22 Fevereiro 2025
"No mundo atravessado em e por Santina Perin são as histórias dos povos marginalizados o livro da resiliência, da esperança e dos laços de cipós construtores de obras que enunciam o cuidado com o Outro e confrontam a ideia do vale-tudo na destruição do Outro em nome do triunfo pessoal".
O artigo é de Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Processos Socioculturais da Amazônia, articulista no jornal A Crítica de Manaus, cofundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).
Há 14 anos, Irmã Santina Perin chegava em Manaus para retomar, em terras amazônicas, as ações em favor do povo haitiano. Parcela dos haitianos desembarcou no Amazonas, em Tabatinga, município da tríplice fronteira brasileira, no Alto Solimões, entre os anos de 2010 e 2011. Em família ou sozinhos, chegaram ao Norte brasileiro debilitados e desesperados, após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, com intensidade de 7.3 graus na escala Richter. Mais de 200 mil morreram e os desabrigados somavam mais de um milhão.
Santina, hoje com 84 anos, nascida em Marau (RS), viveu por 25 anos no Haiti e ali construiu história sólida na luta pelos direitos humanos dos haitianos ora submetidos à ditadura ora em deslocamento para outros países igualmente tratados com severidade. A vida da missionária está impregnada do povo do Haiti, das comunidades mais vulneráveis, das mulheres e das crianças.
A morada em Manaus se transforma em acolhida e bússola para os haitianos que chegaram à capital amazonense e lidaram com rejeição, desconfiança e racismo. Santina, pequenina e franzina, se fez gigante na abertura dos espaços, nos diálogos com autoridades e lideranças locais, nas parcerias pelo sim aos imigrantes. Intérprete dos haitianos, por falar crioulo (creóle) e francês, construiu pontes fundamentais em tempos difíceis para centenas de pessoas completamente vulneráveis na terra manauara. Em Santina, não existe fronteira e idioma amor está colocado na dimensão mais elevada. O efeito dessa receita, ela comprovou em ações diárias por mais de dez anos.
Liderou movimentos contra o tráfico humano, atravessou rios e igarapés, pôs os pés em terrenos arriscados, recebeu ameaças. Nas manifestações e marchas públicas estava presente, com bandeira de pano esticada e voz firme para denunciar as injustiças e conclamar a participação do povo nas lutas, sem jamais perder a ternura. Na segunda-feira (17), Santina Perin seguiu à nova morada, em São Paulo, para, vigiada de perto pela família, cuidar melhor da saúde. Não pretende se aposentar.
No domingo (15), o pároco da Igreja São Geraldo, bairro São Geraldo, zona Centro-Sul de Manaus, Marco Antônio Alves Ribeiro, e a comunidade haitiana realizaram missa-homenagem à Irmã Santina. Um momento pluricultural de boniteza emocionante.
Aprendizado no jornalismo - Para jornalistas e o jornalismo de Manaus, Irmã Santina Perin é escola viva. Quem teve a oportunidade de entrevista-la, de escutar a fala, de sentir os gestos, aprendeu muito e saiu desse encontro diferente. A capacidade de criar ambientes de escuta, de promover diálogos e de demonstrar o valor da generosidade é marca da missionária. Não diz o que é, ela faz!
Nesse tempo de um jornalismo acelerado, descolado da escuta profunda e colado ao assessorismo de uma porção do poder político e econômico que o asfixia cotidianamente tem em Santina um outro molde: aprender a escutar as vozes, a conhecer os trajetos das vidas, aprofundar as fontes de informações, agir de forma responsável e generosa na produção dos relatos.
Para aqueles que compreendem a função social do jornalismo e questionam o estado em que se encontra parte das práticas jornalísticas voltar-se à Irmã Santina – por vezes negada como “pauta que rende” - é possibilidade de perceber e de avançar na leitura crítica da realidade, de teimar contra os silenciamentos impostos por motivações político-econômicas ou questionar os barulhos encomendados pelas mesmas razões e dentro da lógica do ‘mudar para manter’.
No mundo atravessado em e por Santina Perin são as histórias dos povos marginalizados o livro da resiliência, da esperança e dos laços de cipós construtores de obras que enunciam o cuidado com o Outro e confrontam a ideia do vale-tudo na destruição do Outro em nome do triunfo pessoal.
Em Manaus, o agir de Santina Perin ajudou a nós, jornalistas, a ver o efeito do racismo e, nas suas atitudes, ensinou como enfrenta-lo, com gestos e palavras. Andarilha, reapresentou as periferias socioeconômicas do Amazonas, confrontou os poderes político e econômico utilizados criminosamente contra os mais pobres.