Após expulsão forçada pela ditadura, povo Panará comemora 25 anos de retorno ao seu território

Foto: Amazônia Real/Bruno Kelly

23 Novembro 2022

Indígenas celebraram volta por cima do contato trágico com festa e retomada de tradições na aldeia Nãsepotiti, na Terra Indígena Panará (PA).

A reportagem é de Clara Roman, publicada por Instituto Socioambiental – ISA, 21-11-2022.

Dois grupos de homens descem o estradão de terra numa corrida embalada. Sob o intenso sol do meio dia, cada um dos grupos carrega um tronco de palmeira buriti, de no mínimo 100 kg e três metros de altura.

Um homem sustenta o tronco por alguns metros, logo outro chega para substituí-lo. Eles se revezam em uma velocidade impressionante em busca do objetivo principal: ultrapassar o grupo adversário. É a corrida de tora, uma tradição do povo Panará.

Conforme a estrada se aproxima da aldeia, a velocidade aumenta, até que um dos grupos se desgarra e dispara, chegando na frente e encerrando a corrida na Casa dos Homens, uma construção de madeira e palha no centro da aldeia. Depois, com as toras no chão, todos se reúnem para dançar e cantar. As mulheres, com pinturas, adornos de pena nos braços, chocalhos de sementes de pequi amarrados nas pernas e saia de miçangas, seguem em fila e se reúnem aos homens na dança circular.

A comemoração dos 25 anos do retorno dos Panará ao seu território tradicional foi promovida pela Associação Iakiô Panará, que os representa. Aconteceu nos dias 15, 16 e 17 de outubro, com dança e cantos tradicionais, corrida de tora, disputa de arco e flecha, moitará (troca de objetos entre os participantes do evento), encontro das mulheres e falas importantes dos Panará e de seus convidados.

Durante o período da ditadura militar, impactados pela construção da BR-163, os Panará foram transferidos contra sua vontade para o Parque Indígena do Xingu – onde viveram um exílio dentro do próprio país.

Há 25 anos, eles retornaram ao seu território de origem, encerrando um ciclo de perdas e muita dor. Os Panará são guerreiros e têm muitas conquistas a comemorar. Confira o vídeo feito por Arewana Yudja e Kujãesage Kaiabi, da Rede de Comunicadores Xingu+:

“Eu fui corajoso. Eu fui forte. Eu fui guerreiro para poder tomar esse pedaço de terra. Se não fosse eu, a gente não tava aqui. Por isso que eu lutei. Eu não tinha medo dos brancos. Eu tinha coragem. Estou feliz ouvindo e celebrando a nossa história”, afirma Akâ Panará na mesa de abertura da festa.

Akâ é ancião do seu povo e vivenciou o contato com os não-indígenas na década de 1970. É um dos poucos dessa época que ainda estão vivos. Durante a mesa de abertura, além de Akâ, falaram também o parceiro de décadas Steve Schwartzman, antropólogo que atuou junto aos Panará e atual coordenador da organização EDF, André Villas-Bôas, sócio-fundador do ISA, Sofia Mendonça, coordenadora do projeto Xingu da Unifesp, Douglas Rodrigues, médico da Unifesp que atua com os Panará desde o tempo que moravam no Xingu, Kanse Panará, Pasyma Panará e outros parceiros, como a enfermeira Marisa, que atuou anos no território.

Durante as comemorações, os Panará também se manifestaram contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Assista:

O contato

“Vamos começar pelo começo”, diz Akâ, sentado em um banco de madeira em frente à sua casa. “Onde tá Matupá [cidade do Mato Grosso] hoje, foi lá que eu nasci, na aldeia grande Inkasã”, continua. Akâ viveu sua infância em um tempo anterior ao contato com os brancos. Os Panará viviam espalhados em dezenas de aldeias em uma região que se estende por todo o norte do Mato Grosso e Sul do Pará, e hoje abrange cidades como Colíder, Matupá, Peixoto de Azevedo, Guarantã do Norte e o sul de Altamira. São falantes da língua Panará, do tronco linguístico jê.

“Antes de o branco chegar, eu era feliz, eu caçava, eu brincava sem ter que pensar nos inimigos. Eu tinha liberdade, era só alegria”, conta. Os Panará faziam corrida de tora, festejavam, caçavam e pescavam muito.

Nessa época, porém, povos indígenas ao sul do Mato Grosso já haviam sido contatados pelos irmãos Villas-Bôas (Cláudio, Leonardo e Orlando).

Em 1961, o Parque Indígena do Xingu (hoje Território Indígena do Xingu) havia sido demarcado para abrigar e proteger todos esses povos, alguns deles trazidos de outras regiões, como os Ikpeng e os Kawaiwete. Essa história é relatada no filme Xingu, disponível na plataforma de streaming Netflix.

Os Panará não haviam sido alcançados pelo movimento dos Villas-Bôas. Até que entraram no caminho dos generais. Em 1973, o governo militar ordenou que Cláudio e Orlando Villas-Bôas empreendessem uma expedição para contatar este povo e retirá-lo da rota da rodovia BR-163 (Cuiabá/Santarém).

“A gente tinha saído para caçar e ouviu o barulho do avião”, conta Akâ. Os Panará foram pegar seus arcos e flechas. “Foi um tumulto na aldeia, ficaram assustados com o avião rasante”. No dia seguinte, o avião voltou e os Panará tentaram flechá-lo. Provavelmente, eram voos de aviões militares indo até a base militar na Serra do Cachimbo.

“Ficamos muito preocupados. Pessoas de outras aldeias vieram e se juntaram para enfrentar esse inimigo”, relata. Em uma ocasião, os Panará encontraram com um branco e mataram ele com uma flechada. Por dias, os Panará continuaram a ouvir o barulho dos aviões. Então, começaram a encontrar objetos no mato, deixados pelos sertanistas no processo de contato.

Kreton Panará, que também viveu essa época, conta que se cortou com a faca que encontrou na floresta, porque não sabia para que servia. Depois de um encontro com um branco na mata, Kreton conta que os Panará se juntaram e discutiram o que fariam. “Vamos esperar ou vamos matar eles?”.

Nessa época, os Panará migraram para uma aldeia mais distante com o intuito de fugir dos brancos. Mas os irmãos Villas-Bôas seguiram nas tentativas de aproximação. Um dia, eles se depararam com os sertanistas descendo o rio em duas canoas grandes, e resolveram falar com eles. Cláudio se aproximou e um Panará pegou o facão da mão dele. Estava feito o contato.

“O pessoal desesquentou, pararam de brigar e começaram a aceitar as coisas. Os jovens falaram: ‘eles vieram aqui para amansar a gente, não é para matar’. E o resto do pessoal concordou”, conta Akâ.

O contato, porém, trouxe a morte. “Era morte de manhã, de tarde e de noite”, lembra Kreton. A gripe e o sarampo assolaram os Panará. “Sobrou pouca gente”, lamenta Akâ.

Ao menos 176 Panará morreram em decorrência de doenças contraídas após o contato, entre 1973 e 1975. Quando a rodovia começou a ser construída e centenas de trabalhadores se deslocaram para a região, as consequências foram ainda piores. Kreton conta como foi a primeira vez em que os brancos deram cachaça para ele e outros Panará. “Os Panará não sabiam da bebida e começaram a passar mal de bêbado”, lembra.

Nesse cenário, em 1974, os irmãos Villas-Bôas decidiram transferir os Panará para o Parque Indígena do Xingu. Segundo Akâ, eles foram enganados, pois achavam que teriam outros Panará vivendo lá. Foi um tempo de exílio. A floresta ali era muito diferente da que estavam acostumados. O Parque era pior para a caça e para encontrar os frutos que eram base de sua alimentação.

Sofia Mendonça conta de um episódio em que os Panará quase morreram intoxicados pelo consumo de mandioca brava, uma variedade consumida pelos indígenas do Parque, mas cujo veneno os Panará não sabiam como neutralizar antes do consumo. Essa é só uma das muitas histórias de desamparo.

Nos 20 anos que ficaram no Parque Indígena do Xingu, os Panará viveram primeiro com os Kawaiwete. Depois, com os Kaiapó, e depois, ainda, com os Khisêtje. Nos últimos anos de morada no Parque, foram viver em aldeias próprias. Mas nunca se sentiram em casa.

No início da década de 1990, eles tomaram a decisão de lutar para retornar ao seu território. Toda essa saga está descrita em detalhes no livro Panará - A Volta dos Índios Gigantes, lançado em 1998 como parte das ações voltadas a apoiar a demarcação do território Panará. Já o site, feito na ocasião dos 20 anos do retorno, também reúne depoimentos importantes sobre a saga.

O branco comeu nossa terra

Lideranças Panará como Akâ e Kreton se articularam para empreender a jornada de retorno. A Fundação Nacional do Índio (Funai), segundo eles, não ajudava. Então encontraram os parceiros Steve Schwartzman, que já havia feito seu doutorado junto aos Panará e falava a língua e o indigenista André Villas-Bôas – que alguns anos depois fundaria o ISA.

O primeiro passo foi fazer uma missão de reconhecimento. Seis Panará juntamente com Steve e André viajaram de ônibus para o município de Peixoto de Azevedo (MT). Onde antes era aldeia e floresta, agora era cidade, pasto, soja e campos de terra arrasada pelo garimpo. “Os brancos comeram nossa terra”, denuncia Akâ.

Ali mesmo, manifestaram o desejo de se encontrar com as autoridades responsáveis. Ficaram indignados e exigiram satisfação. Então Akâ, Kreton e Kokè resolveram sobrevoar o território. Das oito principais aldeias antigas dos Panará, seis haviam sido destruídas. Mas uma porção de floresta mais ao norte ainda estava preservada.

“Eu fiquei muito feliz”, diz Akâ. A partir daí, começou uma intensa luta pela demarcação de uma parcela ainda preservada da Terra Indígena Panará e um longo processo dentro da Funai.

Entre 1994 e 1997, os Panará começaram a jornada de retorno. Em 1997, eles comemoraram na aldeia Nãsepotiti a sua volta definitiva e o fim dos dias de exílio, doenças e sofrimento. Em 2001, o território foi demarcado fisicamente e finalmente homologado pelo presidente da República.

Futuro: bonança, desafios e ameaças

Quando saíram de seu território e foram para o Parque Indígena do Xingu, os Panará eram apenas 74, dos mais de 700 de antes do contato. Chegaram no Parque combalidos. Durante os anos da transferência, a população cresceu pouco. Chegou a pouco mais de 170 em 1994. Desde que voltaram, a população ressurgiu: hoje são 704, número similar à população antes do contato.

Kunity Panará, uma liderança de 38 anos que cresceu junto aos Kayapó e chegou na TI Panará aos 16 anos, fala da bonança do retorno. “A pescaria é fácil. A caça é fácil. Muita fruta comestível que é nossa alimentação tradicional. Tem muito açaí, cacau, yapanitu, sotiv, pakÿ. Os mais velhos falam que lá no Xingu a terra e o mato eram diferentes, muito fraco para alimentação. Pessoal morreu muito no Xingu”, conta.

Além de liderança, Kunity é comunicador da Rede Xingu+. Ele conversou com a reportagem do ISA em uma das salas da escola da aldeia Nãsepotiti, um dos locais onde a conexão do wi-fi é melhor. Sobretudo os mais jovens se reúnem ali para se conectarem à internet.

Nos últimos 25 anos, os Panará conseguiram retomar várias tradições perdidas na época do exílio. Entre elas, as tradicionais roças, que são redondas e estão entre as mais belas da região. Em 2015, os Panará organizaram um concurso de roças tradicionais, descritas no livro Kâprepa puu popoti hã kia - Livro da Roça Redonda dos Panará, material didático para as escolas nas aldeias.

“Todo mundo trabalhando junto na roça. Pessoal se reúne para caçar, pescar, mulheres bem organizadas com a alimentação. Todo mundo trabalhando junto. Gostava muito dessa organização”, conta o comunicador.

Ele descreve um pouco os principais alimentos: a mandioca é a base da alimentação, para não faltar beiju nem farinha. O amendoim é para guardar no tempo da chuva, para colocar no beiju e no mingau. “Com amendoim seu corpo fica mais forte para fazer movimento”. Tem também cará, milho, melancia, banana, mamão e abacaxi.

Ainda assim, a soberania alimentar é uma preocupação. A Terra Indígena Panará fica próxima de cidades como Guarantã do Norte e Peixoto de Azevedo. “A alimentação dos brancos está enfraquecendo a gente. Estamos preocupados com isso. Estamos conversando para trazer alimentação tradicional mais forte”, afirma Kunity.

Kreton Panará também se ressente da influência cultural dos brancos do entorno. “Hoje, todos tem corte de cabelo de branco”, reclama. Depois de tudo que seu povo passou, ele teme que, sem a cultura, eles percam também seu território.

Durante os dias de festa, Kreton fez apelos aos mais jovens para que valorizassem a cultura tradicional. A questão é que, com o crescimento populacional expressivo após o retorno ao território tradicional, a maioria dos Panará hoje tem menos de 25 anos. São poucos os anciãos que sobreviveram e a manutenção das tradições tem sido um desafio.

A preocupação foi partilhada sobretudo pelas mulheres. Durante os festejos, elas tiveram um espaço de fala garantido na programação. No centro da aldeia, no local conhecido como “Casa dos Homens”, as mulheres Panará e suas convidadas manifestaram seu desejo de sair mais da aldeia, ampliar a atuação política e a representação em espaços de luta. E também a necessidade de segurar a cultura tradicional.

“Os homens precisam de nós”, defende Kwatum, uma das principais lideranças femininas. “Vamos fazer as coisas certas. Tenho parentes que não querem mais se pintar ou estar na cultura. Mas é só assim, com a nossa cultura, que vamos conseguir ter força. Precisamos nos unir”, segue. “Vamos fazer festa, ensinar os jovens a cantar”. Ela lembra que seu pai a ensinou como festejar na cultura. “Meu pai trazia alegria. Eu vou continuar do jeito que meu pai me ensinou”.

Pakiaprin, outra importante voz feminina Panará, manifesta seu desejo de que as mulheres ocupem os espaços de representação política na luta indígena e em eventos fora da aldeia.

“Nós, mulheres, temos força, temos muito o que falar. Nós temos que começar a sair e os homens também têm que cuidar da casa para isso”, afirma. “A festa foi um pouco triste, porque não tem mais velho, os mais velhos se foram, que tinham força para animar. Agora, nós vamos ter que segurar”, anuncia.

Sãso Panará também abordou a questão das tradições. Segundo ela, a mudança de fora está chegando nas aldeias, e o povo Panará precisa se unir para impedir isso. “Eu quero a minha cultura na nossa festa. A mulherada tem que ter força para segurar a cultura. Com a força das mulheres, vamos continuar”, afirma Sowakriti.

Mesmo em um contexto adverso como o dos últimos quatro anos, os limites da Terra Indígena Panará foram resguardados. Não há sinal de invasão de garimpeiros, grileiros e madeireiros, como ocorre em outros territórios. Mesmo assim, os Panará temem pelo seu pedaço de floresta.

Kunity fala da aproximação das fazendas do agronegócio, e da contaminação das cabeceiras dos rios pelos agrotóxicos. “Estamos preocupados com os animais do mato e os peixes do rio. Vamos continuar lutando para manter a nossa vida do jeito que está, para que nenhum garimpeiro ou madeireiro entre na nossa terra”, explica.

“Esse tipo de kuben (não indígena, em Kayapó) estraga a nossa natureza. Seres humanos que vivem na cidade e precisam de natureza. O mundo precisa de natureza para sobreviver”, conclui.

Para saber mais sobre os Panará:

Panará, 20 Anos do Retorno;

Panará, a Volta dos Índios Gigantes;

O Livro das Roças Redondas dos Panará;

Protocolo de Consulta do Povo Panará.

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