O desgaste político do judiciário. Artigo de Alexandre Francisco

Foto: Antonio Augusto | STF

Por: Alexandre Francisco | 02 Mai 2025

"O Poder Judiciário, ao adentrar na esfera política, deixa para trás sua prerrogativa de imparcialidade e torna-se amigo ou inimigo, passível de disputa simbólica, afetiva, retórica e discursiva presentes no âmbito político. Não há “coisa julgada”, não há decisão definitiva; abre-se uma fenda para o inferno das disputas narrativas e, em consequência, o enfraquecimento institucional generalizado de um dos únicos poderes que minimamente se propõe ao debate progressista, sendo um dos últimos baluartes do estado democrático contra a lógica neoliberal."

O artigo é de Alexandre Francisco, advogado, mestrando em filosofia pela Unisinos, membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos — IHU.

Eis o artigo.

Quando Montesquieu (1689-1755) formulou, na obra O Espírito das Leis, a Teoria da Tripartição dos Poderes, separando Legislativo, Executivo e Judiciário, tinha em mente uma espécie de freio institucional acerca de uma possível exacerbação dos limites constitucionais impostos por esses ramos. Dessa forma, os atos de cada um dos respectivos poderes não deveriam, ao menos em tese, se sobrepor ao outro, sob pena de um enfraquecimento institucional generalizado, tendo a derrocada do Estado Liberal Democrático de Direito como uma de suas consequências.

Em meus estudos sobre o filósofo, jurista e teórico político alemão Carl Schmitt (1888-1985), verifico uma forte crítica ao liberalismo (como categoria política) e à democracia parlamentar. Schmitt achava que o liberalismo era incapaz de lidar com situações de crise, porque buscava reduzir a política a discussões racionais, negociação e compromisso. O liberalismo tentava neutralizar os antagonismos e os conflitos em nome de um ideal irreal de harmonia.

Já o ato de parler (falar) no francês antigo (sendo parlement o lugar onde se fala, assembleia ou propriamente parlamento), segundo Schmitt, baseado na deliberação e no compromisso entre diferentes interesses, havia perdido sua autenticidade porque os debates já não eram reais, mas apenas encenações — as decisões já estavam tomadas por acordos de bastidores, e os representantes não expressavam mais a vontade popular. Aliás, essa mesma vontade popular está perfeitamente expressa na Constituição Federal do Brasil de 1988, no artigo 1º, parágrafo único: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Para todos os efeitos, bons ou ruins, o Poder Judiciário vem figurando como um dos mais importantes bastiões em defesa da democracia brasileira, e a mais alta corte, qual seja, o Supremo Tribunal Federal (STF), em que pese diversas críticas, mostra-se mais aberto a uma série de discussões progressistas das quais o Congresso Nacional se mostra completamente inerte. Muitos são os casos a serem citados, mas aqui utilizarei como exemplo a discussão acerca do casamento homoafetivo ou união civil homossexual, que desde 2013 é reconhecido legalmente pelo STF (enfatiza-se: só pelo STF).

Em maio de 2011, o STF julgou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132. Nessa decisão histórica, o Supremo reconheceu que as uniões homoafetivas deveriam ter o mesmo tratamento jurídico das uniões estáveis heterossexuais, previstas no artigo 226, §3º, da Constituição Federal. Isso garantiu a esses casais os mesmos direitos e deveres, como pensão, herança, inclusão em planos de saúde, adoção conjunta, entre outros.

Qual é o problema? Esse julgamento foi um exemplo emblemático do chamado “ativismo judicial”, pois o STF atuou num espaço onde o Legislativo estava inerte, sem deliberar sobre os direitos das pessoas LGBTQIA+. Embora essa postura tenha recebido críticas de setores conservadores e também de alguns constitucionalistas preocupados com os limites entre os poderes, para muitos foi um avanço necessário, que colocou o Brasil entre os países com reconhecimento judicial do casamento ou união civil homoafetiva.

Eis o impasse. O Parlamento não atua onde e como deve atuar para a garantia de direitos; o STF, diante da inércia, por via judicial (um processo iniciado pela Procuradoria-Geral da República), reconhece o direito ao casamento homoafetivo. Porém, não há a inclusão desse reconhecimento na Constituição Federal, que continua reconhecendo, ao menos na "letra da lei", apenas o casamento entre casais heterossexuais (homem e mulher). O artigo inalterado na Constituição Federal: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Agora, citando a teoria política com base em Schmitt, imaginemos que 80% dos políticos no Congresso Nacional são homofóbicos e conservadores, defensores da família tradicional, da moral e dos bons costumes. Caro leitor, eu sei que é extremamente difícil imaginar esse cenário, mas encarecidamente peço que façam um esforço nesse caso. Pois bem. Nesse cenário impossível, verificamos que qualquer tentativa de alteração constitucional que reconheça civilmente, no debate democrático, dentro do Parlamento, a união de pessoas do mesmo sexo é praticamente descartada já no seu período embrionário (isso que não entramos na questão do aborto, Deus me livre!).

O que estou tentando dizer aqui — me perdoem a volta — é que, a cada vez que o Judiciário tenta tomar a iniciativa de uma importante pauta do debate político nacional, ele está deixando a sua esfera jurisdicional e entrando com tudo na esfera do político. Ou seja, chamando para si, o caráter político institucional. Se fizermos uma leitura schmittiana da questão, o sentido ontológico do político é a dualidade amigo-inimigo. Segundo o autor:

“Uma definição do conceito do político só pode ser obtida pela identificação e verificação das categorias especificamente políticas. Isto porque o político tem suas próprias categorias, as quais se tornam peculiarmente ativas perante os diversos domínios relativamente autônomos do pensamento e da ação humanos, especialmente o moral, o estético e o econômico. Por isso, o político tem que residir em suas próprias diferenciações extremas, às quais se pode atribuir toda a ação política em seu sentido específico. Suponhamos que no âmbito do moral as extremas diferenciações sejam bom e mau; no estético, belo e feio; no econômico, útil e prejudicial ou, por exemplo, rentável e não rentável. A questão é, então, se também existe — e em que consiste — uma diferenciação especial como critério simples do político, a qual, embora não idêntica nem análoga àquelas outras diferenciações, seja independente destas, autônoma e, como tal, explícita sem mais dificuldades (...) A diferenciação especificamente política, à qual podem ser relacionados as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo, fornecendo uma definição conceitual no sentido de um critério, não como definição exaustiva ou expressão de conteúdo.” (p. 27)

Nesse sentido, se no sentido ontológico da moral temos o bom e o mau, no estético temos o belo e o feio, no econômico, aquilo que é útil e aquilo que é inútil; no campo político, o que define seu conceito é a dualidade conflituosa do amigo-inimigo.

O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente econômico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, em um sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através de sentença de um terceiro “não envolvido” e, destarte, “imparcial”. (p. 28)

Portanto, o Poder Judiciário, ao adentrar na esfera política, deixa para trás sua prerrogativa de imparcialidade e torna-se amigo ou inimigo, passível de disputa simbólica, afetiva, retórica e discursiva presentes no âmbito político. Não há “coisa julgada”, não há decisão definitiva; abre-se uma fenda para o inferno das disputas narrativas e, em consequência, o enfraquecimento institucional generalizado de um dos únicos poderes que minimamente se propõe ao debate progressista, sendo um dos últimos baluartes do estado democrático contra a lógica neoliberal. Afinal, uma pessoa pobre ainda pode processar uma empresa multimilionária — eu disse ainda, não sabemos até quando. Aliás, nesse ponto, já há uma forte estratégia de enfraquecimento judicial, através do lobby empresarial ou mesmo do alinhamento de uma parcela da casta judiciária corrupta com empresários ricos, se pensarmos nas multas de valores ridículos contra empresas bilionárias pela violação de direitos civis e ambientais (valores estes muitas vezes já previstos no planejamento orçamentário dessas empresas), mas isso é uma discussão extremamente desgastante e deprimente que poderemos fazer em outra oportunidade.

Paradoxalmente, é de extrema urgência dizer um bom e audível “não” e impor limites a figuras como Elon Musk e Jair Bolsonaro, que estão acostumados a ter sempre a faca e o queijo na mão. Minha dúvida é: até quando será possível fazer isso, antes de ser engolido pelo Leviatã neoliberal e neoconservador à vista? Afinal, até quando essa massa crescente de fascistas ressentidos vai seguir uma Constituição de normas pautadas goela abaixo contra seus interesses particulares? Minha opinião é que não vai durar muito, é urgente encontrarmos uma saída.

Recomendo a todos os juristas de primeira instância, desembargadores e ministros do STF ouvirem o presságio de nosso querido poeta carioca Cartola, na canção O Mundo é um Moinho, pois, embora saibamos que estão resolvidos, em cada “decisão” cai um pouco tua vida, e em pouco tempo não serás mais o que és.

Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó

Fonte

SCHMITT, Carl. Teologia política: quatro capítulos sobre a doutrina da soberania. Tradução de Alexandre Franco de Sá. Prefácio de Demóstenes Torres. 1. ed. São Paulo: Livraria Resistência Cultural, 2024.

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