17 Janeiro 2023
"Etty Hillesum morre, com apenas 29 anos, em 1943 em Auschwitz. O seu Diário aparece em italiano em 1985. Elisabetta Rasy o lê e, embora saiba que um livro não pode mudar a vida, sente que essas páginas — nas quais paira o ar 'infeliz e despreocupado' de duas jovens burguesas, distantes e ao mesmo tempo próximas no tempo, na árdua busca de si mesmas — deixarão uma marca indelével em sua existência", escreve Giorgio Montefoschi, escritor e crítico literário italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 16-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
"Se há um caráter da juventude difícil de contestar", escreve Elisabetta Rasy nas primeiras linhas de Dio ci vuole felici (Deus nos quer felizes, em tradução livre, HarperCollins Itália), a história de sua relação ideal e afetiva com Etty Hillesum, uma das figuras femininas mais importantes do século passado, “é que, em geral, é um temporada infeliz e despreocupada. Assim foi certamente a minha; quanto a Etty, pode-se dizer o mesmo: a garota da boa e culta classe média judia, leiga e aberta, que aos dezoito anos sai de casa para cursar a universidade e convive com desenvoltura entre amigos e namorados num meio social — aquele holandês de meados da década de 1930 — acolhedor e seguro. Ela não tem preocupações, não é pobre, não tem doenças, além de gozar de ampla liberdade de ação, mas não é feliz, como alguns anos depois registrará meticulosamente aquele livro mestre da economia da vida representado por seu diário”.

Dio ci vuole felici: Etty Hillesum o della giovinezza
Etty Hillesum morre, com apenas 29 anos, em 1943 em Auschwitz. O seu Diário aparece em italiano em 1985. Elisabetta Rasy o lê e, embora saiba que um livro não pode mudar a vida, sente que essas páginas - nas quais paira o ar "infeliz e despreocupado" de duas jovens burguesas, distantes e ao mesmo tempo próximas no tempo, na árdua busca de si mesmas - deixarão uma marca indelével em sua existência.
Isso não causa surpresa, afinal. Até sua trágica conclusão — e é justamente esse elemento que choca o leitor, mulher ou homem que seja — a vida de Etty é uma "vida comum". Filha de um diretor de escola holandesa e de mãe russa, ela abandona a família e vai para Amsterdã; estuda na universidade; lê Dostoiévski, Rilke, Santo Agostinho e tudo o que consegue ler; voa de bicicleta pelos canais sentindo dentro de si o sol como uma personagem de Katherine Mansfield; namora jovens e homens idosos que a protegem; responde com inquietude às solicitações e às perturbações de seu corpo; busca a alma; gostaria da posse absoluta de outro ser humano, e de si mesma, mesmo sabendo que isso não é o Absoluto; na casa do sexagenário Han Wegerif, um contabilista ao lado de quem, à noite, dorme tranquilamente, tem um quarto só seu, onde pode escrever, pensar, arrumar um vaso de tulipas e sentir-se autônoma, dona de seu próprio tempo como Virginia Woolf.
Aos 27 anos, conheceu Julius Spier, então com 55 anos. É um encontro fundamental: Spier é um psicanalista junguiano, especialista em leitura da mão, que fugiu de Berlim, onde deixou mulher e dois filhos, junto com uma jovem estudante, Hertha Levi, a quem prometeu casamento, mas que vive em Londres. Spier, a quem Etty cegamente confia o caos de sua tempestuosa existência, é um convicto defensor da indissolubilidade de corpo e alma. A alma não pode ser curada sem curar o corpo; e vice-versa. Então, primeiro, o medo deve ser superado. Mas de quê? Dessa pedra pesada que cada um de nós carrega dentro de si, talvez seja o próprio corpo, e deveria ser derrubada, antes de tudo, com uma luta, uma verdadeira luta, entre médico e paciente.
É um método bastante estranho. Mas faz muito sucesso entre as mulheres de Amsterdã. Etty também se submete à luta, e é totalmente subjugada por ela: Spier não é um homem bonito, é atarracado e pesado, porém tem lábios muito sensuais que te prendem, enquanto os dois corpos entrelaçados rolam no chão. Cria-se assim uma situação extremamente complexa e contraditória entre os dois, feita de pulsões eróticas e inibições, explosões sentimentais e sentimento de culpa, em que, substancialmente, este homem e esta mulher que poderia ser sua filha se colocam eles mesmos como um obstáculo à conquista de um amor diferente, ao qual, porém, acreditam cegamente como algo misterioso, ainda obscuro, indefinido.
Elisabetta Rasy não se pergunta se esse é um verdadeiro amor. Em seu livro, ambicioso e árduo, em que consegue com extraordinária habilidade contar as afinidades entre ela mesma, jovem e madura, filha e escritora, com seus amores, incertezas, leituras, alegrias, infelicidades e uma jovem holandesa aniquilada pela fúria nazista, o verdadeiro obstáculo a superar é o Além. Acontece com Etty um dia, em seu quarto.
Ela está lendo a carta de São Paulo aos Coríntios sobre a caridade quando de repente cai de joelhos. É uma luz que a transforma. Completamente. Spyer está morto. Os alemães estão se aproximando da solução final. Ela, guiada por essa luz, vai e volta do campo de concentração de Westerbork. Ela poderia fugir de lá. Em vez disso, fica. Vive a caridade, dedicando-se aos idosos, aos doentes, aos últimos entre os últimos. E os segue. Ela os seguirá até Auschwitz. Porque, escreve, com palavras imortais, “uma coisa se torna cada vez mais evidente em mim e é que Tu não podes ajudar a nós, mas somos nós que temos de ajudar a Ti, e assim ajudamo-nos a nós mesmos. A única coisa que podemos salvar, nestes tempos, e também a única coisa que realmente importa, é um pequeno pedaço de Ti em nós mesmos, meu Deus”.
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Minha Etty, jovem inquieta. Artigo de Giorgio Montefoschi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU