26 Junho 2025
Conflito fundiário marcado por ataques armados, incêndios e omissão estatal terminou com a entrega da posse oficial aos trabalhadores rurais sem terra de Novo Mundo
A reportagem é de Daniel Camargos, publicada por Repórter Brasil, 25-06-2025.
José Antônio dos Reis vive dias de ansiedade. Nas próximas semanas, vai colher os primeiros cachos do bananal que plantou com as próprias mãos: são 6.200 pés, com previsão de 300 caixas, cada uma com 15 quilos. “Outro dia mesmo fui à cidade com a minha esposa e comentei como a nossa vida mudou”, conta o camponês de 53 anos.
Nascido em Governador Valadares (MG), José rodou o país em busca de trabalho até chegar ao Acampamento Boa Esperança, em 2011, no município de Novo Mundo, no norte do Mato Grosso. Ali, permaneceu mesmo depois de despejos forçados, incêndios criminosos, ataques de pistoleiros e anos de incerteza. “O trem não foi bonito não. Foi uma luta muito sofrida”, resume.
No início de junho de 2025, após mais de uma década vivendo no local, José recebeu o contrato oficial de posse da terra — o CCU (Contrato de Concessão de Uso), emitido pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Ao todo foram cem famílias que tiveram, enfim, o direito formal à terra onde vivem e produzem.
O documento encerra uma disputa fundiária que se estendia há duas décadas. A área de 14,7 mil hectares, conhecida como Fazenda Araúna, era requisitada pela família do médico e fazendeiro Marcello Bassan, que morreu em 2007, em Campinas (SP). A Justiça, contudo, entendeu que a propriedade ficava dentro de uma área da União, destinando o local para a reforma agrária (entenda mais abaixo).
A vida melhorou, segundo José, porque agora ele consegue plantar o que colhe, sem a ameaça iminente de um despejo. Com a venda da produção, tem dinheiro para ir à cidade complementar a despensa com arroz, açúcar, sal e outros poucos alimentos que não produz em seu sítio.
Apesar da vitória dos acampados, a história do Boa Esperança é um exemplo da violência no campo no Brasil. Desde 2005, as famílias ocuparam a Gleba Nhandu, onde está situada a fazenda, e se tornaram alvo constante de ataques. Foram despejadas, expulsas por jagunços armados e perderam suas casas em sucessivos incêndios.
Em 2015, pistoleiros invadiram o acampamento, atearam fogo em 80 barracos de madeira e destruíram lavouras e criações. No ano seguinte, 12 homens fortemente armados chegaram ao amanhecer, atiraram contra os barracos, ameaçaram de morte e incendiaram as poucas posses dos agricultores, incluindo carros, motos, colchões, fogões e até a igreja da comunidade.
As marcas dessa violência eram visíveis quando a Repórter Brasil esteve no assentamento, em 2020. Carcaças retorcidas de veículos queimados, panelas perfuradas por tiros e castanheiras gigantescas tombadas pelo fogo compunham uma espécie de museu a céu aberto da violência fundiária brasileira.
Mesmo após a Justiça Federal, em setembro de 2019, reconhecer que a área da Fazenda Araúna pertencia à União e deveria ser destinada à reforma agrária, o conflito persistiu. O juiz federal Andre Perico Ramires dos Santos autorizou o uso de força policial federal e estadual para retirada dos grileiros. Ainda assim, o Incra se recusou a cumprir a decisão durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
À época, documentos assinados pelo então superintendente do Incra no Mato Grosso, Ivanildo Teixeira Thomaz, deixaram explícita a ordem superior de suspender novas desapropriações sob justificativa orçamentária. Thomaz era aliado político do governo Bolsonaro.
Alegava-se que o cumprimento da decisão poderia causar “prejuízos severos ao erário”, caso fosse revertida em instância superior, citando supostas benfeitorias que o fazendeiro teria feito na propriedade.
Enquanto o Estado não agia, a violência se intensificava. Em 2020, novos ataques ocorreram. Em agosto, um incêndio criminoso devastou barracos e plantações, matando animais. Em setembro, outro fogo consumiu 90% da área ocupada pelas famílias. Os acampados denunciaram que as chamas partiram da sede da fazenda e acusaram os herdeiros de Bassan.
Eles relataram ainda tiros disparados contra os barracos e ameaças de massacre enviadas por mensagem de áudio: “se eles não saírem, vai acontecer um piseiro” — gíria usada na região como sinônimo de chacina.
À época, o advogado da família Bassan disse que as acusações eram falsas e que a fazenda tinha sido queimada pelos próprios acampados, a quem ele atribuiu os episódios de violência (leia a íntegra das respostas). O advogado também negou que a família tivesse contratado pistoleiros, queimado carros e ameaçado moradores.
Em meio ao terror, as famílias resistiram. Plantavam hortaliças, mandioca e milho e criavam pequenos animais para subsistência. “É o segundo barraco meu que queimam”, desabafou Renato Antônio Reis à Repórter Brasil no final de 2020. “Perdi muita coisa que já estava quase na hora de colher: pepino, melancia, abóbora”.
Na reportagem publicada em dezembro daquele ano, Suzana Cássia de Moura aparecia entre as acampadas que tentavam se reerguer após mais uma série de ataques. Havia perdido o barraco em um incêndio e replantava o jardim sobre as cinzas.
Nascida no Paraná, migrou com os pais ainda criança para o Mato Grosso. Desde 2018 está no Boa Esperança, onde viveu o auge da violência. “Sofremos demais”, lembra.
Cinco anos depois, sua realidade é outra: mora com o filho em uma casa de madeira, cercada por árvores, hortaliças e flores. “Tem água encanada, horta e plantações grandes que cultivei nesses anos. Estou feliz demais”, conta. Agora busca recursos para melhorar a moradia, que ainda não tem piso. Em uma das fotos enviadas à reportagem, ela sorri ao lado do filho diante do novo lar. “Com muita fé e esperança conseguimos nossa terra tão sonhada”, escreveu.
A virada só veio em dezembro de 2023, quando a AGU (Advocacia-Geral da União) conseguiu reverter o último obstáculo judicial no STF (Supremo Tribunal Federal). O relator, ministro Cristiano Zanin, julgou improcedente uma reclamação apresentada pelo espólio de Marcello Bassan, que buscava impedir a posse das famílias.
Com o caminho livre, o Incra lançou em 2024 o edital de seleção dos beneficiários. No início deste mês, os contratos de posse foram finalmente entregues. Com o documento em mãos, os assentados poderão acessar crédito rural, programas de habitação, assistência técnica e políticas públicas de comercialização.
A vitória do Boa Esperança, contudo, é exceção num cenário da reforma agrária travada no Brasil. Segundo dados obtidos pela Repórter Brasil, ao menos 145.100 famílias seguem acampadas à espera de terra, espalhadas por mais de 2 mil acampamentos.
O governo afirma ter assentado 71 mil famílias em 2024, mas o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) contesta: alega que apenas 5.800 receberam lotes novos. O restante corresponde a processos de regularização de áreas já ocupadas, sem ampliação real da oferta de terras.
No Assentamento Boa Esperança, a rotina de José já mudou. Além do bananal, ele planta hortaliças e cria gado leiteiro. Toda terça-feira, um caminhão busca a produção de todos os assentados. Os legumes e verduras são destinados para a merenda das crianças de oito escolas da região, nas cidades de Novo Mundo e Guarantã do Norte.
A reportagem de 2020 sobre a violência contra o acampamento é encerrada com a história de uma criança, então com 8 anos, que tinha ficado encantada ao ver uma garrafa pet congelada, que um apoiador dos acampados havia levado.
“Isso é gelo, papai?”, perguntou. Desde que nasceu, a criança havia presenciado vários despejos, viu o barracão que vivia ser queimado, mas não conhecia o gelo.
“Hoje a gente leva uma vida digna”, diz José. Ainda sem energia elétrica, as famílias usam placas solares, mas aguardam a chegada da rede convencional, prevista para agosto. “Melhorou muito. Já dá para ver televisão e beber água gelada”, comemora.