Chile. “A nova Constituição abre um caminho para os direitos sociais se tornarem realidade, por meio da luta organizada”, afirma Manuel Cabieses

Foto: Cristian Castillo | Unsplash

12 Julho 2022

 


“O perigo de uma Terceira Guerra Mundial que parece estar a caminho devido ao conflito Rússia-Ucrânia e à prontidão da OTAN para a guerra. Essa ameaça é um fator que qualquer projeto de esquerda deve levar em conta. Já estamos sentindo os efeitos da ameaça de guerra. Não obstante, a aprovação da Nova Constituição – com todas as sua insuficiências – abre um caminho para tornar realidade, mediante luta organizada, os direitos sociais em saúde, educação, salário e moradia, e avançar depois em objetivos maiores. Todos os esforços da dizimada esquerda chilena deveriam se concentrar no plebiscito de 04 de setembro. Se não procedermos desta forma, um retrocesso antidemocrático é previsível”, alerta Manuel Cabieses Donoso, sobre o processo constituinte vivido no Chile e o novo cenário para as esquerdas latino-americanas, despertado pelos protestos populares de 2019.

 

Manuel Cabieses Donoso, 89 anos, jornalista. Foi diretor da revista Punto Final. Esteve preso por dois anos em vários campos de prisioneiros (1973 a 1975), foi expulso do país e retornou em 1979 para se incorporar à direção clandestina do MIR. Foi dirigente sindical, do Sindicado dos Jornalistas do Chile e da Federação Latino-Americana de Jornalistas.

 

A entrevista é de Leopoldo Lavín Mujica, publicada por El Clarín, 08-07-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Manuel, qual é tua análise da conjuntura política, que vivemos desde outubro de 2019 no Chile? Ou, como chegamos até aqui? Em vez das causas, te pergunto em termo da genealogia dos ocorridos... quais foram, na tua avaliação, as decisões importantes tomadas pelos diferentes atores políticos, movimento popular organizado, movimento estudantil, governos, esquerdas, partidos políticos institucionais, classes sociais dominantes, classe trabalhadora, etc.

 

Creio que seja inevitável falar das causas. Se diz – com razão – que vivemos uma “mudança de época”, porém, não se assume essa realidade que está subvertendo valores e instituições estagnadas que já não tem pertencimento nem autoridade alguma. Esta pestana de terra firme sobre o oceano que é o Chile é um dos países mais atrasados, desiguais e conservadores do mundo.

 

Desde a batalha de Lircay e da Constituição de 1833, o Chile é um reduto oligárquico que mediante a força bruta resistiu a guerras civis, golpes de Estados, rebeliões, massacres, conspirações, vitórias eleitorais do povo transitórias, etc. O Estado portaliano do século XIX permanece de pé. É o dique que estanca o progresso, cultura e democracia e que permite que a depredação dos recursos naturais que deveriam assegurar a vida das novas gerações de chilenos.

 

Isso permite que uma rebelião como a de outubro e novembro de 2019, que abalou instituições civis e militares, apodrecidas pela corrupção, canalize a agonia desse sistema institucional por canais burocráticos. Mais de um milhão e meio de pessoas em Santiago e centenas de milhares nas províncias – numa aliança multiclassista de classes média e baixa nunca antes vista – exigiram a destituição do Presidente da República e a convocação de uma Assembleia Constituinte. Mas este magnífico esforço do povo, devido à falta de uma direção revolucionária, levou a uma “saída de emergência”: a Convenção Constitucional, uma imitação “chilensis” da Assembleia Constituinte, atada de pés e mãos por um quórum de dois terços e uma intrincada teia de limitações e regulamentos. No entanto, o tiro conservador saiu pela culatra. Os 154 convencionalistas – homens e mulheres eleitos pelo povo – construíram sua própria maioria de 2/3 e, se não foram mais longe em suas conclusões, foi porque não foram acompanhados de uma ampla mobilização de massas. Mais uma vez, a ausência de uma liderança revolucionária fez pender a balança em favor da oligarquia dominante.

 

Mesmo assim, no plebiscito de 04 de setembro, a alternativa povo-oligarquia será novamente colocada em jogo; explorados-exploradores; pobres ricos; democracia–plutocracia; privilégios de igualdade.

 

Claro, a nova Constituição não é a Revolução Socialista como a má-fé está tentando fazer parecer. A Revolução Socialista não é feita no papel. Mas o projeto abre condições de organização sindical, social e política, respeito aos direitos humanos e sociais, proteção ao meio ambiente etc.

 

Em 1992, o ilustre estadista revolucionário Fidel Castro caracterizou nosso tempo com palavras inflamadas: “Uma importante espécie biológica corre o risco de desaparecer devido à rápida e progressiva liquidação de suas condições naturais de vida: o homem”. Quase 30 anos se passaram e em países dependentes como o Chile, a realidade nos obriga a acelerar o passo na construção de uma alternativa de solidariedade entre os seres humanos, para conter o lucro e a usura, para um sistema que permita repartir os frutos do trabalho e proteger as riquezas naturais e o meio ambiente que constituem o patrimônio de nossos descendentes.

 

Manuel, cito-o: “A Convenção Constitucional não tinha os poderes nem o espírito de uma Assembleia Constituinte. No entanto, ficará para a história como o primeiro em dois séculos em que 154 homens e mulheres, em paridade de gênero e eleitos pelo povo, propõem uma Constituição que geralmente era redigida e promulgada por um punhado de advogados nomeados pela classe dominante. Presa em um emaranhado de obstáculos e regras que lhe tiravam a independência e autoridade, a Convenção não podia sequer examinar os acordos de livre comércio que submetem a soberania nacional a tribunais estrangeiros. E não reivindicou a nacionalização do cobre, a ‘renda do Chile’ como chamou o presidente Salvador Allende, que ficará quase tudo em mãos privadas para não provocar a ira de velhos e novos imperialismos [...] Com todas as suas limitações , a nova Constituição é mil vezes maior do que a monstruosidade de 1980. Deve ser interpretada como um ‘passo à frente’ que exige continuar a luta por objetivos democráticos mais elevados”.

 

Essa sua frase, Manuel, leva-me a lhe perguntar se não é como uma espécie de maldição da esquerda chilena (especialmente a institucional) sempre aceitando males menores e dispositivos de autoconstrução que sempre acabam sendo usados para fins que, desde a ditadura, são os mesmos: manter a dominação com formas institucionais mais brandas, mas que permitem que o poder econômico permaneça nas mãos da oligarquia empresarial, ou seja, com as rédeas para administrar o poder... O que você diz, com sua experiência política de militante e de jornalista revolucionário?

 

Quero dizer que não podemos continuar a culpar os estagnados se não formos capazes de construir uma alternativa revolucionária. O “mal menor” continuará sendo um caminho evasivo inevitável se não houver alternativa político-social plausível. Essa ausência permite que uma “esquerda” fluída e sem princípios sobreviva. A filosofia resignada de que “peor es mascar lauchas” (ditado popular chileno, em tradução literal: “pior é comer rato”) continuará imperando. Nesse sentido, você está certo: o “mal menor” é uma espécie de maldição. Mas é também uma maneira de disfarçar nossas próprias fraquezas. O Chile vive uma profunda crise do estado oligárquico. Instituições civis, militares e policiais, partidos políticos, sindicatos e organizações sindicais, estão divididos entre corrupção e burocracia. Suas decisões e suas leis são desprezadas e ignoradas pela grande maioria dos cidadãos. Se poderia pedir melhores condições para construir uma alternativa socialista?

 

 

Bem, já que tocamos no tema da esquerda... o que está acontecendo com as esquerdas chilenas?

 

É doloroso referir-se a elas, à sua fragmentação, ao seu ódio, à sua cômica arrogância, à sua infantilidade lamentável.

 

No entanto, se com a aprovação da nova Constituição conseguirmos mobilizar a maioria das pessoas que depois pressione o governo e o parlamento, acho que estariam reunidas as condições para começar a falar seriamente sobre uma alternativa social e política independente que o movimento popular precisa decolar.

 

No Equador existe uma Constituição ‘atualizada’, poderíamos dizer, que reconhece os povos indígenas, afirma a democracia representativa e até a democracia direta e popular; E, no entanto, isso não impede a terrível repressão do Estado governado pelo direitista Guillermo Lasso contra as mobilizações populares lideradas pela Confederação de Organizações Indígenas do Equador – CONAIE. Situação derivada, como bem sabemos, das condições miseráveis de vida impostas pelo neoliberalismo aos povos do Equador... Qual a sua opinião?

 

O exemplo do Equador mostra que uma Constituição não é suficiente para mudar a relação de forças dentro do Estado. Uma Constituição é apenas papel e tinta se não existirem as forças sociais e políticas que a tornam realidade. A luta heroica do povo equatoriano – liderado pelo campesinato indígena –, porém, não foi em vão. O governo conservador teve que ceder e negociar com a CONAIE e outras organizações populares. Parece-me que o presente é um momento de trégua na luta e que os equatorianos superarão os preconceitos políticos e raciais para erguer frentes de combate mais avançadas. De resto, é o ar que se respira na América Latina.

 

Manuel, é um fato completamente ignorado de propósito pelas esquerdas partidárias e pela Frente Amplia: foram as greves convocadas pelas organizações operárias – que se sentiram desafiadas pela rebelião popular e cidadã de 18 outubro de 2019 poucos dias antes do pacto burguês de governabilidade de 15 de novembro de 2019 – que obrigaram o governo Piñera e os partidos da situação e da oposição da época (Partido Socialista, Democracia Cristiana, Partido Radical, e Gabriel Boric por seu lado) a sentar-se para pactuar… Qual é a sua reação? Isso nos leva necessariamente a analisar o papel do Partido Comunista e do Partido Socialista...

 

Acho que respondi parcialmente a essa pergunta. Quanto às partes que assinaram e às que não assinaram o acordo de 15 de novembro – que teve, dizem, o canglor de espadas como música de fundo – o julgamento já está dado. O resultado, por um lado – e o principal – é a proposta de Constituição de uma Convenção histórica para o Chile, embora fraca ao nível mundial. Por outro lado, embora menos significativo – pelo menos por enquanto – o resultado é um governo que essencialmente repete o esquema da antiga Concertación. Existem os partidos social-democratas e uma Frente Ampla de difícil caracterização pela heterogeneidade dos grupos que a compõem. O que fica evidente é que a FA carece de uma base social organizada e de quadros político-administrativos. Os partidos que a acompanham no governo, maltratados e desacreditados, mas com presença parlamentar e lideranças sociais burocráticas, fornecem-lhe a necessária bolha de oxigênio. Nessa constelação, falta a Democracia Cristiana, que felizmente parece estar em vias de se livrar de seus bacalhaus de direita. Isso decorre da decisão da direção nacional do partido de votar a favor (Apruebo) da nova Constituição

 

 

Claro que se deve que votar pelo Apruebo desta Constituição que saiu desta Convenção Constitucional, por seus aspectos de atualização progressiva, em um mundo onde nada garante que as forças reacionárias não serão capazes de impor importantes retrocessos morais e sociais, e é uma questão de olhar para a situação da União Europeia, onde o estado de guerra permanente foi internalizado para ver que não há final feliz nesta guerra... mas no Chile, e depois do 04 de setembro, caso vença o Apruebo, e se obtenha uma derrota tática da ultradireita neoliberal e conservadora, o que virá? Tudo isso em um contexto onde se estaria se desenhando uma situação de governos progressistas na América Laina e um desenho global com pretensões militar-imperialistas no Ocidente.

 

Outro problema contemporâneo aparece em sua pergunta: o perigo de uma Terceira Guerra Mundial que parece estar a caminho devido ao conflito Rússia-Ucrânia e à prontidão da OTAN para a guerra. Essa ameaça é um fator que qualquer projeto de esquerda deve levar em conta. Já estamos sentindo os efeitos da ameaça de guerra. O Chile é um país dependente de fontes estrangeiras para sua alimentação. A terra arável é dedicada a frutas e madeira para exportação. Leguminosas, trigo, carne e leite, tradicionais em nossa alimentação, agora são importados. O mar – o celeiro do Chile – está sendo saqueado por grupos nacionais e estrangeiros. A maior parte dos lucros do cobre – que é a nossa renda – é tomada por consórcios estrangeiros.

 

Não obstante, a vitória do Apruebo – com todas as insuficiências da nova Constituição – abre um caminho para tornar realidade, mediante luta organizada, os direitos sociais em saúde, educação, salário e moradia, e avançar depois em objetivos maiores. Todos os esforços da dizimada esquerda chilena deveriam se concentrar no objetivo do 04 de setembro. Se não procedermos desta forma, um retrocesso antidemocrático é previsível. Em várias das declarações que pedem pela rejeição da nossa constituição, se sente um ar golpista impossível de contornar. Muito menos em um país com a experiência do Chile nesta matéria.

 

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