Sobre mitos, metáforas e aviltamentos: antropofagia. Artigo de José Geraldo de Sousa Junior

Bolsonaro em pronunciamento | Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

11 Outubro 2022

 

"No centenário da Semana de Arte Moderna, e também bicentenário da Independência, é bom recuperar o esforço de afirmação de nossa identidade como povo e como nação, lembrando a antropofagia, como um chamado à elevação de nossa inteligência, que os colonialismos e a exceção política tendem a rebaixar", escreve José Geraldo de Sousa Junior, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília - UnB, professor e ex-reitor da mesma instituição, em artigo publicado por Jornal Brasil Popular/DF, 10-10-2022.

 

 

Eis o artigo. 

 

O período eleitoral em curso no Brasil, às vésperas de seu desfecho, já escancarou, dos males que nos espreitam, o dilema de sublimar e erguer-se, como cultura e projeto de sociedade, ou de sucumbir, aviltar-se, degradar-se por completo, derrapar em todos os círculos infernais descritos por Dante.

 

Tudo embalado a mitos e metáforas.

 

Uma mulher morreu em Goiás no último último dia 2 de outubro após ser esmagada por uma multidão que disputava espaço para entrar em um frigorífico que havia anunciado, horas antes, a promoção “Picanha do Mito”, onde o produto seria vendido por R$ 22 reais o quilo. O dono do estabelecimento teria armado a promoção em prol da campanha do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL).

 

A promoção “Picanha do Mito”, interrompida no ato pela Justiça Eleitoral de Goiás, e também objeto de ação fiscalizadora do Procon, previa a venda por R$ 22 de um quilo de picanha que custaria R$ 129,99 a quem trajasse a camiseta da seleção brasileira. Para piorar, após a fiscalização, o Procon encontrou quase 50 quilos do produto em situação imprópria para consumo. A Justiça Eleitoral de Goiás obrigou o açougue a encerrar a promoção e apagar as postagens relativas à “picanha do mito”.

 

Ainda no dantesco da campanha, circulou um vídeo no qual Bolsonaro aparece dizendo que comeria um índio!!!! Sem problema nenhum. Autêntico ou não, tudo é se parece nesse carrossel de fake news que se próprio esquema propaga, ele descreve um preparativo tribal, para o qual havia sido chamado, estando numa expedição, no qual um índio morto estaria sendo cozido num preparado com bananas, que ele recusou não pelos ingredientes, mas pela higiene no preparo que o teria enojado.

 

Realidade ou bravata, ele parece referir-se, galimaticamente, a um aspecto da cultura de certos povossobre dispor dos restos mortais de uma pessoa pelo modo de cremação, tal como outros povos, como os hindus. O corpo de um morto é colocado para cremar sobre uma pilha de madeira. Ao final, as cinzas são recolhidas e guardadas em vasos de cerâmica ou madeira, por algum tempo, até o momento em que se realiza uma cerimônia final em benefício do espírito do morto. Aí são convidados os parentes e amigos da aldeia e convidados de outras aldeias, as cinzas são derramadas num caldeirão cheio de mingau de banana, o qual é servido a todos em pequenas porções em uma cuia. Este costume é conhecido na antropologia como “endocanibalismo". Mércio Gomes, antropólogo e indigenista, ex-presidente da Funai, descreve esse ritual que ele conheceu entre os Yanomami, sendo dele o trecho acima.

 

Mas essa representação ritualizada, sublimada em simbolismo, com a mesma intensidade metafórica elevada ao sagrado, ocorre também entre os que professam o sacro na auto-confessada esfera civilizatória ocidental e cristã, que o Presidente proclama como sua escolha in animae: não é o momento mais elevado do litúrgico, no cristianismo romano, o alimentar-se do corpo e do sangue, do cordeiro de Deus? Agnus Dei, quitollispeccatamundi (Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo).

 

No centenário da Semana de Arte Moderna, e também bicentenário da Independência (que o Presidente celebrou com a exibição do coração do colonizador enquanto oficialmente nada disse republicanamente sobre a emancipação e pela construção democrática e dos direitos), é bom recuperar o esforço de afirmação de nossa identidade como povo e como nação, lembrando a antropofagia, como um chamado à elevação de nossa inteligência, que os colonialismos e a exceção política tendem a rebaixar.

 

A metáfora que marcou o movimento (antropofagia = canibalismo), foi dada por seus integrantes (escritores e artistas plásticos) que defendiam a ideia de que a cultura europeia (dominante e com grande influência no Brasil daquela época) deveria ser “devorada e digerida” no Brasil, antes de ser transformada em expressão artística nacional e original. Vale ler, de Lilia M. Schwarcz e Heloisa M. Starling, O monumental Brasil: uma Biografia (São Paulo: Companhia das Letras, 2015) e, o capítulo 13 – A Primeira República e o Povo nas Ruas, e nele, o título Antropófagos, Uni-vos: os Modernismos e as Novas Formas de Ser Brasileiro, especialmente entre as páginas 337-342.

 

Oswald de Andrade, um dos expoentes do Movimento, escreveu em 1928 o Manifesto Antropófago e o Manifesto da poesia pau-brasil. Os manifestos foram publicados na Revista de Antropofagia que circulou entre maio de 1928 e fevereiro de 1929, produzida e dirigida pelo escritor Alcântara Machado e pelo poeta Raul Bopp.

 

Lá diz Oswald de Andrade: “A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos”.

 

Bolsonaro quando diz que “comeria um índio”, não percorre nenhuma das escalas metafóricas, no artístico, no cultural ou no sacro, que se valem do simbolismo antropofágico ou endocanibal. Salvo a da baixa antropofagia. Como tudo em que toca, ele impõe um estigma. Ele tranquilamente comeria um índio porque simplesmente ele não vê o índio como ser humano. Nem humaniza nada que está a sua volta. Basta analisar todos os seus discursos, seu gestual, seu rictus. Do que disse Oswald de Andrade, tudo que se lhe aplica sãos os pecados nos quais se aglomera a mais baixa antropofagia. E isso, 500 anos depois da Sublimis Deus (1537), a Encíclica por meio da qual o Papa (Paulo III) reconhece que os índios, são gente como nós, nossos irmãos, têm alma e podem receber os sacramentos e dispor de seus bens, suas terras, seus territórios, seus usos e modos de viver.

 

Nesse piso, vale lembrar, dos Manifestos, uma outra passagem de Oswald de Andrade sobre os propagadores desses discursos confusos, galimáticos: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chama-se Galli Mathias. Comi-o”. Está posta a mesa para o grande banquete que o eleitor brasileiro, no dia 30 de outubro, possa servir-se. E proclamar ao cair da noite desse dia, sobre esse Galli Mathias reencarnado: “Comi-o”!

 

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