Há 131 anos, o Rio de Janeiro assistia queima de documentos sobre escravidão

Uma família brasileira do século XIX sendo servida por escravos, pintado por Jean-Baptiste Debret, c. 1830. (Foto: Wilfredor | Wikipédia)

15 Dezembro 2022

Medida drástica do Águia de Haia, o glorioso Ruy Barbosa enquanto ministro e secretário de Estado dos Negócios da Fazenda e presidente do Tribunal do Tesouro Nacional do governo provisório de Deodoro da Fonseca (1889-1991), causa polêmica entre historiadores ainda hoje, 132 anos depois.

A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.

No dia 14 de dezembro de 1890, Ruy Barbosa assinou resolução mandando destruir todos os documentos depositados em repartições do Ministério da Fazenda – livros de matrícula, de controle aduaneiro e de recolhimento de tributos – referentes à escravidão, que tinha sido abolida em 13 de maio de 1888.

O despacho do ministro rezava, no primeiro parágrafo:

- Serão requisitados de todas as tesourarias da Fazenda todos os papéis, livros e documentos existentes nas repartições do Ministério da Fazenda, relativos ao elemento servil, matrícula dos escravos, dos ingênuos, filhos livres de mulher escrava e libertos sexagenários, que deverão ser sem demora remetidos a esta capital e reunidos em lugar apropriado na Recebedoria.

Qual a razão dessa medida extrema? Ex-donos de escravos queriam que o Estado os indenizasse pela perda de suas “peças”. O ministro da Fazenda queria eliminar, assim, qualquer documento que pudesse ser usado na sustentação dos aristocratas mendicantes. Ele buscou preservar recursos do Tesouro Nacional.

O Governo Provisório recebera de José Porfírio Rodrigues de Vasconcelos e filhos uma representação solicitando a fundação de um banco encarregado de indenizar os ex-proprietários de escravos e seus herdeiros, com parte de recursos federais. Ruy Barbosa indeferiu o pedido. “Mais justo seria, e melhor se consultaria o sentimento nacional, se se pudesse descobrir meio de indenizar os ex-escravos, não onerando o Tesouro”, justificou, segundo o Diário Oficial de 12 de novembro de 1890.

O Congresso Nacional felicitou o Governo Provisório pela medida, mas teve parlamentares questionando a medida. Frisando que não era contra “a obra meritória da abolição”, o deputado Francisco Coelho Duarte Badaró (MG) questionou a queima dos documentos.

Badaró se pronunciou: “A nossa vida é nova, mas precisamos ter a nossa história escrita com provas verdadeiras. Pelo fato de mandar queimar grande número de documentos para a história do Brasil, a vergonha nunca desaparecerá, nunca se poderão apagar da nossa história os vestígios da escravidão”.

Se o intuito era preservar as burras públicas da onda indenizatória, a professora Marisa Saenz Leme, livre-docente de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, levanta outra hipótese: escravos poderiam ser indenizados!

Qual a sustentação para a hipótese? Como o ministro da Justiça Diogo Antônio Feijó assinara, em 7 de novembro de 1831, proibindo o tráfico escravo e declarado livres todos os escravos vindos de fora do Império, medida que não foi cumprida pelo menos até 1850, quem veio forçado ao Brasil nesse período poderia ser indenizado, em tese.

A determinação de destruir os documentos foi aplicada meio ano depois, em 13 de maio de 1891, para comemorar os dois anos de abolição da escravatura, quando Ruy Barbosa não era mais o ministro da Fazenda, cabendo a execução ao seu sucessor, Tristão de Alencar Araripe. Uma grande fogueira foi montada no centro do Rio de Janeiro.

Mas como sói acontecer no país desde tempos imperiais, leis nem sempre são cumpridas. Assim, nem todos os livros contendo registros referentes ao período escravocrata no Brasil foram incinerados, para alívio de historiadores.

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