"Pessoas trans não querem ocupar o espaço de pessoas Cis, querem ter o direito de existir, de habitar um mundo completamente hostil e violento com sua existência".
O artigo é de Alexandre Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.
“O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para a deliciosa satisfação do Uno primordial, revela-se aqui sob o frêmito da embriaguez.” — Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia (1872)
Da citação filosófica de Nietzsche, extraímos um dos conceitos mais sublimes de sua filosofia: a potência de criação da própria realidade, a vida como obra de arte. É um valor intrinsecamente emancipatório e libertador do “humano”. Seguindo esse raciocínio, diante de uma realidade opressiva que te rodeia, tu és capaz de criar teus próprios valores, libertando teu corpo das opressões de terceiros.
Pessoas trans são hoje vítimas de valores morais cristalizados por uma sociedade patriarcal pré-estabelecida. É extremamente difícil, se não impossível, que essas pessoas encontrem um lugar ao sol na sociedade capitalista ocidental — realidade da qual vos falo.
O Brasil é consistentemente apontado como o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Essa triste realidade tem se mantido por anos consecutivos, conforme dados levantados por organizações como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
A violência é frequentemente marcada por extrema crueldade e atinge, majoritariamente, mulheres trans e travestis — jovens, negras e empobrecidas. Além dos assassinatos, a comunidade trans no Brasil enfrenta diversas outras formas de violência e discriminação, como agressões físicas, ameaças e barreiras no acesso a direitos básicos, como emprego, moradia e saúde. A subnotificação desses casos também é um problema grave, indicando que os números reais podem ser ainda maiores.
Essas pessoas são violentadas simplesmente por serem quem são e por ousarem pertencer às comunidades às quais pertencem. A igreja e as religiões como parte da sociedade têm um papel político importante nessa disputa contra os ultraconservadores. Pessoas trans também tem o direito de praticar sua fé e suas crenças religiosas. Acolher essas pessoas ao invés de excluí-las é absolutamente fundamental. Acompanhe essa discussão aqui no site do IHU, por meio do evento “LGBTQIA+ e a Igreja: há espaço para todes?”
A extrema-direita e movimentos antidireitos, fundamentalismo religioso, “CISativistas” essencialistas e transexcludentes do movimento feminista radical (TERFs) — sendo uma das mais altas expoentes a escritora da série Harry Potter, J.K. Rowling, que, dentre outras frases, afirmou: “Quando você abre as portas de banheiros e vestiários para qualquer homem que acredita ou sente que é uma mulher... então você abre a porta para todos e quaisquer homens que desejam entrar. Essa é a verdade simples”. Ou mesmo a famosa frase: “Pessoas que menstruam. Tenho certeza de que costumava haver uma palavra para essas pessoas. Alguém me ajude. Mulheres? Mulheres? Mulheres?”. Essa fala foi amplamente criticada por muitos de seus próprios seguidores, pois desconsidera homens trans e pessoas não binárias que menstruam, além de mulheres cisgênero que não menstruam. Pessoas trans não querem ocupar o espaço de pessoas Cis, querem ter o direito de existir, de habitar um mundo completamente hostil e violento com sua existência.
Na história dos pensamentos extremistas, sempre se buscou bodes expiatórios (como o povo judeu para os nazistas) para depositar todo o ódio e o ressentimento nietzschiano. Gera-se, a partir da premissa transfóbica, todo um pânico moral que culmina na limpeza social, na marginalização desses grupos excluídos e numa tanatopolítica foucaultiana — ou seja, a política da morte.
Quando o Estado e a sociedade não matam pessoas trans diretamente, buscam formas de negar sua existência e sua vida, para que morram do mesmo jeito: sem trabalho, sem educação, sem saúde, sem segurança. A pessoa trans é um homo sacer da vida moderna, como preconiza Giorgio Agamben.
A pergunta que fica é: quando Chico Buarque escreveu Geni e o Zepelim, será que ele estava tratando de uma mulher cis ou de uma mulher trans? Afinal “essa dama era Geni... mas não pode ser Geni!”