29 Abril 2025
"A prática pastoral do Cardeal Jorge M. Bergoglio, na cidade de Buenos Aires, logo seguida do pontificado do Papa Francisco, em Roma, refletem e ilustram esse binômio espiritual-apostólico de contemplação da Transcendência, por um lado, e, por outro, sociopastoral e político, junto aos empobrecidos e marginalizados de ambos os lados do oceano Atlântico. Entretanto, na função de pontífice, na cátedra de Pedro, estende essa prática evangélica a todo o planeta", escreve Alfredo J. Gonçalves, CS, padre, assessor do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM/São Paulo.
A expressão é de um trabalhador argentino. Ao ver o Cardeal Jorge M. Bergoglio sentado no fundo de um ônibus de transporte público, ele disse aos companheiros: “ele é um de nós”! Mas podemos acrescentar aqui que “ele é mais do que um de nós”! Seu vigor, seu ardor e sua energia, sempre vivos e ativos, espelhavam uma espiritualidade de dupla dimensão. Por uma parte, um olhar focado no espírito de Deus, que orienta e dirige a Igreja. A intimidade do Papa Francisco com a presença do Espirito Santo, conduzia-o ao contato com o mistério da transcendência, como disse em Aparecida. Intimidade e contato que abrem o coração e alma a horizontes alternativos da história. O espírito irrompe nas coordenadas da trajetória humana, seja para desnudar os erros e males das análises e decisões equivocadas, seja para alargar o leque das escolhas/opções e pavimentar novas veredas no grande sertão da vida, parafraseando o poeta Guimarães Rosa. Abraçar o mistério da transcendência consiste em deixar-se interpelar pelo “novo”, dando-se conta que as mudanças não dependem de nossos méritos ou de nossas forças, e sim da ação invisível do espírito.
Por outra parte, um olhar que sai de si mesmo e se dispersa pelos becos e ruas, pelos campos e cidades, pelos grotões e porões, pelas periferias e fronteiras da sociedade. Vai lá onde habitam e sofrem, lutam e sonham os pobres, excluídos, vulneráveis. Neste caso, vem à tona o projeto da “Igreja em saída”, no sentido de colocar-se a caminho em direção aos lugares mais sórdidos e longínquos da humanidade. Trata-se aqui de deixar o conforto da sacristia e o formalismo estéril do ritualismo litúrgico, bem como os benesses e privilégios da hierarquia e do clero, para caminhar ao encontro daqueles que, literalmente, “não moram, escondem-se”. O desafio é fazer com que as pastorais sociais, movimentos, comunidades, paróquias e dioceses criam pernas para recriar, no contexto atual, aqui e agora, os passos do “profeta itinerante de Nazaré”, que “percorria todas as aldeias e povoados” (Mt 9, 35) da Galileia, da Samaria e da Judeia.
O próprio Jesus, de resto, alterna seu tempo entre os momentos íntimos e intensos na montanha, junto ao Pai, e o compromisso com os doentes, indefesos e desvalidos, pelos caminhos. Um olhar focado na face radiante do Abba, e um olhar descentralizado entre os rostos desfigurados dos oprimidos. Da montanha, traz aos pobres os raios luminosos do rosto do Senhor, que brilham e iluminam a trajetória humana; do caminho, leva ao Pai os traços da fome, do abandono e da violência, para que possa receber luz e calor amorosos de Deus. É evidente que a montanha e o caminho, longe de se excluírem, se questionam, se entrelaçam, se enriquecem e se complementam reciprocamente. Quanto mais focado na crescente intimidade com o Pai, mais Jesus se dispersa para levar o conforto da esperança aos aflitos.
A prática pastoral do Cardeal Jorge M. Bergoglio, na cidade de Buenos Aires, logo seguida do pontificado do Papa Francisco, em Roma, refletem e ilustram esse binômio espiritual-apostólico de contemplação da Transcendência, por um lado, e, por outro, sociopastoral e político, junto aos empobrecidos e marginalizados de ambos os lados do oceano Atlântico. Entretanto, na função de pontífice, na cátedra de Pedro, estende essa prática evangélica a todo o planeta. Emblemática a esse respeito foi a preocupação do Santo Padre para com os migrantes, refugiados e apátridas. Aqui também: o foco na intimidade com o Pai, na montanha, leva Jorge M. Bergoglio às trilhas turbulentas e tortuosas da grande multidão de pessoas sem raiz e sim pátria, pelos caminhos da migração. “Ele era um de nós”, sem dúvida, mas “ele foi além de nós”!
Basta lembrar de suas visitas à ilha de Lampedusa, no extremo sul da Itália, e à ilha de Lesbos, na Grécia. Ambas as ilhas funcionavam como portas de entrada dos migrantes na Europa, respectivamente, pela rota mediterrânea e pela rota balcânica. Mas ele não parou por aí! Nas viagens pelos caminhos e acampamentos do fenômeno migratório, trouxe para a Itália algumas famílias de refugiados sírios, com todas as despesas bancadas pelo Estado do Vaticano. Além disso, não deixou de visitar, igualmente, uma das fronteiras mais icônicas em termos de mobilidade humana. Estamos falando dos limites geográficos entre os Estados Unidos e o México, onde tantos sonhos se romperam e se transformam em pesadelos. Ali deixou claro um refrão tão repetido durante seu ministério: abater muros e erguer pontes. Nos casos de Lampedusa e de Lesbos, não deixou de alertar que o mar Mediterrâneo tinha se transformado num grande cemitério dos migrantes. Deixa assim um legado inconfundível: combater a globalização da indiferença, em vistas de um projeto de justiça, fraterno e solidários, todos os povos, culturas e nações.