01 Mai 2025
"Palavras e valores fundamentais, como democracia, liberdade e justiça, estão sendo manipulados. Aumenta a multidão dos “descartados”, deixados à margem de uma aceleração cada vez mais frenética e de um consumismo que alimenta necessidades desnecessárias. Multiplicam-se os conflitos regionais (a 'Terceira Guerra Mundial em pedaços'), com os relativos medos e misérias", escreve o cardeal italiano Gianfranco Ravasi, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 27-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
O legado do papa. A encíclica “Fratelli tutti” é a suma da ação pastoral de Bergoglio, que convida a política a um compromisso como expressão do cuidado com o bem comum e a sociedade ao diálogo e à amizade
No imenso fluxo de retratos, comentários e reflexões que nos últimos dias foram dedicados à figura do Papa Francisco e aos seus já históricos anos de pontificado, para recordar mais uma vez a sua figura, optamos por propor algumas ideias, recortando-as de uma encíclica fundamental, precisamente por causa do tema que talvez lhe seja mais caro. Queremos nos referir à Fratelli tutti de 2020, em cujas páginas - que também têm uma forte carga “política” - bate o coração de um papa que sempre se dedicou para os últimos.
No entanto, também podemos intuir o sopro espiritual de toda a humanidade que ele reuniu.
Não é por acaso que no texto encontramos até mesmo algumas citações “seculares” inesperadas, como, por exemplo, a do poeta e músico brasileiro Vinicius de Moraes (1913-1980), que cantou em seu Samba da bênção, um disco de 1962: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
Também é possível reconhecer a inspiração e os estímulos oferecidos pelo Patriarca Ortodoxo Bartolomeu e pelo Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb do Cairo, que assinou com ele em 2019 o famoso documento de Abu Dhabi em prol do diálogo inter-religioso.
Além disso, pode surpreender o fato de que por três vezes se faça referência ao filme Papa Francisco - Um Homem de Palavra (2018), do diretor alemão Wim Wenders, em que a voz do pontífice protagonista se alinha com a de São Francisco, concluindo com uma frase luminosa: “Deus não olha com os olhos, Deus olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor. Quando chegar o último dia e houver a luz suficiente na terra para poder ver as coisas como são, não faltarão surpresas!”
O texto da encíclica - cuja leitura volta a ser estimulante - é uma espécie de suma da ação pastoral de Francisco e é marcado por um díptico antitético. O primeiro painel é escuro e tem o título: “As sombras de um mundo fechado”. Esses são apenas alguns sinais dessas trevas que dominam o nosso planeta e a época atual. Os sonhos de uma Europa unida, as aspirações para a integração e a própria globalização estão se rachando sob a ameaça de nacionalismos e soberanismos, dos individualismos e dos egoísmos. Palavras e valores fundamentais, como democracia, liberdade e justiça, estão sendo manipulados. Aumenta a multidão dos “descartados”, deixados à margem de uma aceleração cada vez mais frenética e de um consumismo que alimenta necessidades desnecessárias. Multiplicam-se os conflitos regionais (a “Terceira Guerra Mundial em pedaços”), com os relativos medos e misérias.
Adensam-se nas redes as agressões, os focos de ódio, as falsidades descaradas, as manipulações e os fanatismos. A cultura digital, em vez de unir como é em sua estrutura comunicativa, divide e cria desigualdades e confusões. Esse realismo, no entanto, nunca está desvinculado da esperança e da confiança na humanidade, como atesta o comentário apaixonado sobre a famosa parábola evangélica do “Bom Samaritano” (Lucas 10,25-37), que apresenta “um estranho na estrada” e que pode ser lido naquelas páginas.
O segundo painel do díptico que alicerça a encíclica é, ao contrário, mais amplo e luminoso, como o título já sugere: “Pensar e gerar um mundo aberto e um coração aberto ao mundo”. O que é proposto é uma abertura não apenas geográfica, mas, acima de tudo, existencial, que transcende as fronteiras. Assim, uma tetralogia verbal frequentemente reiterada nos discursos do Papa Francisco é reiterada: “acolher, proteger, promover e integrar” aqueles que desembarcam em nosso continente.
Sob essa luz, um itinerário de compromisso concreto é reservado, acima de tudo, para a política como uma expressão de cuidado com o bem comum. Muitos aspectos são enfatizados, a começar pela proteção da dignidade humana, verdadeira pedra angular da ação política, fato que tem como corolário necessário o envolvimento dos excluídos na construção da sociedade e, em nível geral, a solicitude para com o trabalho.
Uma nota que provocou diferentes reações é a crítica ao populismo: por meio dele, o líder instrumentaliza a cultura e a sensibilidade de um povo. Partindo do destino universal dos bens quisto pelo Criador, é firme a crítica ao capitalismo econômico radical que se mostra incapaz e até antitético a uma justiça social equilibrada. Interessante, nesse sentido, é a observação de que a política não deve se submeter totalmente à economia, especialmente quando ela é reduzida ao paradigma da tecnocracia financeira.
Em seguida, passa-se sem solução de continuidade para a sociedade que deve ter duas bandeiras: “diálogo e amizade”. É, na prática, aquela cultura do encontro que deveria se manifestar nas diferentes tipologias populares, acadêmicas, artísticas, tecnológicas, familiares, midiáticas, econômicas, juvenis e assim por diante. É a sociedade pluralista, direcionada para a busca da verdade autêntica, que o Papa Francisco retratava com uma bela imagem que lhe é cara, o poliedro com muitas faces que exclui o monólito exclusivista. Ou, se preferir, é a referência à construção de pontes ideais sobre as quais correm o diálogo e o encontro entre diferentes margens com diferentes perspectivas.
O elo que une as duas imagens do díptico está no diálogo intercultural e inter-religioso, onde, entre os muitos temas, brilha um que tem sido incessante para o Papa Francisco e que está na alma autêntica das religiões e culturas: a paz que floresce da superação da “iniquidade” da distribuição de bens e da iniquidade da guerra, da negação de todos os direitos e da agressão ao próprio ambiente natural. É forte o apelo para a eliminação total das armas nucleares e a negação da tese da “guerra justa” (“Guerra nunca mais!”). Capital, portanto, é o tema do perdão e da reconciliação, que não elidem a justiça necessária. Não se trata de renunciar a direitos justos diante de um poderoso corrupto ou criminoso ou daqueles que degradam a dignidade humana. Tampouco se trata da indução à impunidade: “A justiça procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do esquecimento”.
O pontífice concluía, então, citando uma bela passagem de seu discurso no encontro ecumênica de Riga, Letônia, de setembro de 2018. São palavras que encarnam aquele “sonho” cristão pelo qual ele sempre lutou: “Se a música do Evangelho deixar de tocar em nossas casas, em nossas praças, em nossos locais de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos provocava a lutar pela dignidade de cada homem e mulher”.