06 Junho 2025
Como o discurso empresarial esconde a precarização do trabalho e o fracasso de um projeto de Nação
O artigo é de Márcio Pereira Cabral, publicado por Sul21, 04-06-2025.
Márcio Pereira Cabral é psicanalista, professor, mestre pela UFRGS, diretor do Instituto SIG – Psicanálise & Política e do Instituto E Se Fosse Você?
No Brasil, até as imagens que se tornam símbolos são alvo da disputa pelo sentido. Recentemente, a Folha de S.Paulo publicou uma reportagem que reencontrava, décadas depois, a menina sem-terra eternizada em uma das fotografias mais conhecidas de Sebastião Salgado. Uma criança de pés descalços, segurando uma enxada maior que ela, olhar desafiador, cravada no chão da luta pela reforma agrária. A foto rodou o mundo e se tornou ícone da resistência das pessoas empobrecidas desse país.
Mas a matéria tenta, de forma sutil e perversa, alimentar uma mentira conveniente: a de que aquela menina, assim como tantas outras, teria sido desmobilizada pela chegada do Bolsa Família e de outros programas sociais. Como se a proteção social, em vez de garantir dignidade, tivesse enfraquecido o desejo de lutar.
O que essa narrativa omite, porque não interessa que apareça, é que aquela menina não deixou de lutar. Ela segue na luta, ainda hoje, batalhando pelo direito de conquistar seu lote de terra, defendendo a reforma agrária e acreditando, como acreditava quando criança, que este país só será justo quando quem trabalha a terra tiver o direito de viver dela. Sua história não é de rendição. É de resistência e de continuidade na luta, enfrentando o mesmo país que insiste em negar à maioria o direito mais elementar: o de existir com dignidade.
Essa tentativa de reescrever a história da menina sem-terra não é uma exceção. Faz parte de uma operação ideológica mais ampla que se repete em discursos de setores empresariais, prefeitos, governadores e parte da imprensa, que tentam transformar o Bolsa Família no grande culpado pela crise da empregabilidade no país. Um discurso que volta com força toda vez que o debate sobre trabalho, salário e dignidade reaparece no centro da vida nacional.
O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, tem se posicionado como o principal porta-voz dessa tese, defendendo abertamente que o Bolsa Família desestimula o trabalho e aprofunda o “apagão” de mão de obra. Sua fala se tornou uma espécie de matriz ideológica que se replica na voz de prefeitos, lideranças empresariais e associações patronais em todo o país. Essa tese ainda encontra generosa amplificação em colunas, editoriais e reportagens da grande mídia corporativa, que a tratam como um fato, e não como a falácia que é.
A fórmula é conhecida e eficiente. Se há vagas na indústria, na construção civil ou no comércio que não são preenchidas, a culpa, dizem eles, não está nos salários miseráveis, nas jornadas desumanas nem nas condições precárias de trabalho. Está na pessoa pobre, que agora, segundo essa tese, “prefere viver de auxílio”.
É uma mentira que cumpre um papel muito claro. Preserva intacta a lógica da exploração e absolve o mercado de qualquer responsabilidade pela destruição do trabalho digno no Brasil.
O problema não é, e nunca foi, o Bolsa Família. O problema é um modelo de país que naturalizou que milhões de pessoas trabalhem até adoecer, para ganhar salários que não pagam nem o básico da sobrevivência.
E há dados concretos que desmontam essa farsa. Um estudo publicado na revista The Lancet Public Health revelou que o Bolsa Família evitou mais de 700 mil mortes e cerca de oito milhões de internações no Brasil desde sua criação. Os efeitos foram especialmente significativos entre crianças menores de cinco anos e pessoas idosas com mais de 70 anos, justamente as mais vulneráveis da população.
Esse número impressiona por si só. Mas ganha uma dimensão ainda mais perturbadora quando comparado ao número de mortos pela covid-19 no Brasil. São números equivalentes. O mesmo número de vidas perdidas durante uma das maiores tragédias sanitárias do século foi o número de vidas preservadas por uma política pública de proteção social. A diferença é que, neste caso, as mortes foram evitadas, não televisionadas.
Ou seja, o programa não apenas redistribui renda. Ele salva vidas. Ele protege quem o sistema excluiria. Ele é, na prática, uma política de saúde pública, de proteção social e de dignidade mínima. Atacar o Bolsa Família, portanto, não é apenas um erro de análise econômica. É um ataque direto à vida.
Diante desse cenário, não surpreende que milhões optem pela informalidade. E aqui está outro ponto que esse discurso esconde. A informalidade seduz. Porque, diante de um mercado formal que oferece apenas desgaste, humilhação e jornadas exaustivas, a informalidade aparece como a promessa, ainda que frágil, de recuperar o próprio tempo.
Se é para ganhar pouco, que ao menos se escolha quando, onde e como trabalhar. Vender no aplicativo, fazer bicos, empreender na precariedade. Tudo isso surge como forma de escapar da opressão direta do emprego formal.
Mas essa liberdade é aparente. Na informalidade não há rede de proteção. Não há férias, nem descanso remunerado, nem aposentadoria. A doença, o acidente, o envelhecimento ou qualquer imprevisto revelam que essa autonomia é uma ilusão. A vida se torna instável e desamparada.
Quando gestores, prefeitos e vozes públicas falam em “falta de mão de obra”, estão, na verdade, reagindo à recusa cada vez mais evidente de aceitar trabalhar em condições que negam a vida.
Porque a verdade é simples. O que ruiu não foi a disposição para o trabalho, mas o pacto simbólico que dizia que trabalhar garantiria dignidade. Hoje, o trabalho é, para milhões, fonte de sofrimento, adoecimento, exaustão e frustração. A promessa do mérito desfez-se sob o peso da realidade.
Essa recusa aparece de forma difusa, silenciosa e até solitária, mas também coletiva. Em muitas categorias, há um grito contido que questiona: vale a pena trabalhar para adoecer?
A narrativa que culpa o Bolsa Família é, antes de tudo, um deslocamento calculado. Transfere a responsabilidade pela precariedade de um sistema inteiro para quem sobrevive à margem dele. Em vez de discutir salários, custos de vida, destruição de direitos e ausência de projeto nacional, ataca-se o elo mais frágil da cadeia.
Mas o que esse discurso não suporta é o surgimento de algo incontrolável. O desejo de viver. Desejo que não se contenta em ser funcional. Desejo que quer tempo, vínculo, sentido. Desejo que não aceita ser capturado por um sistema que promete tudo e entrega esgotamento.
Se há uma crise, ela não é do Bolsa Família. É da ausência de um projeto que una soberania, justiça social e reconstrução do pacto coletivo em torno do bem viver.
O Bolsa Família não paralisa ninguém. Ao contrário, ele protege, resiste, sustenta vidas que o mercado e o Estado muitas vezes descartam. É trincheira num país onde a fome ainda é política de controle.
E, se há algo que a história da menina sem-terra de Sebastião Salgado nos ensina, é que ela não foi desmobilizada. Ela segue lutando pelo direito de ter sua terra, por dignidade e por um futuro coletivo. Sua luta segue sendo a luta de milhões. Porque o problema nunca foi o Bolsa Família.
O problema é um Brasil que, até hoje, acha legítimo exigir que seus filhos escolham entre fome e exploração.