Quando a inocência nos é arrancada pela intensidade da vida plena e livre. Resenha crítica por Stephany Oreli

Avenida Atlântica, Copacabana, 1980. (Foto: Moacir de Sa Pereira)

30 Novembro 2022

"Ainda que quase meio século antes de nós, os personagens de "Gostaria que você estivesse aqui", segundo romance de Fernando Scheller publicado em 2021, jornalista curitibano que viveu a década de 80 e que hoje se aventura na literatura, vivem um Brasil que lembra 2022", escreve Stephany Chagas Oreli, estudante de Jornalismo da Unisinos e integrante da equipe do IHU, em resenha crítica.

Capa do livro "Gostaria que você estivesse aqui", de Fernando Scheller. (Foto: divulgação)

Eis a resenha.

Dica: enquanto lê esta resenha, ouça a música Love Love, do trio Gilsons, surgido em 2018 para o MPB brasileiro. Por quê? Você vai entender. Melhor, você vai sentir.

 

Estamos em 1980, o Rio de Janeiro já é insuportavelmente quente e a cidade maravilhosa proporciona noites inesquecíveis em meio a mata atlântica típica da região mesclada aos prédios que ainda são singelos em comparação a grande metrópole que se ergueu nesse mesmo local. Cinco pessoas enfrentam um vírus mortal que estava surgindo ao mundo, secreto e misterioso, enquanto o futuro do país era incerto, recém saído da Ditadura Militar. A vontade de falar o que pensa, discutir ideias e de decidir sobre a forma como vamos viver em sociedade estava à flor da pele. O desejo de se afirmar quem se quer ser, livre do preconceito e da violência do outro estava surgindo, recém engatinhando.

A ditadura foi superada na metade da década e a redemocratização deixou de ser um ponto distante que se admira ao fundo do horizonte de Copacabana, tornando-se um navio que se encaminha ao porto, aguardado com muita expectativa pela população empobrecida e oprimida que anseia por dignidade, e por seus amantes, que fielmente se opuseram aos anos de chumbo, e que agora aproveitam a bondade do universo que lhes deixava sonhar pela primeira vez em tanto tempo. Ao final da década, em 1988, o Brasil dá o seu maior passo em direção a humanidade: o presidente José Sarney, eleito indiretamente devido a morte precoce de Tancredo Neves, que sequer assumiu o governo, promulgou a Constituição Cidadã, que rege, até hoje, o supremo poder desse país, lutando, sozinha, para que a tirania não tenha o direito de continuar escravizando uma população criada sob dor e sofrimento. No ano seguinte, o Diretas Já!, movimento popular que incessantemente exigiu a eleição direta durante a ditadura militar, efetivou o seu objetivo: o Brasil elegeu, pela primeira vez após a redemocratização, um presidente de modo direto, que mais tarde sofreria um processo de impeachment pelo crime de corrupção, evidenciando as chagas que parecem imutáveis na história desse país e que ainda enfrentamos.

Nestes mesmos anos, a música vive uma revolução, o rock surge como um grito de rebeldia e bandas críticas à realidade se tornam parte do dia a dia da população brasileira. Nomes como Beatles, Michael Jackson, Madonna, a níveis internacionais, e Legião Urbana, Paralamos do Sucesso, Capital Inicial, Tim Maia, Caetano Veloso e Elis Regina embalam a vida dos brasileiros que aprendiam a tornar a música uma companheira dinâmica, capaz de transmitir alegria, tristeza, angústia, raiva, esperança e, principalmente, vontade de viver. A Música Popular Brasileira (MPB) é consolidada, ocorre a primeira edição do Rock In Rio (1985) e o Sambódromo da Marquês da Sapucaí é inaugurado, dando início a tardia liberdade cultural da população negra, que produz, todo ano, um dos maiores espetáculos artísticos do mundo: o Carnaval do Rio de Janeiro.

 

A liberdade estava ávida no imaginário carioca e a rebeldia tomava forma através da moda, da sexualidade livre, da música e do feminismo. Roupas coloridas, calças rasgadas, cabelos nada retos, relações sexuais sem a necessidade do matrimônio e a epidemia de AIDS são alguns dos movimentos que refletem como a vida pessoal brasileira estava mudando.

No livro, a vida carioca é abordada a partir de Baby, Inácio, Rosalvo, Cézar e Selma que se entrelaçam de modo direto e indireto, enquanto vivem momentos distintos, com idades diferentes, mas que dividem o anseio pela liberdade e pelo direito de viver no Brasil de 1980. De modo íntimo, profundo e verdadeiro, Fernando Scheller mostra o desenvolvimento de jovens que estão iniciando a vida, aprendendo a engatinhar para longe dos pais, enquanto experimentam a universidade e a vida amorosa, com todas as dúvidas, inseguranças e desavenças que se é possível ter nessa época.

Entre descobrimentos, sofrimentos, lutas e dores, os personagens são desenvolvidos à luz da essencialidade humana: no erro e na contradição. Narrando momentos de raiva, de desejo, de felicidade e de liberdade, Fernando nos faz sentir em casa, tal qual nos sentimos quando estamos sozinhos, apenas com nós mesmos, ouvindo apenas a nós mesmos. Ao mesmo tempo, Fernando evidencia o sofrimento interno que assola a vida de um humano LGBTQIA+ no Brasil da década de 1980, que ainda é o maior assassino desta população no mundo, enquanto o indivíduo luta pelo direito de existir e, ao mesmo tempo, contra si mesmo, que se condena por ser como é. Para além do Ser violentado, Fernando também traz a dor de ser mãe e pai de alguém que terá sempre um alvo nas costas, marcado apenas por ser quem nasceu para ser.

Sobre o autor

Segundo o Portal dos Jornalistas, "Fernando Scheller nasceu no Paraná, em 1977. É bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em 1999. Concluiu em 2006 mestrado em Global Political Economy [Política Econômica Global] pela Universität Kassel, na cidade de KasselAlemanha". Atualmente, trabalha no O Estado de São Paulo, conhecido como Estadão.

Além de "Gostaria que você estivesse aqui", Fernando é autor de "O Amor Segundo Buenos Aires", de 2016. No vídeo abaixo, Scheller narra sobre como foi o processo de criação desse primeiro livro, enquanto disserta sobre a literatura latinoamericana.

 

Agradecimento

Aproveito para agradecer ao meu melhor amigo, Gustavo, por me presentear com essa obra. Sabendo da minha vontade em lê-lo, alegrou-me, na surpresa, com esse presente e eu não poderia ser mais grata.

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