Desigualdades na Região Metropolitana de Porto Alegre: resistências e enfrentamentos

Ciclo de Debates discute a questão da moradia na região metropolitana de Porto Alegre

Foto: Ricardo Machado | IHU

Por: Patricia Fachin | 04 Agosto 2022

 

Autotomia

 

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.
Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.
No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.
Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.
Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.
Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.
Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.
Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.
Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.
O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

(Wisława Szymborska)

 

As duas últimas linhas do poema da escritora polaca, Prêmio Nobel de Literatura em 1996, ilustraram a matéria intitulada "O abismo da moradia", que narra o cotidiano dos moradores de algumas das Ocupações existentes em São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, onde o déficit habitacional era estimado em 10 mil famílias, cerca de 30 mil pessoas, segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação em 2018. Em 2019, um ano antes da pandemia de Covid-19, quando a matéria foi produzida e publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, mais de 200 famílias viviam na Ocupação Steigleder, 245, na Ocupação Vitória, 68, na Ocupação Cerâmica Anita, e 2.500, na Ocupação Justo, com renda média que variava de 300 a 900 reais mensais, oriunda em geral a partir do ganho obtido com a venda de materiais recicláveis que são coletados pela cidade ao longo do dia pelos trabalhadores.

 

 

 

Nos últimos três anos, o déficit habitacional no município - e em todo o país - aumentou em função dos efeitos da pandemia de Covid-19, como o aumento do desemprego, da pobreza e a impossibilidade de inúmeras famílias continuarem pagando o aluguel. Até agosto de 2021, 14.301 famílias foram removidas de suas casas em todo o país, segundo dados apresentados pelo engenheiro civil Luiz Kohara, pesquisador do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em entrevista concedida ao IHU. "O despejo é uma das situações mais degradantes a que uma pessoa ou família pode se expor, além de todos os prejuízos materiais e morais. Apesar de o acesso à moradia digna ser um direito constitucional, a maioria do judiciário não faz cumprir este direito social; pelo contrário, atende o direito à propriedade de quem deixa abandonados áreas ou edifícios por interesses especulativos", disse.

 

Segundo Cristiano Schumacher, dirigente estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM do Rio Grande do Sul, "além daquelas famílias que nunca tiveram acesso e que vivem de maneira precária nas milhares de ocupações, por aí se acrescentou um conjunto de pessoas que não conseguiram mais pagar o aluguel. Essas pessoas foram para a condição de coabitação, morando com parentes num mesmo terreno ou numa mesma casa e muitas outras que foram para ocupações e mesmo habitações muito precárias como cortiços, alguns morando até na rua. Por isso, com certeza a pandemia fez com que aumentasse ainda mais o déficit habitacional, também pelo empobrecimento da crise econômica que também não é causada só pela pandemia". Em entrevista concedida ao IHU neste ano, ele disse que o "Estado brasileiro" está "no cerne do debate da questão da moradia e déficit habitacional no Brasil" porque não cumpre "seu papel de garantir como direito fundamental, assim como está escrito na Constituição, a moradia".

 

 

Schumacher, juntamente com Bárbara Rodrigues Marinho, mestranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, discutirão as "Desigualdades na Região Metropolitana de Porto Alegre: resistências e enfrentamentos" no "Ciclo de Debates Eleições 2022 em perspectiva: as desigualdades sociais na Região Metropolitana de Porto Alegre", promovido virtualmente pelo IHU. O evento será realizado nesta quinta-feira, 04-08-2022, às 17h30, e transmitido na página do IHU, no Canal do IHU no YouTube e nas redes sociais.

 

 

Acesso a terra e a recursos públicos

 

Apesar de a legislação brasileira garantir a moradia como um direito dos cidadãos, Schumacher pontua que o acesso a terra ainda "é um limite" para efetivar a moradia digna porque os governos não garantem o acesso e a posse a terras ociosas. Outra dificuldade diz respeito ao acesso aos recursos públicos. "O Estado brasileiro precisa se organizar, União, estados e municípios, para constituir um fundo nacional de habitação de interesse social para que se tenha recursos a fundo perdido para subsídios à habitação das famílias mais pobres. Ou seja, é o governo que paga por essa moradia para garantir esse direito", afirma.

 

O povo mora onde o bolso alcança

 

Outras questões que afetam a moradia, de acordo com Cristiano Schumacher, são a renda e o desenvolvimento econômico das regiões. "O povo mora onde o bolso dele alcança, e historicamente no Brasil o povo nunca teve acesso a terra. Moradia e terra se tornam mercadoria e a partir daí o povo foi buscando alternativas para morar, seja um barraco numa ocupação, aluguel precário. Por isso é importante que a gente pense também o desenvolvimento econômico, pense possibilidade de, dentro de seus territórios, desenvolver políticas que possam alicerçar a economia, o desenvolvimento social, a integração das comunidades para que a gente não precise deslocar massas enormes de trabalhadores até as indústrias e que eles possam ter ocupação e geração de renda nos seus territórios. Também passa muito pela formação e capacitação das pessoas, investimentos em novos empreendimentos e ter, obviamente, investimento público nisso. É necessário fazer uma reparação de séculos de exclusão social de famílias que vivem um círculo de pobreza infinita e que precisa ser rompido", reitera.

 

 

Teologia da luta pela terra e por moradia

 

Além da sua perspectiva social, o tema da moradia também pode ser refletido à luz da teologia, conforme explica frei Gilvander Moreira, da Ordem dos Carmelitas, doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, em artigo publicado no sítio do IHU em 2020, um mês antes de o país começar a assistir às dificuldades das pessoas aderirem ao isolamento social em suas próprias casas por causa da precariedade habitacional. "Etimologicamente, Teologia é uma palavra da língua grega composta por teo = Deus, e logia = ciência. Entretanto, teologia não é apenas ‘ciência de Deus’ e nem é apenas reflexão sobre as coisas relativas a Deus, ao pós-morte, às coisas de fé. Teologia é pensar a partir dos injustiçados qualquer assunto em uma perspectiva de fé no Deus da vida, mistério de infinito amor que nos envolve. Portanto, qualquer assunto pode e deve ser teologizado", explica.

 

Nessa perspectiva, acrescenta, "necessário se faz também pensarmos teologicamente sobre a luta pela terra e pela moradia própria, digna e adequada. Teologia da terra e Teologia da moradia nos dizem que o Deus da vida quer terra e moradia para todos os seres humanos e para todos os outros seres vivos, inclusive".

 

 

No caso brasileiro, Moreira correlaciona o crescente déficit habitacional com a "injustiça agrária e social", que marcam a história do país, com a "falta de reformas agrária e urbana" por parte do Estado, e perpetuação de latifúndios e, mais recentemente, com a "especulação imobiliária". "Uma família camponesa sem-terra é como um pé de bananeira sobre o asfalto. Os clamores dos camponeses sem-terra e de milhões de pessoas crucificadas pela especulação imobiliária que gera pesadíssima cruz do aluguel ou a humilhação que é sobreviver de favor nos fazem pensar: Deus compactua com essas injustiças? O Deus da vida, Javé, solidário e libertador ao lado injustiçados/as, fica irado diante da concentração da terra e da moradia em poucas mãos. No Brasil nunca foi feita reforma agrária de nenhum tipo. Nos países europeus e nos Estados Unidos, pelo menos reforma agrária capitalista foi feita. Políticas habitacionais populares estão quase somente em discursos e vãs promessas. Direitos fundamentais, como o de acesso a terra e à moradia adequada, vêm sendo há muito tempo violados", observa.

 

 

A próxima edição do "Ciclo de Debates Eleições 2022 em perspectiva: as desigualdades sociais na Região Metropolitana de Porto Alegre" será na terça-feira, 09-08-2022, com a palestra intitulada "Cenários das desigualdades e seus determinantes na Região Metropolitana de Porto Alegre", com a participação do Prof. Dr. André Ricardo Salata, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e a MS Paola Carvalho, da Rede Brasileira de Renda Básica. O evento virtual será transmitido na página eletrônica do IHU, no Canal do IHU no YouTube e nas redes sociais às 17h30. A programação completa do evento está disponível aqui.

 

 

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