O lamento da Paz (no silêncio ensurdecedor da filosofia). Artigo de Paolo Santori

“Hoje muitos falam de Paz, mas ninguém consegue dar-lhe voz. Mas a paz, mesmo em filosofia, não é coisa só de grandes. Nas coisas pequenas pode ser feito muito.”

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

17 Março 2023

Em 1º de maio de 2019, o Papa Francisco convocou jovens acadêmicos, ativistas e empreendedores para buscarem caminhos na direção de uma nova economia em torno da mesa comum de Assis. A pandemia acabou postergando o primeiro evento presencial, originalmente agendado para março de 2020.

No entanto, o processo tomou corpo de forma online (incluindo as duas primeiras edições do evento – em 2020 e 2021), e, na véspera do dia de São Francisco, foi lançada no sítio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU a Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”.

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O processo de realmar (dar nova alma) à economia passa, inexoravelmente, pela busca da paz. Neste breve artigo de cunho filosófico, reflete-se sobre formas possíveis e necessárias de se dar voz à paz.

O artigo é de Paolo Santori, Professor de Filosofia e Economia da Universidade de Tilburg. A tradução é de Andrei Thomaz Oss-Emer,  Doutorando em Filosofia pela UFPel. Ambos integram o projeto da Economia de Francisco.

O texto foi originalmente publicado no site do evento Economia de Francisco

Eis o artigo. 

Há mais de quinhentos anos, um homem deu voz à Paz. Era Erasmo de Rotterdam, filósofo, humanista, cidadão da Europa e do mundo inteiro. Em 1517 escrevia a Querela Pacis, o lamento da Paz, onde é a Paz, na primeira pessoa, que se dirige ao leitor ("se eu sou aquela Paz..."). Para nós, a posteridade, Erasmo deixa uma lição que vai além do conteúdo específico do texto: a Paz precisa sempre de alguém que lhe dê voz. Não consigo imaginar o peso sobre os ombros de Erasmo, embora intelectualmente muito largos, em dar voz à Paz, uma responsabilidade enorme, mas posso compreender a urgência decorrente de um mundo devastado por discórdias e guerras (aquele 'lamento' antecipou profeticamente as guerras de religião que chocariam a Europa nos séculos vindouros). É a mesma urgência que temos hoje na Europa (porque do mundo, infelizmente, essa urgência nunca desapareceu).

Muitos hoje falam da Paz, mas ninguém é capaz de lhe dar voz. A política e o debate público dividem-se sobre o tipo de paz possível: alguns falam de paz a todo custo, outros de paz justa. Se vai às ruas como consequência, como demonstraram as duas manifestações organizadas na Itália em Roma e Milão em 5 de novembro. O Papa Francisco é de fato o único líder político a falar pela Paz hoje, mas nem mesmo ele sozinho pode dar-lhe voz plenamente. Erasmo nos ensina que dar voz à Paz é tarefa da filosofia. Para onde foram os filósofos e filósofas? Por que aqueles que hoje estudam e ensinam filosofia não dedicam suas melhores energias a fornecer novas e melhores categorias para pensar a Paz? Existe um tema filosófico mais importante? Já existiu?

O filósofo Norberto Bobbio, falecido em 2004, há muito tempo se ocupava com a Paz – em 2022 algumas de suas reflexões foram republicadas com prefácio do Papa Francisco. Para Bobbio, a paz só pode ser pensada a partir do seu oposto, a guerra. Se se quer dar voz à Paz, seriamente, as armas devem ser silenciadas. É uma tese compartilhável, mas pensamos de verdade que a Paz não pode ter voz própria? Fora da metáfora, podemos oferecer uma definição, um modelo, uma experiência que represente o que entendemos por Paz? O caminho para deslegitimar qualquer guerra possível no presente e no futuro é fazer com que a Paz tenha voz própria. A filosofia deveria cuidar disso hoje, outros já estão pensando na guerra e na diplomacia. Gostaria de ter uma resposta, de estar preparado para dar voz à Paz, de separar a sua voz do ruído da guerra, mas não tenho os 'ombros intelectuais' de Erasmo. Daqui o meu apelo às grandes pensadoras e grandes pensadores de hoje, façam-se ouvir! Se você já está fazendo isso, faça com mais força. Não conta o volume da voz na TV, nem o número de seguidores nas redes sociais, muito menos o tamanho da manchete e do seu nome em um jornal nacional: são a profundidade e o rigor intelectual que vão dar medida à sua voz.

Hoje muitos falam de Paz, mas ninguém consegue dar-lhe voz.” Mas a Paz, também em filosofia, não é coisa só de grandes. Nas coisas pequenas pode ser feito muito. Na Universidade de Tilburg, onde leciono, este ano fui incumbido do curso de Filosofia Política. É o primeiro curso que jovens da graduação e mestrado são matriculados em suas trajetórias de estudos. A par dos temas clássicos como soberania, formas de governo, justiça, legitimidade, contratos sociais e estados de natureza, pedi para que se acrescentasse o tema 'paz'. Na semana passada lemos e comentamos Erasmo, Christine de Pizan e Montesquieu. Perguntamo-nos se a Paz é um bem em si ou pelas suas consequências, se há semelhança entre a Paz interior de uma pessoa e a de um povo, se os comércios (e que tipo de comércios) favorecem ou obstaculizam a Paz. Também nos impressionou o título de outra obra de Erasmo, publicada alguns anos antes (1515): "Dulce bellum inexpertis", "doce é a guerra para quem nunca a viveu". Através do nosso diálogo temos experimentado dar uma tênue voz à Paz, a pensar-nos companheiros e companheiras de Erasmo no caminho para dar voz a quem não a tem.

Concluo este artigo com a tradução do texto do exercício que atribuí a eles (e a mim mesmo): Imagine ser uma famosa filósofa política na Europa. Dadas as circunstâncias, você decidiu replicar a escolha de Erasmo, você quer dar voz à Paz. O que você a faria dizer? Falaria apenas em nome dos seres humanos, ou de todo o planeta (animais e plantas incluídos) e das gerações futuras?

A minha resposta começa por apontar como o lamento da Paz hoje é muito semelhante ao grito da terra e dos pobres sobre os quais o Papa Francisco escreve na Laudato Si’. Qual é a sua resposta?

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