A doçura da amizade hospitaleira

15 Julho 2022

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 16º Domingo do Tempo Comum, 17 de julho de 2022 (Lucas 10,38-42). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Quando Lucas escreve o terceiro Evangelho, ele continua sendo um homem “eclesial”, que tem um conhecimento experiencial da vida das comunidades cristãs, aquelas que ele descreverá na segunda parte da sua obra, os Atos dos Apóstolos. Na Igreja daquela época, assim como ainda hoje em cada comunidade cristã, registravam-se e registram-se dificuldades, tensões entre os diversos serviços e os diversos modos de viver a vida cristã.

 

Nos Atos – não esqueçamos – Lucas testemunha um conflito entre o serviço à mesa e o serviço da Palavra, que é resolvido por meio de uma divisão dos serviços: aos apóstolos compete anunciar o Evangelho, enquanto a outros sete fiéis, o serviço à mesa (cf. At 6,1-6). Essa solução não quer ser exemplar ou de autoridade para a Igreja: foi uma solução, mas talvez pudesse haver outras...

 

Em todo o caso, resolveu-se o conflito reconhecendo que há um primado a ser respeitado: o primado da palavra de Deus escutada e pregada, sem a qual não há comunidade cristã. No trecho de hoje, manifesta-se o mesmo problema: tentemos, portanto, compreender humildemente as palavras de Jesus.

 

Na sua subida rumo a Jerusalém, Jesus encontra hospitalidade em uma família: duas irmãs, Marta e Maria, e o irmão Lázaro, em Betânia, nos arredores da Cidade Santa, o acolhem em casa oferecendo-lhe comida e alojamento. Isso acontecerá com frequência, em particular na semana anterior à paixão de Jesus (cf. Mc 11,11; Mt 21,17; Jo 12,1-11).

 

O quarto Evangelho nos dá muitas informações sobre esses três amigos de Jesus, muito amados por ele (cf. sobretudo Jo 11,1-43). Por isso, Jesus, que foi rejeitado pelos samaritanos (cf. Lc 9,51-55), encontra uma casa que o acolhe, que lhe permite desfrutar da intimidade da amizade, descansar, ter tempo para pensar na sua missão.

 

Ao entrar na casa, é acolhido por Marta, uma mulher ativa, empreendedora, que se sente empenhada em lhe preparar a comida e uma mesa digna de um rabino, de um amigo. Marta aqui é “puxada por todos os lados”, atarefada e absorvida pelos serviços.

 

Maria, a outra irmã, aparece antes como uma mulher mais contemplativa, que, durante a estada de Jesus em casa, ama acima de tudo escutá-lo, colocar-se aos pés do mestre e profeta para receber o seu ensinamento. Na presença de Jesus, Maria assume assim a postura clássica do discípulo (cf. Lc 8,35; At 22,3). A tradição rabínica afirmava: “Que a tua casa seja um lugar de encontro para os sábios; agarra-te ao pó dos seus pés e bebe sedento as suas palavras” (Mishna, Avot I, 4), mas essa tarefa era reservada aos homens, certamente não às mulheres. Isso teria sido não apenas inusual, mas também escandaloso, como também lemos na Mishná: “Quem ensina a Torá à sua filha é como se lhe ensinasse coisas sujas” (Sotah 3,4).

 

Maria, portanto, faz um gesto corajoso, audacioso, mostrando uma forte subjetividade e uma profunda consciência: faz-se discípula, certa de que o rabi Jesus não a rejeitará, mas exercerá o seu ministério dirigindo-se a uma mulher assim como aos homens, aceitará ter uma discípula e não apenas discípulos. Por outro lado, Lucas já havia dado testemunho acerca das mulheres no seguimento de Jesus (cf. Lc 8,2-3); aqui, porém, ele especifica ainda mais: as mulheres não apenas seguem Jesus “servindo-o com os seus bens”, mas também são destinatárias do seu ensinamento, assim como os discípulos.

 

Mas eis que aparece o conflito. Vendo a irmã à escuta aos pés de Jesus, Marta intervém irritada, dizendo-lhe: “Senhor, não te importas que minha irmã me deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!” Atenção: Marta chama Jesus de Kýrios, Senhor, título que ecoa a confissão pascal da Igreja em relação a ele (“É o Senhor!”: Jo 21,7). Por outro lado, de acordo com o quarto Evangelho, Marta é aquela que faz a mais alta confissão de fé em Jesus, chamando-o de “o Cristo, o Filho de Deus que veio ao mundo” (Jo 11,27), uma confissão mais completa do que a de Pedro (cf. Jo 6,69).

 

Aqui, porém, as suas palavras denotam irritação e quase forçam Jesus a intervir junto à sua irmã Maria. Afinal, Marta está se esforçando justamente para acolher bem Jesus, mas o seu zelo beira a inquietação e a preocupação. Embora fazendo ações para Jesus, Marta está distraída e preocupada, e, portanto, dividida – como o próprio Jesus lhe diz logo em seguida –, ou seja, assumiu uma atitude e sentimentos que a impedem de escutar o Kýrios.

 

Jesus, então, intervém, não para repreender, mas para oferecer a Marta um diagnóstico: “Marta, Marta! Tu te preocupas e andas agitada por muitas coisas!” Essas palavras devem ser bem entendidas, e não compreendidas segundo um ditado que temos nos nossos ouvidos por ser repetido há séculos, um ditado que beatifica a vida contemplativa e lhe confere o primado sobre a ativa, fruto envenenado do neoplatonismo cristão…

 

Não! O que Jesus quer corrigir em Marta, aliás, docemente, é a preocupação, ou seja, aquela agitação que impede a escuta e a acolhida autêntica do próprio Jesus. Para agradar a Jesus e estar perto dele, Marta não se dá conta de que, na realidade, faz de tudo para criar obstáculos à verdadeira relação com ele. Os meios para alcançar o fim são mais importantes para ela do que o fim. Agitar-se, preocupar-se significa desviar a atenção do outro e pensar demais em si mesmo: iludimo-nos de pensar nos outros, mas a agitação não o permite ou, melhor, o impede...

 

Além disso, Jesus adverte em outro lugar para não se preocupar com as palavras a serem pronunciadas para se defender quando alguém é acusado por causa dele (cf. Lc 12,11: verbo merimnáo), para não se preocupar com a comida e a roupa (cf. Lc 12,22-29: verbo merimnáo), para não se deixar levar pela agitação pela vida, à espera da vinda do Filho do homem (cf. Lc 21,34-35: substantivo mérimna).

 

Ora, ao pôr por escrito esse episódio, além das exortações que acabamos de citar, é muito provável que Lucas se inspire naquilo que Paulo afirmou em 1Cor 7, quando, falando da relação com o Senhor, o Apóstolo exorta a não sermos distraídos, puxados para aqui e ali (aperispástos: 1Cor 7,35; cf. periespâto: Lc 10,40), nem preocupados, divididos (amerímnous: 1Cor 7,32; meméristai: 1Cor 7,34; cf. merimnâs: Lc 10,41).

 

Essa advertência, portanto, vale tanto para Marta quanto para cada um de nós! Que fique claro, portanto: Jesus não condena Marta porque ela trabalha, fazendo algo para ele, até porque ele amava a mesa, alegrava-se em compartilhar uma boa comida e um bom vinho com os amigos e as amigas, mas a adverte para não se deixar levar pelo afã, a ponto de esquecer a sua presença.

 

Ocupar-se, e não preocupar-se; trabalhar, e não agitar-se; servir, e não correr: são atitudes humanas absolutamente necessárias para toda “boa” acolhida!

 

Por fim, eis uma última palavra: “Uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será tirada.” O que é realmente necessário? O que é determinante na relação com Jesus? Uma só coisa: ser seu discípulo, sua discípula, escutando a sua palavra. Não por acaso, justamente Lucas nos diz que a relação de maternidade de Maria com Jesus também passa para o segundo plano em relação ao vínculo decisivo com Ele, que consiste na escuta e em pôr em prática a sua palavra (cf. Lc 11,27-28). Então,

 

não é o ventre que trouxe Jesus que é bem-aventurado,
não é quem acolhe Jesus com uma refeição extraordinária que é bem-aventurado,
não é quem acha que têm que fazer muitas coisas por Jesus que é bem-aventurado,
mas sim quem escuta a sua palavra e a põe em prática!

 

Não é fácil para nós respeitar esse primado da escuta, porque achamos que temos muitas coisas a fazer, muitos serviços a realizar, e muitas vezes nós os inventamos, a fim de não escutar as palavras de Jesus. De fato, em nós, há rebelião às palavras de Jesus, há a tentação de não as escutar para não as observar, há a tentação de preferir aquilo que queremos, aquilo que decidimos, aquilo de que somos protagonistas, em vez de escutar e obedecer. Quando me interrogo sobre essa passagem do Evangelho, sinto-me mais Marta do que Maria, e sinto vergonha e arrependimento por isso...

 

Mas não esqueçamos a grande novidade dessa página: uma mulher se faz discípula de Jesus, e essa é “a porção” de Maria que escuta, a boa porção que nunca lhe será tirada, porque “a sua porção é o Senhor” (cf. Sl 16,5). As mulheres não são apenas chamadas, como todos os discípulos, ao serviço, à diakonía, mas sobretudo à escuta: a oposição entre Marta e Maria revelada por Jesus não é uma oposição entre atividade e contemplação, mas entre não escuta e escuta do Senhor.

 

 

 

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