Páscoa, sofrimento de Cristo e o mal no mundo. Destaques da Semana no IHU

Confira os destaques de 23 a 27 de março

Arte: Marcelo Zanotti | IHU

Por: João Vitor Santos | 01 Abril 2024

Na Semana Santa de 2024, em meio às guerras, à fome e a crimes que são revelados com requintes de dissimulação e perversidade, o IHU convida, nos Destaques da Semana, a um mergulho na reflexão que cruza o sofrimento de Jesus com o sofrimento do mundo, no qual, apesar do sacrífico do Filho de Deus, ainda vive aturdido pelas brumas do mal.

Sofrimento de Jesus, sofrimento do mundo

Estamos no tempo da Páscoa de Jesus, o ponto alto da narrativa sobre um Deus que se faz humano, deixando um pouco de lado a ideia de Senhor todo poderoso, para viver as dores da humanidade. É assim que o teólogo Leonardo Boff, em videoconferência promovida pelo IHU nesta semana, convida-nos a olhar para a história do Cristo. Mas, se Jesus, o filho de Deus, foi entregue em sacrifício para que mais nenhum ser vivo seja imolado, como compreender o mundo de hoje, em que a guerra, a fome, a destruição ambiental e as disputas viscerais põem tantos em sacrífico? “Temos vivido agora, nestes tempos, a verdadeira Sexta-feira Santa”, diz Leonardo.

A conferência surgiu das provocações de Boff no texto Para onde estamos indo? e integra a programação de Páscoa do IHU. Durante cerca de uma hora e meia, o teólogo mergulhou na mística pascal cristã e a aproximou com fatos da realidade concreta. Ele falou de fome, de guerra, de desunião, de degradação ambiental e de morte. Mas, olhando para essa realidade dura e concreta, repete algo já dito tantas vezes por ele aqui no IHU: “a vida plena sempre vence a morte”, algo também presente no texto Deus e o sofrimento humano: questão nunca resolvida.

“A Ressurreição é uma insurreição contra a ordem imposta”

E é neste olhar na realidade concreta atravessada pela narrativa da Paixão de Cristo que Leonardo Boff traz mais uma luz para estes tempos perigosos que vivemos. Para ele, é preciso não só ter em mente que Jesus venceu a morte como também sempre esteve ao lado dos pequeninos e nunca aceitou a ordem imposta, uma ordem de fome, de morte, de guerra, de disputas e destruições e que faz sofrer. Por isso, crê na vitória da luz, como no Sábado Santo. Afinal, depois das trevas que fecham o céu na Sexta-feira Santa, vem como uma Ressurreição que vence a ordem imposta. Assim, se vivemos nestes tempos a densa e perigosa Sexta da Paixão, a narrativa do Cristo nos inspira a esperançar na luz que raiará no Sábado do Fogo Novo.

Nenhum sofrimento é em vão

Leonardo Boff destaca também que nenhum sofrimento é em vão. É claro que diante da dor nos prostramos e, como o grito de Jesus na Cruz, nos questionamos por que existe tanta dor e por que Deus parece silenciar. Para o teólogo, são tempos de espera, mas também de ação. Estar ao lado de quem sofre é uma delas, algo que o próprio Cristo faz até o fim. E podemos ainda aliar a perspectiva de Dom Pedro Casaldáliga, que vê em cada martírio o sofrimento de Cristo e o chamado a pensar que nenhum sofrimento há de ser em vão.

Páscoa, tema caro ao IHU

Tradicionalmente, a Páscoa IHU se faz como uma proposta do Instituto Humanitas Unisinos – IHU de, a cada ano, colocar em foco os tempos que temos vivido à luz do mistério pascal. Neste ano, além da conferência de Leonardo Boff, também foi realizada a palestra intitulada “A cruz de Jesus e sua extrema compaixão para com as vítimas”, com o Prof. MS Antônio Ronaldo Vieira Nogueira, da Faculdade Católica de Fortaleza – FCF.

Mas essas são algumas entre as propostas trazidas pelo IHU em seu site. Tensionar a pensarmos a Paixão de Cristo como a Paixão do Mundo através de uma teologia da cruz encarnada é algo presente, o que em 2022 ainda rendeu uma página especial preparada por Wagner Azevedo. Neste repositório, acessível aqui, estão reunidas as temáticas pelas quais podemos, na cruz e na esperança, viver no tempo presente.

Arte: IHU

A Paixão no cinema

Pela arte, também somos levados a compreensões que por vezes não conseguimos na aspereza da vida. É por isso que o IHU insiste em ciclos que têm como base filmes que, numa mística muito própria, nos levam a descobrir um sagrado. São muitos longa-metragens que vêm sendo trabalhados pelo parceiro Faustino Teixeira no círculo Filmes em Perspectiva. Neste tempo de Páscoa, lembremos que a Paixão de Cristo no cinema vem sendo tema no IHU. Entre as reconstituições mais emblemáticas desta narrativa está O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini.

A obra de Pasolini foi muito trabalhada pelo IHU, chegando a ser tema de capa de uma das edições da Revista IHU On-Line:

Sua obra vai no sentido de capturar a narrativa sobre a experiência do Cristo na concretude da vida cotidiana, como também indica Vladimir Lacerda Santafé, em artigo publicado no Cadernos IHU ideias:

E aguarde, o cineasta Martin Scorsese também tem se dedicada a narrativa de Cristo e, pelas conversas com membros da Santa Sé, logo teremos a sua releitura nos cinemas.

A eloquência de um grito

Tanto Leonardo Boff quanto Antônio Ronaldo Vieira Nogueira lembraram de algo recorrente, aqui no IHU, quando falamos na teologia da cruz: o grito de Jesus na cruz “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34-39). Francine Bigaouette, Alexander Nava e Carlos Arthur Dreher, em 2014, mergulham nesta temática no artigo O grito de Jesus na cruz e o silêncio de Deus. Reflexões teológicas a partir de Marcos 15,33-39, publicado no Cadernos IHU ideias. A frase, escrita pelos autores na apresentação do texto, é válida para a atualidade: “a reflexão sobre o significado e as ressonâncias teológicas do grito de Jesus na cruz é um desafio sempre atual para a fé e a teologia cristã em função das muitas manifestações do mal, do sofrimento, da injustiça e da violência no mundo”.

Já em artigo mais recente, de 2022, Junior Vasconcelos do Amaral traz outros ares para a reflexão a partir do texto “O grito de abandono de Jesus na cruz e o silêncio de Deus: reflexões à luz do Evangelho de Marcos”, também publicado no Cadernos IHU ideias. Além da narrativa acerca do grito em si, o autor reconstitui os instantes antes da crucificação como forma de lastrear sua análise que traz, “em primeiro plano, antropológico-existencial, a experiência de desamparo experimentada e vivida por Jesus; em seguida, sua experiência no Getsêmani até o grito na cruz, como clímax da narrativa de Marcos; por fim, a teologia do servo sofredor e o silêncio de Deus, como a resposta acolhedora de Deus à vida de Jesus, seu Filho”.

O grande expoente do mal é o sofrimento

Voltando à conferência de Leonardo Boff desta semana, percebemos que ele entende que o mal não pode ser extirpado, que está entre nós. No entanto, aponta que precisamos ser vigilantes e desviarmos das ciladas deste mal. Andrés Torres Queiruga, em entrevista concedida ao IHU em 2021, em tempos de pandemia, aponta que “o grande expoente do mal é o sofrimento, que é justamente aquilo que não queremos”.

Boff complementa esta ideia ao recomendar que, ao nos colocarmos ao lado de quem sofre, também é uma forma de abrandar essa dor e desnutrir o mal. Mas, o que dizer? Para Boff, apenas a presença basta.

Um silêncio ainda mais eloquente

Muitas vezes, nos questionamos sobre o silêncio de Deus no sofrimento. Mas o que este emudecimento pode estar a nos apontar? Na missa de Domingo de Ramos, o Papa Francisco renunciou ao direito da homilia e silenciou-se. Houve até que dissesse que problemas de saúde o impediam de proferir seu sermão, outros que foi cansaço de tanto erguer a voz e não ser escutado. Nada disso, foi opção.

Mais tarde, Francisco só volta a falar na oração do Angelus. Mas o Papa teria nos provocado a pensar sobre o silêncio de Deus? Para Riccardo Cristiano, jornalista italiano, “o Papa quis significar ao mundo, deliberadamente, que a Igreja espera, com fé, com confiança, a luz, mesmo nas trevas, mas pediu a todos nós, individualmente, um profundo exame de consciência, crentes e não crentes. E ele não encontrou melhor maneira de dizer isso do que com o silêncio”. Quem sabe, um silêncio na presença, como também nos incitou a pensar Leonardo Boff.

O mal no caso Marielle Franco

Nesta edição dos Destaques da Semana, nos dedicamos a refletir a partir da Páscoa de Cristo e também falamos do mal no mundo. Na semana em que a angústia e o alívio da solução do caso do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, não podemos deixar de citar o quanto o mal se revela neste caso. Um mal que se perfila com o crime, com o ódio e com a ganância, que faz os perversos dissimularem ombros amigos para chorar as vítimas enquanto trabalham pela impunidade. Que neste tempo de Páscoa, quando se configura um momento chave e ponto importante de inflexão na relação entre o crime organizado e o Estado brasileiro, possamos olhar além e, com justiça, construir tempos melhores. Raúl Zibechi, no artigo Narcotráfico e forças armadas, que também pode ser lido em perspectiva com o caso Marielle, nos provoca pensar: “está na hora de deixarmos de acreditar que o poder político pode fazer algo contra o crime organizado. O narcotráfico está no núcleo do sistema. O capitalismo e o seu Estado são o crime organizado, por isso não podem ser combatidos separadamente”.

Na próxima segunda, às 10h, o IHU discute o Caso Marielle e a questão da Segurança Pública no país.

 

Com os votos de uma Feliz Páscoa, na esperança do sol que raiará por sobre as trevas, fazemos coro ao poema de Flávio Lazzarin, que sempre colabora com o IHU.

Como dizer Páscoa
em Gaza e Jerusalém
em Kiev e Moscou
na Líbia, Iêmen, Síria
Azerbaijão e Arménia
Etiópia
Afeganistão
Sudão...
E, perto de nós:
Abya Yala
Pindorama
Maranhão
em que os donos do dinheiro e do poder
roubam as terras
e matam
desde sempre
indígenas, camponeses, quilombolas,
os pobres e os pequeninhos de Deus.

Diante de tanto sangue, dor, morte e medo
só as suas palavras resistem:
"Pai, perdoa-lhes,
porque eles não sabem o que estão fazendo."
Mas, então, que o sagrado Silêncio
nos obrigue a calar-nos:
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
Assim a Páscoa será celebrada em silêncio, em expectativa vigilante e fiel,
única semente da Esperança
diante de toda pontual negação da vida,
Possa este silêncio ser o útero
em que germinam gritos amorosos de luta
de quem acredita
que Jesus venceu a morte
e que Ressurreição é a última
definitiva Palavra.