Francisco: "O pacto fiscal é o coração do pacto social". Pagar impostos é uma forma de compartilhamento da riqueza

Papa Francisco durante seu discurso aos empresários | Foto: Vatican Media

13 Setembro 2022

 

O Papa recebeu a Confindustria em audiência: “O sistema fiscal deve ser justo e não corrupto”. A advertência contra “toda forma de exploração e de negligência na segurança”, em especial dos migrantes, e às mulheres despedidas por estarem grávidas. Depois, o convite aos empresários para não perderem o “contato” com a vida da empresa e para criarem empregos para os jovens. Finalmente, sobre a diferença de salários o Papa adverte: “Se a diferença for muito alta, a sociedade adoece”.

 

O discurso é publicado por Sala de Imprensa do Vaticano, 12-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Segundo o Papa Francisco, "os impostos não devem ser considerados como uma usurpação. São uma alta forma de partilha de bens, são o coração do pacto social", pois "o pacto fiscal é o coração do pacto social".

 

Discurso do Santo Padre

 

Caros empresários e empresárias, bom dia e bem-vindos!

 

Agradeço ao Presidente a saudação e a introdução. Fico feliz em poder me encontrar com vocês e, através de vocês, me dirigir ao mundo dos empresários, que são um componente essencial na construção do bem comum, são um motor de desenvolvimento e prosperidade.

 

Este não é um tempo fácil, para vocês e para todos. O mundo dos negócios também está sofrendo muito. A pandemia pôs à prova muitas atividades produtivas, todo o sistema econômico foi ferido. E agora se somou a guerra na Ucrânia com a crise energética resultante. Nessas crises também sofre o bom empreendedor, que tem a responsabilidade por sua empresa, pelos empregos, e que sente sobre si incertezas e riscos.

 

No mercado há empresários “mercenários” e empresários semelhantes ao bom pastor (cf. Jo, 11-18), que padecem os mesmos sofrimentos que os seus trabalhadores, que não fogem diante dos muitos lobos que circulam ao redor. As pessoas sabem reconhecer os bons empresários. Também o vimos recentemente, com a morte de Alberto Balocco: toda a comunidade empresarial e civil ficou entristecida e expressou sua estima e reconhecimento.

 

Desde os inícios, a Igreja acolheu também os mercantes, precursores dos modernos empresários. Na Bíblia e nos Evangelhos fala-se de trabalho, de comércio, e entre as parábolas há aquelas que falam de moedas, de proprietários de terras, de administradores, de pérolas preciosas adquiridas.

 

O pai misericordioso do Evangelho de Lucas (cf. 15, 11-32) é-nos apresentado como um homem rico, proprietário de terras. O Bom Samaritano (cf. Lc 30-35) poderia ter sido um mercador: é ele quem cuida do homem assaltado e ferido, e depois o confia a outro empresário, um hospedeiro. Os “dois denários” que o samaritano antecipa ao hospedeiro são muito importantes: no Evangelho não há apenas as trinta moedas de Judas; não apenas aquelas. De fato, o mesmo dinheiro pode ser usado, ontem como hoje, para trair e vender um amigo ou para salvar uma vítima. Vemos isso todos os dias, quando o dinheiro de Judas e o do Bom Samaritano convivem nos mesmos mercados, nas mesmas bolsas de valores, nas mesmas praças. A economia cresce e se torna humana quando o dinheiro dos samaritanos se torna mais numeroso que o de Judas.

 

Mas a vida dos empresários na Igreja nem sempre foi fácil. As palavras duras que Jesus usa para com os ricos e as riquezas, aquelas do camelo e do buraco da agulha (cf. Mt, 23-24), às vezes foram estendidas com demasiada rapidez a todo empresário e a todo comerciante, comparados àqueles vendedores que Jesus expulsou do templo (cf. Mt, 12-13). Na realidade, pode-se ser comerciante, empresário, e ser seguidor de Cristo, habitante do seu Reino. A pergunta então passa a ser: quais são as condições para que um empresário possa entrar no Reino dos Céus? E gostaria de destacar algumas. Não é fácil...

 

A primeira é o compartilhamento. A riqueza, por um lado, ajuda muito na vida; mas também é verdade que muitas vezes a complica: não só porque pode tornar-se um ídolo e um senhor implacável que rouba dia após dia toda a vida. Também complica porque a riqueza exige responsabilidade: uma vez que possuo bens, tenho a responsabilidade de fazê-los dar frutos, de não os desperdiçar, de usá-los para o bem comum. Além disso, a riqueza cria em torno de si inveja, maledicência, muitas vezes violência e maldade.

 

O próprio Jesus diz que é muito difícil para um rico entrar no Reino de Deus. Difícil, sim, mas não impossível (cf. Mt 19,26). E de fato conhecemos pessoas ricas que fizeram parte da primeira comunidade de Jesus, por exemplo Zaqueu de Jericó, José de Arimateia, ou algumas mulheres que sustentavam os apóstolos com seus bens. Nas primeiras comunidades havia mulheres e homens que não eram pobres; e na Igreja sempre houve pessoas ricas que seguiram o Evangelho de forma exemplar: entre elas também empresários, banqueiros, economistas, como os beatos Giuseppe Toniolo e Giuseppe Tovini.

 

Para entrar no Reino dos Céus, nem a todos é pedido para se despirem como o mercador Francisco de Assis; a alguns que possuem riquezas é pedido para compartilhá-las. Compartilhar é outro nome para a pobreza evangélica. E, de fato, a outra grande imagem econômica que encontramos no Novo Testamento é a comunhão de bens narrada pelos Atos dos Apóstolos: “E era um o coração e a alma da multidão dos que criam [...], todas as coisas lhes eram comuns [...]. Não havia, pois, entre eles necessitado algum” (4,32-34).

 

Como viver hoje esse espírito evangélico de partilha? As formas são diferentes, e cada empresário pode encontrar a sua, de acordo com sua personalidade e criatividade. Uma forma de compartilhamento é a filantropia, ou seja, doar à comunidade, de várias maneiras. E aqui quero agradecer seu apoio concreto ao povo ucraniano, especialmente às crianças deslocadas, para que possam ir à escola; obrigado!

 

Mas muito importante é aquela modalidade que no mundo moderno e nas democracias são impostos e as taxas, uma forma de compartilhamento muitas vezes não entendida. O pacto fiscal é o coração do pacto social. Os impostos também são uma forma de compartilhamento da riqueza, para que ela se transforme em bens comuns, bens públicos: escola, saúde, direitos, cuidados, ciência, cultura, patrimônio. É claro que os impostos devem ser justos, equitativos, fixados com base na capacidade de contribuição de cada pessoa, conforme estabelecido na Constituição italiana (ver artigo 53). O sistema e a administração tributária devem ser eficientes e não corruptos. Mas os impostos não devem ser considerados como uma usurpação. São uma alta forma de partilha de bens, são o coração do pacto social.

 

Outra forma de partilha é a criação de trabalho, trabalho para todos, especialmente para os jovens. Os jovens precisam da sua confiança e vocês precisam dos jovens, porque as empresas sem jovens perdem inovação, energia e entusiasmo. O trabalho desde sempre é uma forma de comunhão de riquezas: ao contratar pessoas vocês já estão distribuindo seus bens, já estão criando riquezas compartilhadas. Cada novo emprego criado é uma fatia de riqueza compartilhada dinamicamente. Aqui também reside a centralidade do trabalho na economia e sua grande dignidade. Hoje, a técnica corre o risco de nos fazer esquecer essa grande verdade, mas se o novo capitalismo criar riqueza sem criar empregos, entra em crise essa grande função boa da riqueza. E por falar nos jovens: quando encontro os governantes, muitos me dizem: “O problema do meu país é que os jovens vão embora, porque não encontram oportunidades”. Criar empregos é um desafio e alguns países estão em crise por causa dessa falta. Peço-lhes este favor: que aqui, neste país, graças à sua iniciativa, à sua coragem, existam empregos, criados sobretudo para os jovens.

 

No entanto, o problema do trabalho não pode ser resolvido se permanecer ancorado apenas nos limites do mero mercado de trabalho: é o modelo de ordem social que deve ser questionado. Que modelo de ordem social? E aqui entra a questão da redução da natalidade. A queda na taxa de natalidade, aliada ao rápido envelhecimento da população, está agravando a situação para os empresários, mas também para a economia em geral: a oferta de trabalhadores diminui e aumentam as despesas com pensões a cargo das finanças públicas. É urgente apoiar as famílias e a natalidade na prática. Devemos trabalhar nisso, para sair o mais rápido possível do inverno demográfico em que a Itália e outros países estão vivendo. É um inverno demográfico ruim, que vai contra nós e nos impede essa capacidade de crescer. Hoje ter filhos é, eu diria, uma questão patriótica, inclusive para levar o país adiante.

 

Ainda a respeito da taxa de natalidade: às vezes, uma mulher que está empregada aqui ou trabalha ali, tem medo de engravidar, porque existe uma realidade - não estou falando entre vocês - mas existe uma realidade que assim que se começa a ver a barriga, ela é mandada embora. “Não, não, você não pode engravidar.” Por favor, esse é um problema das mulheres trabalhadoras: estudem-no, vejam como fazer para que uma mulher grávida possa continuar, tanto com o filho que está esperando, quanto com o trabalho. E ainda em relação ao trabalho, há outro tema a destacar. A Itália tem uma forte vocação comunitária e territorial: o trabalho sempre foi considerado dentro de um pacto social mais amplo, onde a empresa é parte integrante da comunidade.

 

O território vive da empresa e a empresa se nutre dos recursos locais, contribuindo substancialmente para o bem-estar dos lugares em que está inserida. Nesse sentido, deve ser realçado o papel positivo que as empresas desempenham sobre a realidade da imigração, favorecendo a integração construtiva e valorizando capacidades indispensáveis para a sobrevivência da empresa no contexto atual. Ao mesmo tempo é necessário reafirmar fortemente o “não” a qualquer forma de exploração das pessoas e negligência em sua segurança. O problema dos migrantes: o migrante deve ser acolhido, acompanhado, apoiado e integrado, e a forma de integrá-lo é o trabalho. Mas se o migrante é rejeitado ou simplesmente usado como trabalhador sem direitos, isso é uma grande injustiça e também prejudica o próprio país.

 

Também gosto de lembrar que o próprio empresário é um trabalhador. E que isso é muito bom, hein! Não vive de renda; o verdadeiro empresário vive do trabalho, vive trabalhando e continua sendo empresário enquanto trabalha. O bom empresário conhece os trabalhadores porque conhece o trabalho. Muitos de vocês são empresários artesãos, compartilhando a mesma labuta e beleza cotidiana de seus funcionários. Uma das graves crises do nosso tempo é a perda de contato dos empresários com o trabalho: à medida que crescem, a vida passa em escritórios, reuniões, viagens, congressos e não se vai mais às oficinas e às fábricas. Esquece-se o “cheiro” do trabalho. É ruim. É como acontece a nós padres e bispos, quando esquecemos o cheiro das ovelhas, não somos mais pastores, somos funcionários. Esquece-se o cheiro do trabalho, não se consegue mais reconhecer os produtos com os olhos fechados ao tocá-los; e quando um empresário não toca mais em seus produtos, ele perde o contato com a vida de sua empresa, e muitas vezes também começa seu declínio econômico. O contato, a proximidade, que é o estilo de Deus: estar perto.

 

Criar trabalho gera também uma certa igualdade em suas empresas e na sociedade. É verdade que existe uma hierarquia nas empresas, é verdade que existem funções e salários diferentes, mas os salários não devem ser muito diferentes. Hoje a parcela de valor que vai para o trabalho é muito pequena, principalmente se compararmos com aquela que vai para as rendas financeiras e os salários dos altos executivos. Se a diferença entre os salários mais altos e os mais baixos se tornar muito grande, a comunidade empresarial adoece e logo a sociedade adoece.

 

Adriano Olivetti, um grande colega de vocês do século passado, havia estabelecido um limite de distância entre os salários mais altos e os mais baixos, porque sabia que quando os salários são muito diferentes, perde-se na comunidade empresarial o sentido de pertencimento a um destino comum, não se cria empatia e solidariedade entre todos; e assim, diante de uma crise, a comunidade de trabalho não responde como poderia responder, com graves consequências para todos.

 

O valor que vocês criam depende de todos e de cada um: depende também da sua criatividade, talento e inovação, depende também da cooperação de todos, do trabalho cotidiano de todos. Porque se é verdade que cada trabalhador depende dos seus empresários e gestores, também é verdade que o empresário depende dos seus trabalhadores, da sua criatividade, do seu coração e da sua alma: podemos dizer que depende do seu “capital” espiritual, dos trabalhadores.

 

Caros amigos, os grandes desafios da nossa sociedade não poderão ser superados sem bons empresários, e isso é verdade. Encorajo vocês a sentir a urgência do nosso tempo, a serem protagonistas desta mudança de época. Com a sua criatividade e inovação podem criar um sistema econômico diferente, onde a salvaguarda do ambiente seja um objetivo direto e imediato de sua ação econômica. Sem novos empresários, a Terra não resistirá ao impacto do capitalismo e deixaremos um planeta muito ferido, talvez inabitável, para as próximas gerações. O que fizemos até agora não é suficiente: por favor, vamos nos ajudar juntos a fazer mais.

 

E agradeço por sua presença e desejo tudo de bom para vocês e seu trabalho. Abençoo vocês de coração juntamente com as suas famílias. E por favor, peço-lhes que não se esqueçam de orar por mim. Obrigado!

 

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