19 Março 2025
Se nada é “imune à lei da impermanência”, “paciência, determinação inabalável, unidade e coragem” são necessárias para os tibetanos em sua luta e para a humanidade como um todo em sua interdependência. Como dizem lá em cima, no telhado do mundo, “se você cair nove vezes, levante-se nove vezes”.
O artigo é de Marco Ventura, professor de Direito canônico e eclesiástico da Universidade de Siena, publicado por La Lettura de 18-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
“O desejo de liberdade é uma força imparável contida nos seres humanos”. Assim escreve o Dalai Lama, um símbolo mundial dessa força e de toda luta em seu nome contra a opressão. Desde 1950, quando, ainda adolescente, foi proclamado Dalai Lama enquanto as tropas chinesas ocupavam seu Tibete, e desde 1959, quando se refugiou no norte da Índia, onde vive desde então, até hoje, com quase 90 anos de idade (ele nasceu em 06-07-1935), sua resistência em nome do povo tibetano encarna a convicção de que “nenhum regime totalitário pode durar para sempre”. Una voce per chi non ha voce (Uma voz para os que não têm voz) é o título eloquente do novo livro, publicado na Itália pela Harper Collins, traduzido por Francesca Pe' e editado por Thupten Jinpa, o intérprete para o inglês do Dalai Lama.
As duzentas páginas do texto recontam ‘Mais de setenta anos de luta por minha terra e meu povo’, esse é o subtítulo, vistos pelo homem que, mesmo depois de renunciar ao poder executivo em 2001 e se retirar completamente de todas as funções de governo em 2011, continua sendo o líder dos tibetanos no exílio e daqueles que vivem no “teto do mundo”. Outras cem páginas de documentos, notas e bibliografia ilustram ainda mais o drama da região e de seu povo. O resultado é uma viagem pela história, mas também um itinerário de sentido: quanto mais o leitor mergulha nas circunstâncias de tempo e espaço, de fato, mais ele se sente questionado pelas questões fundamentais sobre o homem, a história e o sofrimento, que transcendem aquelas mesmas circunstâncias.
Dezessete anos antes da invasão chinesa, em 1933, o décimo terceiro Dalai Lama, predecessor do atual, formulou uma profecia sombria sobre o futuro do Tibete, que era de fato independente havia cerca de vinte anos: “Devemos tomar cuidado com os bárbaros vermelhos comunistas, que semeiam terror e destruição por toda parte”. As notícias da Mongólia legitimaram o alarme: “Eles depredaram e destruíram monastérios, forçando os monges a se alistarem em seus exércitos, matando na hora aqueles que se recusavam, eles aniquilaram a religião onde quer que a tenham encontrado”.
Segue-se um apelo veemente: “Enquanto o poder da paz e da felicidade estiver conosco, enquanto o poder de fazer algo a respeito dessa situação ainda estiver em nossas mãos, devemos fazer todos os esforços possíveis para nos proteger da catástrofe iminente”.
O alarme caiu no vazio. Como o sucessor escreve agora, “os regentes e a classe dirigente do Tibete não compreenderam a urgência e a seriedade” daquele aviso. As tropas de Mao Tsé-tung cruzaram a fronteira em 06-10-1950, o ano de 2077 no calendário tibetano. Qualquer resistência à política de aniquilação cultural e religiosa foi reprimida pelo governo chinês por meio do uso sistemático da violência mais brutal. Uma comissão internacional de juristas relatou em 1959 “esterilizações forçadas, crucificações, vivissecções, pessoas estripadas, desmembradas, decapitadas, queimadas, espancadas até a morte, enterradas vivas, arrastadas por cavalos a galope, penduradas de cabeça para baixo e outros horrores”.
Em diferentes fases, com diferentes métodos, o projeto de assimilação forçada nunca cessou. O Dalai Lama resume a esse respeito o que é verdade tanto para o Tibete quanto para outras regiões da China: “A imposição de uma única nação chinesa sobre várias nacionalidades, inclusive a tibetana, cada uma distinta por língua, cultura, história e povo (que nunca havia se considerado chinês), deu origem a um estado moderno intrinsicamente instável, com um risco crônico de tensões étnicas que exige uma contínua e brutal subjugação colonialista por parte de Pequim”. A esse respeito, o autor denuncia uma “política de imperialismo colonialista em relação ao Tibete, à Mongólia (entendida como Mongólia Interior, incluída nas fronteiras da República Popular) e ao Turquestão Oriental (o Xinjiang da minoria uigur, que é muçulmana e fala turco), paradoxalmente imbuída de uma feroz retórica anticolonialista”.
A acusação do Dalai Lama é articulada, assim como o sistema dos instrumentos empregados pelo governo chinês. Fala-se de genocídio, até mesmo de genocídio cultural, de educação étnica com o objetivo de erradicar das crianças tibetanas qualquer traço da língua e da cultura do país, e também da perseguição de monges, fechamento de mosteiros e destruição de seu patrimônio, de migrações de chineses da etnia Han (o grupo étnico majoritário na República Popular) e de destruição do ambiente natural. Os tempos mudaram, mas o projeto não, tanto que leva o autor chega a afirmar que as políticas repressivas dos tempos de Mao estão sendo renovadas hoje graças às “tecnologias digitais ultramodernas de vigilância e controle”. A China comunista, conclui o autor, continua sendo, “aos olhos dos tibetanos no local, uma potência estrangeira de ocupação indesejada e opressiva”.
O Dalai Lama é um lobo em pele de monge, um demônio com cara de homem, mas com coração de fera”, declarou o chefe do Partido Comunista do Tibete em 18-03-2008, acrescentando: “Hoje estamos empenhados em uma batalha feroz até a morte com a camarilha do Dalai Lama, uma batalha letal entre nós e o inimigo”. As palavras, citadas no livro, atestam a retórica virulenta a que o Dalai Lama é submetido pelas autoridades chinesas. Encarnação do atraso feudal e supersticioso do qual Pequim libertou os tibetanos, ele é o separatista antichinês que tem como objetivo dividir a pátria. Conforme declarado em uma declaração do Comitê Central do Partido Comunista em 1994, a oposição tibetana é uma cobra e “como diz o ditado, para matar a cobra, primeiro é preciso cortar sua cabeça”.
Na década de 1950, a liderança chinesa ainda esperava alistar o jovem Dalai Lama à causa. Nos seis meses que passou na China, entre setembro de 1954 e março do ano seguinte, houve vários encontros com o próprio Mao. A verdadeira intenção do Grande Timoneiro é revelada no último deles. Mao elogia a “mente científica” do jovem monge, “a mente de um verdadeiro revolucionário”, e lhe ensina que “religião é veneno”. “Aquelas palavras me perturbaram e tentei esconder isso inclinando-me para a frente como se fosse escrever algo”, lembra hoje o Dalai Lama. ”Foi então que, apesar de todos as ênfases de diálogo positivo, entendi que Mao iria destruir o Budadarma”.
O momento de fugir do Tibete ocupado chegou depois de quatro anos, nas horas agitadas em que as tropas chinesas esmagavam o grande protesto popular de 1959. Em 1956, o marechal He Long, vice do primeiro-ministro chinês Zhou Enlai, tinha tentado dissuadir o Dalai Lama de se refugiar na Índia: “O leão das neves parece majestoso quando fica nas neves, mas se ele desce para as planícies, é tratado como um cão”, disse a ele. Setenta anos de exílio provaram o contrário.
A estatura internacional do Dalai Lama cresceu a ponto de receber o Prêmio Nobel da Paz em 1989, após a repressão sangrenta de uma rebelião no Tibete (especialmente em março de 1988) e o massacre da Praça Tiananmen [a Praça da Paz Celestial] (04-06-1989), e continuou a crescer desde então. Por outro lado, para o governo chinês, conforme reiterado pela porta-voz do Ministério das Relações Exteriores em 10 de março sobre as antecipações do novo livro, o Dalai Lama “não é uma mera figura religiosa, mas um exilado político envolvido em atividades separatistas antichinesas sob o pretexto da religião”.
Há um antigo provérbio tibetano, escreve o Dalai Lama, “que capta muito bem a essência dos relacionamentos entre tibetanos e chineses: os tibetanos se deixam trair pelas esperanças, os chineses pelas suspeitas”. Em vão, os tibetanos desistiram da reivindicação de independência formal à qual acreditam ter direito e se limitaram à demanda por uma autonomia real por meio da qual proteger a singularidade de seu povo com sua língua, sua cultura e sua herança espiritual.
O Dalai Lama chegou a essa abordagem, conhecida como Caminho do Meio, na fase final da Revolução Cultural, em meados da década de 1970, e a apresentou ao governo chinês, após a morte de Mao em 1976, no período de abertura que começou com Deng Xiaoping. As negociações continuaram sem resultados tangíveis entre 1979 e 1989, quando o banho de sangue que encerrou os protestos na Praça Tiananmen interrompeu o diálogo. O resultado do segundo período mais significativo de discussões, entre 2002 e 2010, foi o mesmo.
O Dalai Lama ressalta no livro que não houve mais contato formal entre seus representantes e o governo chinês desde 2010 e que os contatos informais também cessaram em 2019. Ele duvida que alguma vez tenha havido uma vontade sincera de chegar a um acordo por parte das autoridades chinesas, movidas afinal apenas por necessidades táticas, como na época das negociações sobre Hong Kong do fim da década de 1970 e das Olimpíadas de 2008. É sintomático, observa o Dalai Lama, que os esforços do seu lado para se apresentar com “um objetivo claro e uma hierarquia reconhecível” tenham sido respondidos pela maior opacidade do lado chinês, de tal forma que é sempre “difícil entender exatamente com quem estivéssemos lidando”.
Durante um de seus encontros diante de uma xícara de chá, um monge de alto escalão que havia se refugiado na Índia após 18 anos em prisões chinesas contou ao Dalai Lama sobre o perigo real que percebeu na prisão.
“Um perigo de que tipo?”, perguntou o Dalai Lama, imaginando que fosse o perigo de morrer. “O perigo de perder a compaixão pelos chineses”, respondeu o monge. Se tibetanos e chineses compartilham a mesma herança do budismo mahayana, essa herança também permeia a luta de um homem cuja ação pública é política e espiritual sem solução de continuidade.
O livro destaca as várias etapas de sua vida monástica, desde sua precoce proclamação oficial como Dalai Lama até a conclusão dos “debates” que sancionaram sua preparação completa em 1959. A tradição que ele representa e a espiritualidade que ele encarna, alimentadas pelo conhecimento dos mestres do budismo, inervam o exercício da autoridade. O Dalai Lama que recorre a adivinhações e oráculos para se inspirar na hora da escolha é o mesmo que dá aos tibetanos na pátria e no exílio uma constituição democrática em 1963, que reforma profundamente, a partir da sede indiana de Dharamsala, as instituições de governo de sua comunidade, que não se cansa de apelar para a não violência e que, diante das autoimolações, às quais mais de 160 monges, monjas e leigos, quase todos jovens, recorreram desde 2009, expressa pesar, mas empatia com o “profundo sentimento de impotência” que leva a uma forma tão extrema de protesto. O capítulo do livro dedicado às "Práticas úteis para lidar com o sofrimento" não é, portanto, um parêntese no percurso histórico, mas o círculo no qual está inscrita cada uma de suas passagens.
Desde 1995, quando tinha 6 anos de idade, as autoridades chinesas mantêm Gedhun Choekyi Nyima prisioneiro.
Ao identificá-lo publicamente, na época, como Panchen Lama, a segunda maior autoridade do budismo tibetano, o Dalai Lama frustrou a tentativa de Pequim de impor um lama governamental (as autoridades comunistas, na verdade, designaram um de seus próprios Panchen Lamas, Gyancain Norbu, leal ao regime, alguns meses depois, em novembro de 1995). Há um forte temor de que a tentativa se repita após a morte do Dalai Lama e que seja impedida a prática tradicional com a qual foi reconhecido em 1950 Tenzin Gyatso, nascido Lhamo Dondrub, o atual Dalai Lama. Como ele relembra no livro, desde a década de 1960 ele repassou para os tibetanos a decisão de manter ou não a instituição do Dalai Lama quando ele morrer. Ele também lembra de ter declarado já em 2011 que era “totalmente inapropriado” que o governo comunista chinês se intrometesse no sistema de reencarnação dos lamas. Ele afirma agora, a esse respeito, que o próximo Dalai Lama “nascerá no mundo livre”, para “ser a voz da compaixão universal, o líder espiritual do budismo tibetano e o símbolo do Tibete e das aspirações de seu povo”.
O apelo que encerra o livro baseia-se na confiança na derrota do totalitarismo, “um sistema instável por natureza”, o convite para ver “humanidade até mesmo em nossos opressores, porque no fim será com a humanidade deles que chegaremos a um acordo”. Se nada é “imune à lei da impermanência”, “paciência, determinação inabalável, unidade e coragem” são necessárias para os tibetanos em sua luta e para a humanidade como um todo em sua interdependência. Como dizem lá em cima, no telhado do mundo, “se você cair nove vezes, levante-se nove vezes”.