A compaixão nos desloca para a margem

Foto: Cathopic

08 Julho 2022

 

“Mas um samaritano que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão” (Lc 10,33).


A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 15º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 10,25-37.


Eis o texto.


O cristão é um pobre que ama e cuida de outros pobres, um ferido que se faz presente junto a outros feridos.


Há um ponto de partida comum: a experiência da pobreza radical de todos que se encontram.


Somos seres de relação; é a nossa essência. Nós nos definimos pela maneira como nos fazemos próximos junto aos outros. Esta relação essencial se manifesta como presença que acolhe, cuida, reforça laços, alimenta a comunhão... Há presenças impositivas, indiferentes, manipuladoras e geradoras de conflitos. E há presenças “cristificadas”, carregadas de compaixão.


Uma das páginas mais belas e provocativas do Evangelho é a parábola do “bom samaritano". Um desconhecido exemplar que nos oferece algumas chaves interessantes de leitura sobre o que significa atender as pessoas que estão em situação de exclusão e dor. Nesta parábola, Jesus destaca uma imagem que deve inspirar uma presença comprometida de todo(a) seguidor(a) seu(sua).


O relato começa com uma situação dramática: um homem “ferido de morte” à beira de um caminho. Várias pessoas passam por ele: um sacerdote, “ponte” entre os homens e Deus, e um levita, dedicado ao serviço do Templo. São incapazes de atendê-lo. Dão meia-volta e se vão.


Por profissão, ambos conheciam bem a Lei de Deus, a cujo serviço estavam. E, nela, está contida a exigência de humanidade no trato com o semelhante.


Nada disto os moveu a vir em socorro do homem semimorto, caído no caminho. O encontro com Deus no templo não os movia à comunhão com o semelhante em extrema necessidade. Daí terem se desviado do homem semimorto, passando pelo outro lado do caminho.


Fugir do sofrimento é, certamente, quase um ato reflexo em todos nós. Mas o samaritano, pelo contrário, se deteve, talvez porque sabia o que era ser desprezado (em seu caso, por ser estrangeiro e herege). A experiência da própria dor desperta nele uma grande sensibilidade, ativa um “radar” especial que detecta a dor alheia e o anima a “inclinar-se”, de maneira quase “natural”, para o mais necessitado. Era um dos seus.


A redação de Lucas reforça insistentemente os verbos “viu”, “sentiu compaixão” e “cuidou dele”.


Foi suficiente ver o ferido para que se reacendesse a sua compaixão, ou seja, se enternecesse diante da triste situação daquele homem ferido, à beira da estrada. Essa comoção primeira é decisiva porque desperta o desejo de atuar. O que se revela realmente pernicioso é a indiferença, a frieza, e não o sentimento de tristeza e empatia que faz emergir uma corrente de afeto para com o sofredor.


O samaritano ficou “afetado” ao contemplar o drama do outro.


A sequência na maneira de agir do samaritano é preciosa e fica perfeitamente refletida na narração através dos verbos: olhar, aproximar-se, enfaixar as feridas, colocar o ferido sobre sua cavalgadura, levar, cuidar, retornar. Uma progressiva implicação que termina alterando seu caminho e sua vida. Seus planos foram mudados. Alguém ferido cruzou seu caminho e já não pode viver à margem desse encontro. Por isso, depois de cumprir com suas obrigações, retorna. Esse homem ferido “permanece” em seu coração.


As vítimas da injustiça estão clamando a nós a “responsabilidade de ter olhos quando outros os perderam” (J. Saramago). Trata-se de educar o olhar que desvela a mentira da realidade e ao mesmo tempo revela suas oportunidades históricas.


Educar a visão é deixar-nos olhar pelo outro, pelo pobre, pela vítima do sistema. A honestidade com a realidade reclama de nós uma alteração de nossa visão, um movimento sutil de nossos olhos que nos conduzem a nos colocar-nos “na mira do outro”.


Mais ainda, o olhar do outro manifesta que “fora dos pobres não há salvação”.


“Há um corpo caído no chão”: todo corpo é lugar de comunicação, de comunhão, é apelo à proximidade e ternura. Dele brota uma voz provocativa que, quando acolhida, nos introduz na trilha da “vida eterna”, do horizonte do Sentido; ao passo que, se rejeitada, como aconteceu ao sacerdote e ao levita, os exclui do espaço da vida.


Mas não basta o olhar; é preciso a “conversão das mãos”.


Foi preciso mais que uma mão. Também o dono da hospedaria, possivelmente um judeu, também foi desafiado a superar o preconceito, acreditar no samaritano e aceitar colaborar com ele.


O samaritano conta com a ajuda do dono da hospedaria. Este se torna parceiro na solidariedade quando aceita fazer o que lhe fora pedido. Ele prolonga os gestos humanizadores do samaritano, manifestando seu compromisso com a vida frente ao ferido que aparece inesperadamente em sua pensão.


Depois de apresentada a situação concreta, através de uma parábola, Jesus relança a questão para o mestre da lei: “qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”


A resposta brota límpida: não é possível escolher o próximo. Este, na perspectiva de Jesus, irrompe no caminho das pessoas, sem aviso prévio, na condição de vítima, do outro sofredor, carente de socorro.


Quem é capaz de romper esquemas e se transformar em servidor, com total generosidade, faz a experiência de “próximo”, no sentido do discipulado cristão.


Por conseguinte, “próximo” tem um sentido bem preciso. Não é qualquer pessoa! É o outro necessitado de ajuda. Por outro lado, só quem tem uma correta imagem de Deus, terá uma correta imagem de próximo. A indiferença do sacerdote e do levita deveu-se a uma falsa concepção de Deus, separado dos seus prediletos. Já o samaritano foi aquele que possuía uma verdadeira, expressa em atitudes de elevado padrão de misericórdia.


O verdadeiro seguimento de Jesus nos faz “virar a cabeça” e dirigir nosso olhar para as “margens”, para as “periferias” da história... comprometendo-nos com os prediletos de Deus. Para Jesus, o centro está nas margens; os marginalizados e excluídos são trazidos por Ele ao centro.


Por isso, Jesus derruba as barreiras de religião e raça. Para Ele, o verdadeiro culto a Deus acontece nas “margens” e não nos templos.


Na perspectiva cristã, a opção pelos pobres não está vinculada a um voluntarismo ascético-moral, mas a um caminho no qual o ser humano se desvela como pessoa guiada pelo princípio compaixão, sensível ao sofrimento dos outros e feliz por compartilhar seu ser e seus bens com os despossuídos. É preciso abrir os olhos para ver, dispor o coração para comover-se e estender as mãos para ajudar.

 

 

Para meditar na oração


Solidariedade é vestir o coração com as roupas do excluído.


- Examinando a sociedade, sentindo de perto os seus problemas e desafios, que esperança você carrega?


- Você tem experiências de voluntariado, de solidariedade e de compromisso com os mais excluídos?


- Como ser “presença samaritana” no cotidiano de sua vida?

 

 

Leia mais: