“A palavra foi feita para dizer”. Um olhar social, existencial e teológico da literatura de Graciliano Ramos

IHU promove Ciclo "Romances e Contos de Graciliano Ramos" em parceria com o teólogo Faustino Teixeira. Evento virtual inicia nesta quarta-feira, 08-03-2023

Fotomontagem sobre imagem de uma das diversas capas de Vidas Secas e paisagem de caatinga, de Glauco Umbelino via Wikimedia Commons

Por: Patricia Fachin | 03 Março 2023

"A vida na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benzia-se tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre.

Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a família sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo, como negro fugido.

Saíram de madrugada. Sinha Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, sinha Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro."

O trecho acima narra a partida da família de Fabiano, que sai do sertão nordestino com destino a uma "terra desconhecida e civilizada", e dá o tom das personagens do romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, cujo caráter é eminentemente social e retrata não somente a realidade de muitos brasileiros que viveram a década de 1930, mas a de tantos outros que até hoje se defrontam com o problema da seca, da opressão, da migração, da fome e das inquietações constantes em relação ao futuro. 


Graciliano Ramos (Foto: site Graciliano Ramos | Pixabay | Arte: Gabriela Caputo)

Sobre o seu próprio modo de retratar a realidade em seus escritos, o autor registrou certa vez:

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

Debater e refletir a obra de Graciliano Ramos é a proposta do ciclo "Romances e Contos de Graciliano Ramos", que será ministrado pelo professor Faustino Teixeira, doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. O evento será realizado no Instituto Humanitas Unisinos – IHU no primeiro semestre de 2023, com o objetivo de "apresentar os textos do autor a partir de uma progressão cronológica, favorecendo a compreensão deste 'romancista exuberante', com grande sensibilidade social". O ciclo começa na próxima quarta-feira, 08-03-2023, e se estende até 16-06-2023. Ministradas às quartas-feiras, das 14h às 16h, as aulas serão transmitidas pela sítio eletrônico do IHU, pelo canal do YouTube, pela página no Facebook e pelo Twitter.

 

A análise social da obra do escritor alagoano foi tema da revista IHU On-Line n. 274, edição intitulada "Josué de Castro e Graciliano Ramos. A desnaturalização da fome", publicada em 2008 pelo IHU. Na ocasião, João Roberto Maia, doutor em Letras Vernáculas e professor pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, e da pós-graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, resumiu a capacidade de Graciliano Ramos em expor a complexidade da natureza humana em suas personagens:

"Graciliano foi capaz de mostrar a 'condição humana intangível e presente na criatura mais embrutecida', a qual é complexa, nada tem de simples. Digamos que para Graciliano as personagens miseráveis não se reduzem a seres unidimensionais, voltados apenas à sua sobrevivência, cuja vida interior não seja digna de nenhum registro. A proeza está na capacidade de construir personagens com complexidade apesar de ser débil a comunicação entre os viventes – debilidade que constitui uma das marcas do estado de destituição a que estes estão submetidos."

 

 

Problemas existenciais e literatura

Paulo Honório é uma dessas personagens criadas pelo autor no romance São Bernardo, publicado em 1934. "Ele representa alguém seduzido pela sede de poder e que não vacila diante dos meios para alcançar o domínio de todos. Tudo o que importa é possuir e dirigir o mundo. Esse perfil traçado por Graciliano Ramos expressa de forma viva o horizonte de muitos de nossos contemporâneos, que raramente se colocaram ou colocam seriamente a questão do sentido", diz o teólogo Faustino Teixeira, em artigo publicado na página eletrônica do IHU.

Segundo ele, "Paulo Honório tem um olhar quantificado" em relação à vida. "Mesmo quando pensa na construção da igreja e da escola, sua reflexão se restringe ao poder de capital que isso implica". Tal compreensão do mundo, sublinha, pode ser observada no raciocínio da personagem:

“A verdade é que não me preocupo muito com o outro mundo. Admito Deus, pagador celeste dos meus trabalhadores, mal remunerados cá na terra, e admito o diabo, futuro carrasco do ladrão que furtou uma vaca de raça. Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível.”

Problemas sociais e literatura

De acordo com a professora Rosana Magalhães, doutora em Saúde Coletiva e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Graciliano Ramos integra a lista dos "verdadeiros 'arautos' da nacionalidade brasileira" por sua abordagem social e crítica das mazelas nacionais. "Latifúndio, escravidão, desigualdade e injustiça social nestas obras emergem como obstáculos ao bem-estar e a democracia substantiva no país", disse ao IHU.

Na mesma direção, João Roberto Maia mostrou que "a leitura do romance de Graciliano faria muito bem a muitos que hoje concebem a fome exclusivamente ou quase segundo dados estatísticos”. Um de seus clássicos, Vidas secas, exemplifica, Wander Miranda, doutor em Literatura Brasileira e professor da Universidade de Minas Gerais – UFMG, retrata as personagens de maneira real, apesar de terem sido escritos há quase um século, "porque infelizmente nossos problemas pouco mudaram".

 

 

Teologia e literatura

Como inúmeras obras literárias que dialogam diretamente com problemas filosóficos e teológicos, em Vidas secas, segundo Carlos Ribeiro Caldas Filho, mestre em Teologia e doutor em Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, é possível identificar pressupostos que orientam uma leitura teológica.

No Cadernos Teologia Pública, intitulado "Teologia e literatura: profetismo secular em 'Vidas Secas', de Graciliano Ramos", Caldas Filho aponta que à semelhança dos profetas de Israel, na leitura bíblica, em Vidas secas, "faz-se contundente crítica social". O pressuposto teológico da obra literária, explica, é a crítica profética. Vidas secas apresenta uma crítica profética (isto é, no espírito da profecia veterotestamentária) à sociedade de seus dias e ao descaso do governo em relação aos pobres e oprimidos. "Por oportuno, explicitemos que o pressuposto básico da presente proposta de leitura é a doutrina tipicamente reformada conhecida como 'graça comum', que entende que a ação de Deus para o bem do mundo não ocorre apenas, ou exclusivamente, por meio de elementos religiosos. No caso de Vidas secas, a crítica social evidentemente é elemento central, no estilo e no espírito da profecia veterotestamentária".

 

 

A seguir, publicamos uma entrevista inédita com Faustino Teixeira sobre o ciclo "Romances e Contos de Graciliano Ramos".

Faustino Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)

Faustino Teixeira possui graduação em Ciência das Religiões pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, graduação em Filosofia pela mesma instituição. É mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, na Itália. Atualmente é professor convidado da UFJF, no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, depois de sua aposentadoria como professor titular na mesma Universidade. Dos últimos livros publicados, destacamos Malhas da Mística Cristã (Curitiba: Appris, 2019). Antigo colaborador do IHU, é idealizador das publicações semanais da seção Oração Inter-religiosa e, mais recentemente, das Orações Inter-religiosas Declamadas.

Confira a entrevista.  

IHU - Professor, você retoma agora sua tradicional colaboração com o IHU, ministrando um curso sobre os romances e contos de Graciliano Ramos. Qual a razão dessa escolha e qual a importância de trabalhar com esse grande nome da literatura brasileira?

Faustino Teixeira - É sempre uma grande satisfação poder colaborar com o IHU ao longo de todos esses anos. Vejo muita riqueza nessa parceria e um particular enriquecimento e provocação para o meu aperfeiçoamento pessoal. Venho de uma carreira acadêmica pontuada por muito diversificação, com o foco voltado para temas bem amplos, complexos e desafiadores. Eu gosto de lidar com desafios novos.

Nesse momento da minha vida, há um grande interesse pela literatura e o cinema. O IHU abre portas para esse meu caminho atual, com a presença nos cursos sobre literatura e mística e também nos filmes em perspectiva. São dois projetos que me são muito caros no momento.

Nos últimos semestres, trabalhei no IHU com dois autores. Comecei com o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Depois dei outro curso sobre os contos de Guimarães Rosa. Em seguida veio o ciclo sobre Clarice Lispector, com um curso sobre as crônicas, outro sobre os contos, finalizando com outro sobre os romances. No segundo semestre de 2023, serão as cartas. Foram cursos longos, de 15 a 17 encontros.

Decidi agora dedicar-me a Graciliano Ramos, que foi um autor que teve grande importância na minha formação pessoal, sobretudo o romance São Bernardo, que me acompanha há décadas. Há que registrar que tive excelentes professores de literatura em Juiz de Fora. Menciono dois em particular: José Paulo Neto e Gilvan Ribeiro. Dali nasceu um interesse que só se intensificou ao longo da vida.

Depois de minha aposentadoria na UFJF, ocorrida em 2017, pude então dedicar-me com mais afinco a esse grande amor. A escolha de Graciliano não foi fácil, pois é um autor que conta com um gama impressionante de autores que se debruçaram sobre sua obra: Antonio Candido, Álvaro Lins, Carlos Nelson Coutinho, Otto Maria Carpeux, Luiz Costa Lima, Lúcia Helena Carvalho e Luís Bueno. Há também a maravilhosa biografia sobre Graciliano feita por Dênis de Moraes. Aproveitei as férias para debruçar-me sobre esses livros e também rever os livros escolhidos para a reflexão nesse semestre.

A razão da escolha foi igualmente determinada pelo estímulo recebido com a leitura de livros e textos de Antonio Candido, que considero um dos meus grandes gurus na literatura brasileira. O seu livro, Ficção e Confissão, que nasceu de um estímulo do próprio Graciliano, que o convidou para fazer a introdução de uma edição de suas obras. Daí nasceu o ensaio Ficção e Confissão, que acrescentado a outros ensaios deu origem a esse belo livro.

Minha escolha foi impulsionada pelo estímulo desse extraordinário crítico, para o qual Graciliano vem considerado com grande apreço. Para ele, Graciliano é um dos raros escritores “cuja alta qualidade parece crescer à medida que o relemos”. Foi o que ocorreu comigo nesses últimos meses, com o privilégio de poder retomar a leitura de Graça, com também Graciliano vem carinhosamente nomeado.

IHU - Como está previsto o curso ao longo do semestre?

Faustino Teixeira - Teremos ao longo do semestre dezessete encontros, sempre nas quartas-feiras, de 14:00 às 17:00. O cronograma já foi apresentado na página de eventos do IHU, com a indicação de cada uma das aulas. Tive que fazer uma seleção dos textos a serem trabalhados em aula. Serão quatro romances (São Bernardo, Angústia, Vidas Secas e Infância) e contos, sobretudo os que estão no livro Insônia. Resolvi mais recentemente incluir no curso alguns outros ensaios de Graciliano, assim como Cartas e Entrevistas concedidas por ele ao longo da vida. O curso vai de março de 2023 a junho do mesmo ano.

IHU - Que bibliografia básica você indicaria para aqueles que vão seguir o curso on-line?

Faustino Teixeira - A lista bibliográfica utilizada está no cronograma apresentado na página de Eventos do IHU. Posso aqui mencionar alguns dos livros fundamentais que estão na base de minha reflexão, além, é claro, dos livros de Graciliano. Sobre Graciliano, estarão sempre por perto as seguintes obras: Dênis de MoraesO velho Graça; Antonio Candido, Ficção e confissão; Sônia Brayner, Graciliano Ramos. Seleção de textos; Thiago Mio Salla & Ieda Lebensztayn (Orgs), Conversas Graciliano Ramos; Luís BuenoUma história do romance de 30; Lúcia Helena CarvalhoA ponta do novelo. Uma interpretação de Angústia de Graciliano Ramos; Wander Melo MirandaGraciliano Ramos; Ivan MarquesPara amar Graciliano. Além desses livros, outros artigos de especialistas de obras específicas, como por exemplo: Carlos Nelson Coutinho.

 

 

IHU - Qual o lugar que você concede a Graciliano Ramos na literatura brasileira?

Faustino Teixeira - Na minha visão, Graciliano Ramos é um dos mais ricos e criteriosos escritores do Brasil. É incrível a sua capacidade de concisão e a precisão de seu estilo. Com ele, a língua portuguesa encontra um de seus melhores expoentes. Como faz bem ler Graciliano Ramos. A leitura é agradável e o repertório impressionante. Somos levados por ele a colher uma viva experiência da realidade nacional, de suas dores e percalços. Mais do que isso, ele nos convida a penetrar com agudeza na vida dos personagens, como percebemos claramente em Vidas Secas e Angústia, que a meu ver é o melhor de seus romances. Como diz com acerto, Luís Bueno, o drama social apresentado por Graciliano vem “filtrado pelo drama do indivíduo”. Esse é o ponto nodal da questão, como porta de entrada essencial para a compreensão da obra de Graciliano Ramos. O escritor mesmo relatou a Edney Silvestre, em entrevista, que sua preocupação maior não era a de “pintar o meio”, mas “o homem, o homem daquele região palpérrima”. O que busca Graciliano é, sobretudo, auscultar a alma do ser “rude” nordestino e captar com agudeza o impacto da dor social sobre os personagens particulares. Como arguto observador, Graciliano possibilita a nós leitores captar a reação do personagem sob o impacto do drama social.

IHU - A partir de suas leituras, qual traço significativo você poderia apontar nas reflexões trazidas por Graciliano Ramos?

Faustino Teixeira - Durante os meus cursos sobre Guimarães Rosa um traço que ficou bem delineado na minha compreensão de mundo e da pessoa foi a constatação da ambiguidade que habita o ser humano. Somos todos, indistintamente, marcados pela ambiguidade, como apontou com clareza Antonio Candido em seu ensaio O homem e os avessos. Há no mundo subterrâneo de cada um de nós a simultânea presença da “vozinha” do bem, mas também do “vapor do mal”. É uma ingenuidade imaginar que no nosso foro interior o que existe é a bondade. Não, ali está tudo misturado. Há também ali, o “avesso” do homem, os “crespos” do homem. Daí a necessidade de saber em que cavalo montar: se é aquele que leva à alegria, fazendo a “vozinha” do bem prevalecer, ou aquele que leva à tristeza, à dor e ao ódio. Pois o ódio, como bem mostrou Rosa, “não tem razão”. Ele pode emergir sem mais nem menos, motivado por alguma chispa negativa.

Essa mesma tensão presente no mundo interior eu percebi no estudo de Graciliano Ramos. Talvez seja ele um dos escritores nacionais que melhor trabalhou o tema da reificação do sujeito. De como alguém, como Paulo Honório, em São Bernardo, consegue destruir sua vida pessoal e comunitária através de uma dinâmica necrófila em favor da vontade poder, da busca de Posse. O ser humano, quando vem dominado por esse sentimento, fica inclusive impossibilitado de amar com transparência e doação. Como diz Franklin de Oliveira, comentando sobre Graça, nas sociedade onde ocorre a atomização dos indivíduos, quando a reificação “frauda os melhores impulsos humanos”, vemos naufragar o amor puro e a beleza da comunhão espiritual. Nessas condições, os seres humanos mostram-se “incapazes de exprimir um mínimo de humanidade”. Eles se veem tocados por radical precariedade: “No esgarçado universo da incomunhão humana, a figura da cadelinha Baleia instaura um símbolo: a humanidade ainda não é privilégio dos homens”.

Nessa difícil sociedade marcada pela “pegada” humana, de atrofia da compaixão e generosidade, o que muitas vezes desperta do mundo interior, não é o aroma da bondade, mas “o bicho subterrâneo” que emerge provocando a erosão do significado. É o que ocorreu com Paulo Honório em São Bernardo, e também no personagem Jan (Max von Sidow) no filme Vergonha de Ingmar Bergman: alguém que vai sendo tomado pelo impacto da guerra e sofre uma transformação violenta, fazendo despertar o seu lado cruel e violento, até então submerso. Ali onde reside “o bicho subterrâneo” estão presentes, mas ainda ocultos, os desejos mais sórdidos, os recalques e frustrações que obnubilam a possibilidade da transparência. Mesmo Fabiano, em Vidas Secas, se vê tentado, em certo momento a despertar o seu lado “lampião”, mas consegue conter-se.

 

 

IHU - É correto dizer que há uma presença de pessimismo em suas obras?

Faustino Teixeira - Essa foi, muitas vezes, a visão que se passou do pensamento de Graciliano Ramos. Trata-se de uma ocular que obstrui a percepção mais correta desse complexo autor. Não se pode negar traços de pessimismo, mas não é, a meu ver, o que prevalece. É como se pudéssemos, por exemplo, enquadrar o romance Vidas Secas no quadro desse perfil pessimista e sombrio, o que não é verdade. Como mostrou com clareza Luís Bueno, esse não é um “romance da seca”, como se imagina. Como ele diz, “o ambiente em que circulam os personagens não é o da seca – com exceção óbvia do capítulo inicial. Por incrível que possa parecer, a maior parte do enredo se passa em tempos de fartura”. Não se pode concluir apressadamente que esse romance desborda numa psicologia “tão pouco amiga da alegria”. O que vemos, em verdade, é o labor de uma família que mantém acesa a chama da esperança. Retomando uma análise feita por Luís Bueno sobre Vidas Secas não se perde ali o vigor do “desejo profundo de mudança”, que se estampa mesmo na cadela Baleia, que sonha feliz com um “mundo cheio de preás”. Afirma Bueno, que a réstia de esperança habita mesmo o mais embotado dos humanos. Graciliano não apaga essa chama. Como salienta Otto Maria Carpeax, Graciliano é um romancista habitado por uma alma “cheia de misericórdia e simpatia para com todas as criaturas”.

IHU - Qual o impacto da vida de Graciliano em suas obras?

Faustino Teixeira - Na introdução do livro biográfico de Dênis Moraes sobre Graciliano Ramos, o crítico Carlos Nelson Coutinho cita com pertinência uma passagem do pensador marxista Lucien Goldmann, para o qual “a possibilidade de explicar uma obra literária pela biografia de seu autor denuncia os limites estéticos dessa obra”. Não há nada mais verdadeiro do que essa consideração. Ela se aplica perfeitamente ao pensamento de Graça. É verdade que encontramos inspirações biográficas em certas narrações de Graciliano, como no livro Infância e mesmo em Vidas Secas. Mas essa não é a perspectiva que molda a sua reflexão.

Estamos diante de um escritor profundamente atento ao valor autônomo e singular da obra de arte. Mesmo estando próximo às ideias marxistas e depois vinculando-se ao Partido Comunista Brasileiro, Graciliano nunca perdeu a autonomia de voo e a liberdade de poder escrever sem aprisionamentos. Foi o escritor que manteve sempre a porta aberta para diversificadas assimilações culturais. Sabia distinguir muito bem entre o que é “servir sob uma ditadura” a “servir a uma ditadura”. Graciliano era um escritor que tinha plena consciência de que o realismo socialista “era o mais curto caminho para uma péssima literatura” (Coutinho).

Para analisar essa complexa questão, Luís Bueno recorre ao livro Vidas Secas, que para ele é uma obra que “deu um xeque-mate no romance proletário, deixando a nu suas limitações, ao mesmo tempo que o elevou a um grau de realização que jamais seria alcançado de novo”. Argumenta que sem perder sua qualidade de romance engajado o livro é a expressão clara de que “a fatura artística pode servir para impulsionar o conteúdo político de uma obra, mas o contrário é muito difícil de acontecer”. Achei essa consideração brilhante, em defesa do valor nobre da obra de arte, que não pode ser determinada por nenhuma condição política. Selma Caetano, na obra Bibliografia ilustrada, em torno de Graciliano, recorda que o escritor foi um artista militante, mas sempre manteve sua veia crítica. No livro Angústia, há uma passagem fabulosa onde isso vem expresso de modo vivo:

“'Proletários, univos'. Isto era escrito sem vírgula e sem traço, a piche. Que importava a vírgula e o traço? O conselho estava dado sem eles, claro, numa letra que aumentava e diminuía (...). Aquela maneira de escrever comendo os sinais indignou-me. Não dispenso as vírgulas e os traços. Quereriam fazer uma revolução sem vírgulas e sem traços. Numa revolução de tal ordem não haveria lugar para mim."

Isso me lembrou também a posição de Gilberto Gil em sua canção ok, ok, ok, que vai em semelhante linha de reflexão, indicando que a canção do artista está acima dos muros. Diante das inúmeras cobranças feitas ao artista para ter um posicionamento definido e explícito, ele responde com sua poesia:

“Então não falo, músico e poeta
Me calo sobre as certezas e os fins
Meu papo reto sai sobre patins
A deslizar sobre os alvos e as metas”

IHU - Em razão da proximidade do romancista com o Partido Comunista Brasileiro, você percebe uma incidência dessa vinculação com o seu processo literário?

Faustino Teixeira - Graciliano Ramos ingressou no Partido Comunista Brasileiro em 1945 e ali permaneceu vinculado ate à sua morte, em 1953. Ele ingressa no partido junto com Portinari. No caso de Graciliano, por intermédio de Luís Carlos Prestes, e Portinari pelo próprio Graça. Os dois artistas partilham de semelhante perspectiva política e compromisso social. Em carta de fevereiro de 1946, endereçada ao pintor, Graciliano comenta que a força de suas obras “vem da capacidade de ambos de descer o mais fundo possível na miséria humana, como forma de denunciar a realidade cirdundante”.

Graciliano, em seu trabalho artístico, não perdeu em nenhum momento sua liberdade e seu espírito de autonomia. Não foi daqueles que perdeu o anel para preservar os dedos. Manteve-se digno em sua posição de homem nobre, marcada também pela crítica ao socialismo real, mesmo guardando uma simpatia pessoal por Stalin.

 

 

IHU - Como você definiria a peculiaridade do estilo de Graciliano Ramos?

Faustino Teixeira - Graciliano se diferencia por seu estilo claro, rigoroso, límpido e conciso. Tinha uma exigente preocupação com sua redação. Estava sempre insatisfeito, querendo sempre mais polir o testo para chegar à medula de sua beleza. Mesmo em Angústia, que é para mim seu livro mais contundente, ele mostra sua insatisfação, querendo ainda livrar-se de suas partes consideradas “gordurosas e corruptíveis”, excessivas. Como sublinha Antonio Candido, Graciliano vinha movido por muito cuidado e zelo, e “medo de encher linguiça”. Esse traço, para Antonio Candido, é o que o distinguia de outros autores:

“Só dizia o essencial, e quanto ao resto, preferia o silêncio. O silêncio devia ser para ele uma espécie de obsessão, tanto assim que quando corrigia ou retocava seus textos nunca aumentava, só cortava, cortava sempre, numa espécie de fascinação abissal sobre o nada – o nada do qual extraía a sua matéria, isto é, as palavra que inventam as coisas, e ao qual parecia querer voltar nessa correção-destruição de quem nunca estava satisfeito."'

IHU - Podemos falar em mística quando trabalhamos com os textos de Graciliano Ramos?

Faustino Teixeira - Essa última consideração de Antonio Candido, quando diz sobre essa “fascinação abissal” de Graciliano pelo nada, abre caminhos para a questão colocada. Quem, para mim, conseguiu abrir essa pista foi Otto Maria Carpeax ao abordar a visão de Graciliano. Recorrendo ao crítico espanhol José Bergamin, Carpeaux sublinha que em sua obra, Graça convoca o leitor a “perder-se, encontrar-se, para perder-se”. Cada ensaio seu é um convite a acompanhar um mundo “chamado a desaparecer”. E nesse processo de “aniquilamento” do mundo marcado por uma “pegada” nociva, surge o campo de emergência para a misericórdia com os outros. O leitor, diante da obra de Graciliano, se vê continuamente provocado à mudança. Sua obra “enxuta e descarnada como o Nordeste”, como mostra Franklin de Oliveira, traduz-se como uma afronta permanente ao leitor. Graça não concede um mínimo sequer de “repouso”, levando o leitor a uma “tensão contínua”, do início ao fim, que acaba, por fim, a enriquecer profundamente o seu capital de humanidade.

IHU - Como você está pensando a continuidade dessa contribuição com o campo da literatura em próximos eventos do IHU?

Faustino Teixeira - Depois que entrei nesta barca da literatura, sigo feliz o caminho das águas, sempre atento a novos e decisivos aprendizados. Meu projeto para os próximos semestres envolvem três autores aos quais pretendo me dedicar com alegria: Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade e Érico Veríssimo. Tudo no seu devido tempo.

 

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