23 Janeiro 2025
"A castidade torna-se então a marca do modo de amar e de viver as relações típicas do celibatário e do sacerdote celibatário, chamado a viver muitas relações, mas sem possuir nenhuma. A castidade é o oposto da possessão em todas as áreas da vida", escreve Amedeo Cencini, padre canossiano, psicólogo e psicoterapeuta italiano, em artigo publicado por Settimana News, 21-01-2025.
A nova Ratio Nationalis Institutionis Sacerdotalis para a Itália entrou em vigor em 9 de janeiro, aprovada ad experimentum por 3 anos pelo Dicastério para o Clero em 8 de dezembro de 2024. Certamente não se pode dizer que isso passou despercebido, dada a atenção que a imprensa secular deu-lhe, ainda que muito parcial, não ao texto em si, mas a uma parte precisa dele, ainda que muito pequena (dois números num total de aproximadamente 120), aquela relativa a quem se aproxima dos Seminários com orientação homossexual. Mas falaremos dele mais tarde, não sem antes tentarmos perceber o significado e a mensagem global deste documento no momento histórico que vivemos.
Ratio significa regra, projeto definitivo, indicação vinculativa... Não é fácil num tempo como o nosso falar nestes termos, sobretudo em relação a uma instituição que vive uma fase bastante problemática, e a uma figura que está no centro dela (tanto da instituição como da crise), como a do padre. Este documento corre o risco de o fazer, sem pretender responder a todas as dúvidas ou definir tudo ou propor sabe-se lá que novidades, mas lembrando que este texto é apenas e em todo o caso um ponto de referência para o projeto que cada Igreja local terá que pensar, discernir e implementar. E um dia partilha, numa Igreja sinodal.
Mas há uma questão, nem mesmo escondida, mesmo que não apareça no índice, que serve de ponto de partida para a análise e depois comparação de cada proposta aqui contida: qual sacerdote e para qual Igreja?
Dir-se-á que não é propriamente novo, mas talvez nem todos admitam plenamente que hoje a nossa Itália é uma terra de missão, nem mais nem menos.
A terra missionária pressupõe sacerdotes missionários. Que não visam a preservação da fé, mas a sua proclamação; que não se arrependem do passado desperdiçando energia para exumá-lo (até porque sabem muito bem que não voltará e que é bom que não volte), mas gostam de viver num tempo que também será crítico, claro, mas é mais verdadeiro, em que “cristãos não nascemos, mas nos tornamos” (Tertuliano); sacerdotes que não se deixam encantar pelo mito dos números ou das igrejas cheias, mas que procuram acompanhar o caminho de crescimento de cada crente, para que o seu ato de fé seja livre e responsável; que não se contentam com consensos baratos no grupo fechado dos fiéis, mas que também se sentem enviados para aqueles que não acreditam ou acreditam pouco, especialmente os párocos da "Paróquia dos não crentes", que é muito numerosa, e cuja "presença” se tornaria uma enorme graça para cada sacerdote, uma provocação para a sua conversão e crescimento na sua pequena fé, uma advertência para não se sentir superior a ninguém, tenha o cuidado de anunciar o rosto autêntico do Pai!
É claro que, se este é o horizonte ou a perspectiva de trabalho, todo o percurso de formação inicial, em todas as suas áreas, está orientado para formar alguém que saiba movimentar-se naquele contexto, que se liberte das influências clerical-narcisistas-pagãs, expectativas ou de sonhos perigosos de poder (hoje sabemos algo sobre isso!), que estuda e é apaixonado por uma teologia que pode ser traduzida em palavras simples, cheias de vida e de significado para todos; que ele é o primeiro a viver uma fé que o torna capaz de dar conta da esperança que há nele, e uma espiritualidade nada íntima, mas que pode ser compartilhada, dando felicidade, gosto de viver e de acreditar; que aprenda a celebrar uma liturgia que... celebre o gesto salvífico de Deus, e não a exibição vã e patética do seu ego; que em particular se torne um homem de relações, que respeite o mistério do outro e não se aproveite da sua vulnerabilidade, que saiba amar sem possuir e se deixar possuir, que saiba ser amigo sem abusar de nenhum carinho, que sabe colocar Deus no centro de cada relação, não só porque o centro pertence ao Eterno, mas porque este é o sentido do seu celibato...
Por outras palavras, é o horizonte pastoral que traça o significado da identidade sacerdotal e indica a pedagogia correspondente ou o caminho educativo que conduz nessa direção, na formação inicial e permanente. É o princípio que anima também a Ratio, que talvez pudesse ter sido ainda mais explícita e concretamente expressa, mas que, no entanto, é indicada como aquilo que inspira também todo projeto educativo neste momento da vida eclesial.
Em perfeita coerência com o que acabamos de dizer, a Ratio faz uma proposta precisa em termos de horários e locais de formação.
A proposta é a de um período de formação fora do Seminário, de fato situado entre a conclusão do período de dois anos de discipulado, como experiência pastoral, caritativa e missionária. É uma espécie de “iniciação à Igreja e ao mundo”, através do conhecimento direto e imediato da comunidade cristã de formas que os formadores e os bispos serão capazes de identificar. Mas não só para adquirir informações úteis para uma espécie de “inteligência artificial pastoral” ou para “praticar” e “experimentar”, mas sobretudo com a disponibilidade interior de se deixar formar pela missão, pelo contexto ministerial, pelo evangelho que se anuncia, mas também das relações humanas, da fé das pessoas, do acompanhamento de quem ainda não chegou a acreditar, das críticas de quem sai da Igreja, dos jovens que não se sentem compreendidos por uma "Igreja velha e fechada, distante e repetitiva, triste e fixada em moral", mas também pelo sofrimento, pelas dúvidas, pelas provocações dos acontecimentos, da história, da cultura...
Por outro lado, se a missão é o horizonte formativo, é perfeitamente natural que já seja de algum modo o lugar onde se realiza a própria formação e onde pode nascer e desenvolver-se uma sensibilidade verdadeiramente presbiteral, ou que existam também outros agentes formativos além das clássicas e institucionais, outras mediações educativas ligadas à vida e ao que será então a vida normal do futuro sacerdote.
Há um facto que penso que todos poderíamos subscrever: nunca um seminário formou um sacerdote no sentido pleno da expressão, é a vida que forma o discípulo de Jesus e o pescador de homens! A vida com todas as suas tempestades e complexidades, mas sempre como mediação misteriosa da ação do Pai, nosso único “Pai mestre”, que forma em cada um o coração do Filho pela ação do Espírito. Mas sempre dentro e através da própria vida, até o momento da morte, onde a formação atingirá o seu ápice.
É, afinal, a ideia teológica e a verdadeira motivação da formação permanente, que a Ratio considera justamente como o paradigma de todo o caminho formativo, e do qual o inicial representa apenas o primeiro momento. Mas o que é essencial, porque coloca ou deveria colocar o sujeito em condições de se deixar moldar pela vida ao longo da vida, ou de aprender constantemente com ela, com os outros, santos e pecadores, com sucessos e fracassos, em todas as épocas e ambiente... Saber muito bem que é “cheio de graça”, ou que “tudo é graça” (Bernanos).
Esta disponibilidade humilde e inteligente é, de facto, a condição da docibilitas, sublinhada pelo documento, que pressupõe um caminho de libertação dos medos e das resistências, da rigidez e dos fechamentos face à realidade em geral, às relações e aos outros, mesmo de Deus e sua palavra. É precisamente esta liberdade que faz com que a pessoa docibilis, sacerdote que aprendeu a aprender, com tudo e com todos, se deixe tocar, provocar e colocar em crise pela vida. Portanto, também criativamente fiel à sua escolha e capaz de remotivá-la, não apenas de não transgredi-la, como costumam fazer aqueles que são meramente dóceis.
A rigor, só uma pessoa docibilis (não apenas docilis), no plano psicológico e espiritual, poderia ser ordenado presbítero, porque está livre de qualquer presunção de já ter chegado, de só ter que ensinar os outros e de não ter nada a aprender da vida e dos relacionamentos (porque ele nunca aprendeu a aprender). A liberdade destas presunções ruinosas permite tornar-se um companheiro de viagem leve numa Igreja sinodal, solidária com o caminho de cada homem e de cada mulher.
Se o presbítero é este companheiro de viagem, que partilha as dificuldades e as alegrias deste caminho, então este tempo de experiência pastoral extra moenia proposto pela Ratio é verdadeiramente significativo e importante. Provavelmente poderia ter um papel educativo ainda mais relevante e ocupar um espaço de tempo mais adequado. Alguns chegam a dizer que toda ou quase toda a formação sacerdotal inicial deveria ocorrer neste tipo de contexto missionário, e não no seminário que representa uma situação de vida um tanto artificial, ou que quem se torna sacerdote nunca mais viverá.
Como já foi mencionado, o documento deixa às Igrejas locais individuais a liberdade de se movimentarem com criatividade e atenção às diferentes situações territoriais. Para que todo o caminho faça crescer cada vez mais um sacerdote missionário, com a paixão pela missão no coração!
Por fim, ainda me referiria à missão e ao sentido de missão para abordar também a questão que motivou uma certa discussão na elaboração deste texto, até onde sabemos, a das pessoas com orientação homossexual.
O texto fala sobre isso em dois números (43-44), nos quais talvez se vislumbre uma dupla linha de interpretação. Por um lado, o incipit do n. 44, onde se reporta a Ratio Fundamentalis de 2016 [4], com os 3 critérios já propostos, por sua vez, pela Instrução de 2005 e que proíbem a admissão ao Seminário e às Ordens Sagradas de "aqueles que praticam a homossexualidade, presentes". tendências homossexuais profundamente enraizadas ou apoiam a chamada cultura gay” [5]. Critérios precisos, ao nível da conduta prevalecente, mas que exigiriam pelo menos uma certa reformulação, e que pelo menos aparentemente não encontram seguimento no resto da mesma questão. Onde a discussão se abre a uma leitura mais ampla e detalhada e a critérios mais diretamente ligados à identidade da vocação e missão presbiteral e à totalidade da pessoa.
A Ratio pede para verificar se o jovem é capaz de “integrar” [6] a sua orientação sexual, ou seja, não só de reconhecê-la como parte de si mesmo, mas de vivê-la e geri-la “em coerência com a natureza e os objetivos da vocação sacerdotal. É isto que inspira a vida e o estilo relacional do sacerdote celibatário e casto” (43).
Esta parece ser uma afirmação importante para mim. O que significa que na vida da pessoa chamada existe um ponto de referência prioritário e último, constituído pela sua identidade e missão, que é como uma regra natural de vida: indica como viver a sua própria afetividade e inspira o seu estilo relacional, portanto também a sua própria orientação, na função e ao serviço do ministério que escolheu. E, portanto, encoraja-nos a viver a própria orientação não como um obstáculo, mas como uma potencialidade, com a criatividade de quem quer ser fiel ao chamado, na amizade, nas relações de certa intensidade, no envolvimento afetivo, na liberdade de amar e deixar-se amar.
A castidade torna-se então a marca do modo de amar e de viver as relações típicas do celibatário e do sacerdote celibatário, chamado a viver muitas relações, mas sem possuir nenhuma. A castidade é o oposto da possessão em todas as áreas da vida.
Isto não significa apenas controlar os próprios impulsos sexuais, mas crescer na qualidade das relações evangélicas livres de qualquer forma de poder sobre os outros e de autorreferencialidade, e capazes de guardar respeitosamente os limites da intimidade própria e alheia, ou o mistério do Eu e você. “Ter consciência disto é fundamental e indispensável para a realização do compromisso e da vocação sacerdotal” (44).
Uma escolha é livre quando não é motivada por medo ou cálculo, mas pela atração por um valor/ideal que a pessoa chamada descobriu e sente importante e precioso, algo verdadeiro-belo-bom em si e que o torna verdadeiro-belo-bom a sua vida, e não só para si, mas também para os outros, na Igreja [7].
A escolha é responsável quando o sujeito está em condições de viver essa opção com a renúncia e as consequências que ela implica, como qualquer escolha. Isto é, no caso do celibatário, quando a atração dá força para abrir mão de outra coisa, que o sujeito também sente desejável e que lhe custa dizer não, mas não a ponto de não poder prescindir disso. Consequentemente, essa renúncia é possível, é um “não” a algo que se torna credível por um “sim” a outra coisa, é uma renúncia livre e significativa, não uma frustração que deixa um gosto amargo na boca e um vazio no coração, e que mais cedo ou mais tarde corre o risco de explodir.
Outro critério precioso, recomendado pelo texto, é o de não isolar a tendência em si, separando-a da personalidade como um todo, nem discernir a autenticidade vocacional a partir apenas da orientação sexual (como se fosse o elemento decisivo), mas - pelo menos pelo contrário – “captar o seu significado no quadro geral da personalidade do jovem” (44). É a pessoa inteira que está no centro do discernimento, e não um único componente da sua personalidade.
Porque, como sabemos, mais importante e decisivo do que a própria orientação é a forma de a vivenciar e, portanto, o equilíbrio e a harmonia geral da pessoa em tomar consciência dela, em aceitá-la como parte de si, em geri-la com suficiente liberdade e serenidade, com a renúncia que implica e, em particular, na integração com a natureza e os objetivos da vocação presbiteral.
Mas, como se vê claramente, todos estes critérios vão além da questão da orientação sexual como tal, mas procuram lê-la numa perspectiva duplamente integral: à luz da vocação e missão da pessoa chamada, e no quadro geral da sua maturidade e consistência pessoal.
E precisamente por isso, creio, permitem-nos lê-lo corretamente no final, em vista do discernimento.
[1] É singular que, num texto como este sobre a formação sacerdotal em geral, o documento do Concílio Vaticano II Ad Gentes seja citado duas vezes (exatamente nos números 4 e 13)!
[2] Veja as pesquisas periódicas do Centro Toniolo sobre a atitude dos jovens em relação à Igreja, prontamente registradas e analisadas por P. Bignardi.
[3] Ele fala sobre isso em dois lugares, no n. 41 e n. 81, nota 112, mas interpretando-o de forma ainda parcial e ligado sobretudo à direção espiritual.
[4] Cf. Congregação para o Clero, O dom da vocação presbiteral. Ratio Fundamentalis Institutionis Sacerdotalis, Roma 2016, n. 199.
[5] Cf. Congregação para a Educação Católica, Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional das pessoas com tendências homossexuais em vista da sua admissão ao Seminário e às Ordens Sagradas, Roma 2005, n. 2.
[6] Nos dois números que estamos analisando o verbo “integrar” é usado duas vezes.
[7] É a lógica evangélica do tesouro encontrado no campo, cf. Mt 13, 44-46.