31 Mai 2025
"Adão não é um nome próprio, mas em hebraico é ha-’adam, isto é, 'o Homem' em si mesmo, a humanidade que está em nós, em nosso pai, no filho e em todos os nossos semelhantes".
O artigo é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 25-05-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gênesis. Traduzidas as lições que Lutero proferiu entre 1535 e 1545 e que explicam o pensamento do reformador sobre a criação e a relação entre o Criador e as criaturas. E Giampiero Comolli nos informa em detalhes sobre as palavras de Adão e Eva.
As páginas iniciais da Bíblia, capítulos 1-3 de Gênesis, são um grandioso afresco narrativo com uma forte densidade teológica. Mesmo o leitor desprovido de uma instrumentação exegética percebe imediatamente a justaposição de duas histórias paralelas. A primeira, mais hierática e quase uma "litania", celebra o ato criativo de Deus marcando-o ao longo da semana de culto que leva ao descanso sabático (1,1-2,3). O segundo relato, mais "dramático", configura-se como um díptico antitético com uma tábua que descreve a criação projetada e ideal e com a segunda que introduz uma espécie de “descriação” causada pelo pecado humano, gerador de uma desarmonia radical.
Esses capítulos foram envolvidos (e às vezes sobrecarregados) por uma incessante bibliografia crítica e uma fascinante reelaboração artística. A dupla proposta textual que ora propomos é, portanto, um grão – ainda que precioso – nessa poeira hermenêutica frequentemente luminosa, mas às vezes também ofuscante. Vamos começar pelo primeiro relato, o setenário, e apresentar um inesperado curso de lições que Martinho Lutero ministrou sobre ele em Wittenberg, com várias interrupções, de junho de 1535 a novembro de 1545, já no limiar de sua morte, que ocorrerá em Eisleben em 18-02-1546.
Lutero e la creazione, A cura di Dieter Kampen e Lubomir Jozef Žak, Claudiana (Foto: Divulgação)
Essas lições são agora traduzidas (com curadoria de Nico De Mico) e publicadas em um volume dedicado à análise completa do pensamento do reformador a respeito da criação e da relação entre o Criador e suas criaturas. Oito estudiosos se dedicam a essa tarefa bastante árdua com extraordinária meticulosidade, tentando isolar os vários fios que Lutero extraiu do texto sagrado durante sua jornada teológica até o curso de 1545, mas antecipado em seus outros escritos. Dentro dessa análise múltipla, desenrola-se uma gama de temas.
Do contraponto dialético entre o eficaz ato criativo divino e a liberdade, ou melhor, o "servo arbítrio" negativo do homem, procede-se até a reflexão sobre a categoria "tempo". Examina-se a linguagem com a qual Lutero de forma surpreendente decifra o ato criativo que é "poesia", no sentido etimológico de "palavra" e "ação": não por acaso as palavras de abertura da narrativa bíblica são "Deus disse: Haja luz!", ou seja, um comando verbal. Os estudiosos abordam também questões sistemáticas complexas, como a do paradoxo da saída de Deus de si mesmo ao criar e, portanto, do ser-em-Deus da criatura: é aquele panenteísmo que também deixou sua marca nos filósofos alemães do século XIX até os nossos dias.
Muito mais está contido nesses ensaios muito sofisticados que convergem para o texto das últimas lições de Lutero, cujas coordenadas ideais são traçadas pela introdução precisa e sintética de um teólogo católico, Franco Buzzi. A esse respeito, é interessante destacar que o volume – suplemento à série Obras Selecionadas de Martinho Lutero, publicada pela Claudiana – tem um caráter ecumênico não apenas para os estudiosos presentes, mas também para o apoio da Conferência Episcopal Italiana, além, é claro, daquele da Igreja Valdense, enquanto não faltam membros católicos na Academia de Estudos Luteranos na Itália (ASLI).
Vamos passar agora ao segundo relato da Criação, aquele dos capítulos 2-3 do Gênesis, um díptico verdadeiramente grandioso centrado na figura humana: Adão não é um nome próprio, mas em hebraico é ha-’adam, isto é, “o Homem” em si mesmo, a humanidade que está em nós, em nosso pai, no filho e em todos os nossos semelhantes, com todo o respeito pelo racismo grosseiro que infelizmente ainda infecta muitos. Sob o véu do gênero literário da narração, na realidade, temos uma refinada etiologia meta-histórica sapiencial.
“Etiologia” porque se remonta às origens que são a fonte para explicar todo o rio do tempo subsequente; é “meta-história” porque a cena primordial não é histórica no sentido factual (como muitas vezes se acreditou), mas é toda a história humana em sua alma mais profunda; é “sapiencial” porque a abordagem é destinada a revelar o sentido último do ser e da existência (na prática, é um texto simbólico, mas com valor filosófico-teológico).
A esse ponto, nos sobra espaço apenas para uma referência à releitura animada dos capítulos bíblicos por um escritor e jornalista, Giampiero Comolli. Ele parte da primeira história da criação do mundo mencionada acima, quando falamos de Lutero, mas depois passa para a segunda, do “Jardim das Delícias” (Gênesis 2), até a expulsão do Éden com o plano divino destruído pela livre desobediência do homem (c. 3). O título As primeiras palavras de Adão e Eva se liga a uma questão curiosa que no passado agitava os leitores: em que língua se comunicavam entre si os progenitores (naturalmente em hebraico, segundo a tradição judaica...)?
Giampiero Comolli, Le prime parole di Adamo ed Eva, Claudiana (Foto: divulgação)
Na realidade, o gênero acima descrito dessas páginas bíblicas, com sua tipologia simbólico-universal, afasta curiosidades desse tipo. É, em vez disso, sugestivo seguir Comolli em suas reflexões para descobrir aquela “linguagem da inocência” que a humanidade traz consigo quando dialoga e que tende a perverter até cair na incompreensão babélica (ver capítulo 11 do Gênesis) ou no mutismo do ódio assassino (Caim e Abel).
Lutero e la creazione, A cura di Dieter Kampen e Lubomir Jozef Žak, Claudiana, p. 292.
Giampiero Comolli, Le prime parole di Adamo ed Eva, Claudiana, p. 216.