/doutorado de Filosofia da Universidade Federal do Ceará/UFC.
Manfredo Araújo de Oliveira | Foto: Arquivo Pessoal.
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Nas sociedades pré-modernas, as questões éticas foram postas no contexto de relações humanas próximas e recíprocas. Na modernidade, a ciência e a técnica deram à ação humana um alcance de dimensão planetária e ampliaram, com isso, o horizonte de sua responsabilidade. A intervenção tecnológica transforma a própria estrutura da ação humana de tal modo que tanto a biosfera do planeta como a natureza, enquanto um todo, de agora em diante, são envolvidas no agir humano e em sua responsabilidade.
Tal postura pressupõe uma dicotomia radical entre ser humano e natureza e compreende a ciência e a técnica como instrumentos de domínio sobre a natureza. Esta é a raiz da civilização técnico-científica. Cresce, cada vez mais, a assimetria entre a capacidade técnica de dominação e os padrões normativos aptos a regrar o processo civilizatório daí decorrente. Articula-se, assim, o projeto de emancipação tecnocrática da modernidade, cuja característica fundamental é ter transformado a técnica de meio no fim fundamental da vida humana.
A aporia básica desta civilização tecnológica se patenteia na terrível incapacidade de pôr um fim ao progresso calculável, destrutivo de si mesmo e da natureza: hoje temos consciência de possuir os meios técnico-científicos e industriais capazes de aniquilar a humanidade e todas as outras formas de vida sobre o planeta. Por essa razão, sabemos que estamos diante da possibilidade de nossa própria extinção. A configuração da relação entre os povos da terra passa por grandes transformações na medida em que está em curso um processo de articulação tanto de um sistema econômico em nível mundial através da inclusão de todas as sociedades no sistema de mercado, sobretudo nos mercados financeiros, que assumem a condução de todo o processo econômico, legitimado por uma teoria econômica que defende o mecanismo de mercado como a forma exclusiva de coordenação de uma sociedade moderna, quanto um processo de imbricação mundial da vida política e cultural.
Tal processo tem provocado uma piora nas condições de vida de milhões de pessoas: no relatório do Banco Mundial de setembro de 1999 se afirma que hoje 1,5 bilhão de pessoas sobrevivem com o equivalente a menos de um dólar por dia. Uma interpretação puramente econômica da globalização, segundo alguns analistas, é obra comum dos liberais ortodoxos e dos marxistas que só enxergam, no mundo, a ação de forças econômicas. Ora, nem mesmo as mudanças econômicas têm causas puramente econômicas, pois elas dependem também de decisões políticas e de renovações tecnológicas.
O pensamento liberal privilegia os aspectos econômicos e interpreta a globalização como uma consequência necessária da revolução tecnológica recente, que, aliada à expansão dos mercados, derrubou as fronteiras territoriais e eliminou os projetos econômicos nacionais. A afirmação mais polêmica dessa interpretação é que a própria globalização econômica promoveria uma homogeneização progressiva da riqueza e do desenvolvimento através da mediação do livre comércio e da liberdade completa de circulação dos capitais privados, o que conduziria a humanidade a um governo global e a uma democracia cosmopolita.
Para C. Furtado, a difusão dos valores dessa revolução tecnológica aprofundou o grau de dependência cultural das regiões periféricas: os avanços nas áreas de comunicação e de transporte exacerbam a tendência ao mimetismo cultural nas classes média e alta dos países periféricos. Trata-se de copiar os padrões de consumo e comportamento vindos do centro hegemônico. Além disto se difundiu a ideia de que se trata de um processo inexorável [1]: “Neste fim de século prevalece a tese de que o processo de globalização dos mercados há de se impor no mundo todo, independentemente da política que este ou aquele país venha a seguir. Trata-se de um imperativo tecnológico, semelhante ao que comandou o processo de industrialização que moldou a sociedade moderna nos dois últimos séculos”.
Tais processos foram possibilitados através de uma série de decisões políticas e acelerados pela nova revolução tecnológica, que fez da ciência e da técnica as forças impulsionadoras do novo paradigma de produção. O novo eixo da atividade econômica é a tecnologia da informação, que põe consequências para a vida humana: por um lado, provocou uma profunda transformação do trabalho, promovendo um enorme aumento da produtividade, acompanhado por mudança significativa nas relações entre capital e trabalho, o que levou ao desemprego estrutural uma vez que o trabalho vivo se torna algo que desaparece nas empresas que, em nossos dias, assumem a tecnologia de ponta; por outro lado, essa nova dinâmica do capital fez surgir uma competitividade exacerbada em nível internacional, o que, segundo C. Furtado, tem levado a uma desarticulação dos mecanismos que davam coerência aos sistemas econômicos nacionais e consequentemente a aumentar o hiato que separa as economias centrais das economias periféricas.
Essa reorganização do processo de produção e de trabalho, assim como os enormes impactos daí decorrentes no sistema de emprego rearticularam, também, a questão social: experimentamos um rápido crescimento tecnológico que resulta num grande aumento da produção de riquezas, com a diminuição dos custos das empresas provocada também pela diminuição da mão-de-obra, ao mesmo tempo em que aumentam igualmente a fome e a miséria que levam a uma desagregação social cada vez maior ou mesmo à morte de milhões de seres humanos, à disparidade na distribuição de renda e de riqueza e à ameaça da destruição da própria humanidade através ou de uma guerra nuclear ou pela exploração desenfreada dos recursos naturais.
Fala-se, hoje, por essa razão de uma “globalização da violência”, em que o arbítrio e o poder substituem o direito nas relações entre as pessoas e os povos, marcadas por um egoísmo individual e grupal crescente, pela criminalidade organizada, pelo comércio de armas, drogas e seres humanos, pelo terrorismo internacional, pela destruição do meio ambiente. O processo de modernização significou um processo de autonomização cada vez mais acentuado da economia que se tornou fim em si mesma e de predominância de uma liberdade privada sem referências éticas e sem responsabilidade coletiva.
De modo especial, para os países do Sul Global, a forma de globalização vigente com a progressiva liberalização dos mercados, com a nova concentração de capital através da fusão de grandes empresas através da transnacionalização e desregulamentação dos mercados, da financeirização global dos processos econômicos, da redução do papel do Estado na economia, da explosão das dívidas, do déficit na balança comercial, do estabelecimento da acumulação de riqueza como critério único de todas as decisões econômicas, sociais, ecológicas e políticas, tem significado, mais do que para os países desenvolvidos, o agravamento das desigualdades, decorrentes das diferenças qualitativas do trabalho, das competências e habilidades, da perda de prioridade das políticas de emprego, do abandono das políticas sociais, com uma forte diminuição, também, no primeiro mundo, da queda dos preços de seus produtos submetidos a uma grande concorrência em contraposição à subida de preços dos produtos das nações industrializadas, cujas empresas se tornam, cada vez, mais monopólios que forçam a subida dos preços, do crescimento real dos juros, da eliminação dos mecanismos regulamentadores do processo de produção e agravadas, ainda mais, pela incapacidade de adaptação aos novos padrões de produção da economia globalizada, como, também, do desemprego. Daí a pergunta inevitável, hoje, sobre o papel e a possibilidade do Estado Nacional democrático num mundo globalizado.
[1] Cf. FURTADO C., O Capitalismo Global, São Paulo: Paz & Terra, 2000, p. 26.