05 Abril 2024
"São as duas almas da Escola: aquela foucaultiana da Escola-dispositivo e aquela heideggeriana da Escola-clareira. Se na primeira o sujeito pode sentir-se moído, entediado, submetido a um saber completamente desligado da vida, na segunda torna-se possível encontrar o conhecimento como luz, como uma clareira que de repente se abre no meio da mata cerrada.", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano, em artigo publicado por Repubblica, 29-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "o empresário e o sábio televisivo talvez não percebam que a sua legítima crítica da Escola como lugar de um conhecimento inútil à vida esconde em si o mito hipermoderno da chamada “autoformação”, ou seja, a ilusão de uma formação que, sem passar por mais nenhum Outro, se constituiria por si mesma. A natureza perversa dessa concepção da formação é evidente: gostaríamos de negar a função fundamental que a relação entre as gerações exerce em cada processo de formação para afirmar a ideia de que, em última análise, é possível tornarmo-nos pais de nós mesmos".
No nosso tempo louvamos a vida real em oposição ao conhecimento estéril da Escola. Um conhecido empresário e um sábio igualmente conhecido da televisão, de maneiras diferentes, mas substancialmente semelhantes, lembram-nos que a verdadeira Escola não é a Escola, mas a vida real da qual o conhecimento escolar seria apenas uma pálida imitação.
E como se pode culpá-los? A prerrogativa na vida vale muito mais do que qualquer forma de conhecimento escolar; os verdadeiros ensinamentos não vêm do conhecimento, mas da experiência; a formação mais autêntica é aquela que surge do impacto, às vezes até cruel, com a vida; não é a escola, mas a vida real que ensina o que não pode ser aprendido na escola. Mas há uma vida da Escola que, para o bem ou para o mal, contribuiu e ainda hoje contribui de forma essencial para dar uma forma singular à vida de cada um.
Que vida seria essa? Em primeiro lugar, a vida do conhecimento. Mas pode existir um conhecimento que esteja a serviço da vida? Nunca deveríamos esquecer que o conhecimento da Escola não é apenas um acúmulo de noções ou de informações divididas em disciplinas especializadas, mas que é antes de tudo o lugar de um encontro. Com o que? Com uma luz. Se o conhecido empresário e o sábio televisivo têm razão em criticar uma versão empoeirada e antiquada da Escola que apenas distribuiria um conhecimento que já nasceu morto, estão completamente errados ao confundir essa versão da Escola com a vida da Escola em si.
A Escola não é apenas um dispositivo disciplinar ou burocrático, desprovido de alma, que recicla saberes mortos, mas é também uma experiência possível da luz. Aconteceu a muitos que, enquanto vivenciavam os danos que a Escola-dispositivo pode causar numa jovem vida, também vivenciavam, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, o encontro com um testemunho da força vital de um conhecimento que mudaria suas vidas para sempre.
São as duas almas da Escola: aquela foucaultiana da Escola-dispositivo e aquela heideggeriana da Escola-clareira. Se na primeira o sujeito pode sentir-se moído, entediado, submetido a um saber completamente desligado da vida, na segunda torna-se possível encontrar o conhecimento como luz, como uma clareira que de repente se abre no meio da mata cerrada.
Essa segunda alma inverte a representação da Escola como um lugar separado da vida. Efetivamente, o que é a verdadeira vida senão aquela luz, aquela clareira, aquela experiência de iluminação que o encontro com um testemunho de conhecimento torna possível? A Escola não deveria ser isso em primeiro lugar? Um lugar onde o conhecimento adquire vida, se torna vida viva?
Isso é o que acontece quando um professor comenta um livro mostrando que não estão de um lado os livros e do outro a experiência, como se os livros construíssem um mundo de papel que o impacto com o mundo real faria explodir imediatamente. Quem diz que um livro é menos real do que o chamado mundo real? Quem pode dizer que a vida da Escola é menos verdadeira do que a chamada vida real? Os livros e a Escola não são lugares onde os nós mais profundos da vida são enfrentados? Não são os lugares onde a vida encontra sua verdadeira força vital? O engano, a traição, a luta, a sobrevivência, a resistência, o sofrimento, a vida e a morte não imbuem o papel de cada livro digno desse nome?
O empresário e o sábio televisivo talvez não percebam que a sua legítima crítica da Escola como lugar de um conhecimento inútil à vida esconde em si o mito hipermoderno da chamada “autoformação”, ou seja, a ilusão de uma formação que, sem passar por mais nenhum Outro, se constituiria por si mesma. A natureza perversa dessa concepção da formação é evidente: gostaríamos de negar a função fundamental que a relação entre as gerações exerce em cada processo de formação para afirmar a ideia de que, em última análise, é possível tornarmo-nos pais de nós mesmos.
Mesmo nesse caso há algo de verdadeiro: não há formação se não houver efeito de subjetivação.
No entanto, esse efeito não surge do sujeito em si, mas é gerado apenas pelo encontro com o Outro. Também pode ser o encontro com o simples pó de giz. É o que me contou certa vez por um professor de física do ensino médio que identificou o nascimento da sua paixão pela física pela impressão que deixaram nele as aulas de seu velho professor, tão imerso na sua explicação no quadro negro que sempre saía da sala coberto de giz branco. Quando percebeu que a mesma coisa acontecia com ele quando terminava as aulas para os seus jovens estudantes, percebeu que naquele pó de giz havia luz. Aqui está um exemplo de transmissão do desejo de saber de uma geração para outra; aqui está um exemplo da vida da Escola.
Alguns, em vez disso, pensaram que para cobrir a lacuna que separa a vida real da Escola fosse necessário vincular a escola ao mundo do trabalho. Erro: não adianta estacionar nossos filhos em locais profissionais antes do tempo. Eles precisam do pó de giz que se assemelha à luz.
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Quanta vida existe num quadro negro. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU