Ucrânia, as armas sem fio da diplomacia do Vaticano

Foto: Oleksandr Ratushniak | UNDP

Mais Lidos

  • Esquizofrenia criativa: o clericalismo perigoso. Artigo de Marcos Aurélio Trindade

    LER MAIS
  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • O primeiro turno das eleições presidenciais resolveu a disputa interna da direita em favor de José Antonio Kast, que, com o apoio das facções radical e moderada (Johannes Kaiser e Evelyn Matthei), inicia com vantagem a corrida para La Moneda, onde enfrentará a candidata de esquerda, Jeannete Jara.

    Significados da curva à direita chilena. Entrevista com Tomás Leighton

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

03 Mai 2023

O desmentido que vem de Kiev é pesado: o governo da Ucrânia não está ciente de uma missão de paz promovida pela Santa Sé para deter o conflito em curso e, além disso, “o presidente Zelensky não concordou com tais discussões em nome da Ucrânia". O Papa Francisco, durante a viagem de volta de Budapeste, informou que o Vaticano estava tentando jogar as suas cartas no tabuleiro de xadrez da diplomacia internacional: “mesmo agora – disse o pontífice - uma missão está em andamento, mas ainda não é pública. Veremos como. Quando será pública, vou contar".

A reportagem é de Francesco Peloso, publicada por Domani, 02-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Talvez uma afirmação precipitada, porém recebida com irritação pelas autoridades ucranianas que informaram sua opinião sobre o assunto através da rede estadunidense da CNN, e em casos como este também o canal escolhido para responder tem seu significado. A seguir, Moscou também divulgou que desconhece qualquer tipo de intervenção da diplomacia do Papa; desta vez o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov falou via Tass, a agência de imprensa oficial.

As palavras do Pontífice permanecem, portanto, envoltas em dúvidas e incertezas, certamente não o melhor cenário para uma ação diplomática eficaz.

As suspeitas de Kiev

Afinal, desde o início da invasão, Francisco tentou de todas as formas exercer um papel de mediação entre Moscou e Kiev, o Vaticano tentou repetidamente, também por meio da obra de um diplomata experiente como o secretário de Estado Pietro Parolin, abrir um caminho para a negociação, para um cessar-fogo ou uma trégua que permitisse que representantes russos e ucranianos se sentassem a uma mesa ou para iniciar um diálogo pelo menos à distância.

No entanto, é fato que essa estratégia até agora não trouxe resultados concretos. O governo de Kiev sempre viu o ativismo vaticano com certa desconfiança, acreditando que a Santa Sé fosse demasiado equidistante ao avaliar as razões do agressor e aquelas do agredido, avaliação repetida até bem recentemente. Moscou, por sua vez, jogou esconde-esconde por um tempo com o Vaticano, alternando disponibilidade e fechamentos repentinos e elevando os tons conforme chegasse uma palavra mais ou menos explícita de condenação à conduta russa na guerra.

Em dezembro passado, o próprio Parolin, explicando como o próprio Vaticano está desempenhando todos os esforços para parar o conflito, admitia que não havia condições para abrir um diálogo, portanto concluía: “Estamos tentando levar adiante iniciativas que possam levar à paz, mas são sempre confiadas à vontade das partes de se pôr um fim. Sem essa vontade, não será possível construir, apesar dos esforços e tentativas”. Naturalmente numa crise dessa magnitude que tem implicações econômicas e geopolíticas relevantes, uma virada é sempre possível, porém o impasse diplomático é evidente.

Incertezas vaticanas

O que influiu negativamente no papel da Igreja de Roma, pelo menos na primeira fase do conflito, foi a dificuldade com que o papa reconheceu as responsabilidades de Moscou na abertura das hostilidades; uma posição que, posteriormente, foi modificada ao afirmar, segundo determinados critérios éticos e de proporcionalidade, o direito à autodefesa diante da invasão e o princípio de uma paz que fosse fundada no respeito pelo direito internacional.

Novamente, e constantemente, a voz do Papa levantou-se para denunciar o risco de uma escalada nuclear e o problema relacionado aos recursos destinados aos armamentos que se multiplicam a cada conflito, incluindo aquele ucraniano. Nessa frente, as intervenções do pontífice provavelmente contribuíram para sensibilizar as opiniões públicas de vários países sobre o risco de um recurso aos arsenais atômicos que, embora apenas ameaçado, nunca havia estado tão próximo.

Nesse ínterim, deve-se recordar, de parte da Santa Sé, bem como das estruturas católicas empenhadas nos países que fazem fronteira com a Ucrânia e no próprio território ucraniano, que foi realizado um importante papel humanitário, tanto através das ajudas à população civil residente como aos milhões de refugiados que fugiram para o resto da Europa para escapar das bombas.

A mediação humanitária

Não só: o Vaticano conseguiu mediar a libertação de vários prisioneiros ucranianos detidos pelos russos e, finalmente, está tentando fazer retornar para a Ucrânia as crianças sequestradas e levadas para a Rússia. Nesse sentido, o primeiro-ministro ucraniano, Denys Shmyhal, em visita ao papa nos últimos dias, pediu a ajuda do papa. Francisco, em sua viagem de volta da capital húngara, disse a respeito que isso é possível "porque a Santa Sé atuou como intermediária em algumas situações de troca de prisioneiros, e através da embaixada isso deu certo, penso que possa dar certo também essa outra (das crianças)”.

“É um problema de humanidade - acrescentou – mais que um problema de espólio de guerra ou de deportação. Todos os gestos humanos ajudam, e os gestos de crueldade não ajudam. Temos que fazer tudo o que for humanamente possível". Essa situação explica que, em todo caso, canais entre a Santa Sé em Kiev e Moscou estão abertos, mas a questão parece limitar-se ao aspecto humanitário.

O problema de Kirill

Também porque uma via de comunicação com Moscou para o Vaticano podia ser representada pela relação com o patriarcado ortodoxo de Kiev; mas o próprio Kirill, tentando dar uma cobertura ideológica ao Kremlin, ou seja, definindo a invasão da Ucrânia como uma espécie de guerra santa contra os valores decadentes do Ocidente, perdeu toda a credibilidade, tanto que o próprio Francisco teve que lembrá-lo que os líderes religiosos não devem comportar-se como "clérigos de Estado". Também não se pode esquecer que o conflito ucraniano teve pesadas consequências na frente religiosa, dividindo o mundo ortodoxo na Ucrânia e ampliando o isolamento de Moscou.

Parece, portanto, que a típica ostpolitik da Guerra Fria não possa mais ser o método da diplomacia na crise atual, nem mesmo daquela do Vaticano. Nesse sentido é também relevante a recente viagem de Francisco a Budapeste, instrumentalmente utilizada pelo governo de Viktor Orban, o líder europeu mais próximo de Vladimir Putin, sobretudo para tentar reabilitar sua imagem internacional mais que para servir de respaldo político à tentativa do Vaticano de abrir uma negociação entre Moscou e Kiev.

Leia mais