É possível rezar contra os inimigos?

24 Junho 2022

 

"Na história, infelizmente, muitas vezes aconteceu que os discípulos de Jesus, justamente acreditando que estão realizando a vontade e o desejo do Senhor, na realidade o contradisseram e lhe deram o rosto de um juiz que veio para castigar e destruir os malvados..."

 

O comentário é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 13º Domingo do Tempo Comum, 26 de junho de 2022 (Lucas 9,51-62). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

"Concluo estes breves comentários com uma certa tristeza. Em primeiro lugar, porque nós mesmos não somos capazes dessa radicalidade; por isso, não devemos julgar os outros. Mas tristeza também porque a voz de muitos cristãos, sim, a voz de muitos, até mesmo de pastores da Igreja, já não sabe mais repetir as palavras do Evangelho com o preço que elas exigem. Na angústia devida à falta de vocações para as obras que ela coordena, a tentação é a de embelezar o chamado, como quem faz propaganda para um produto sem indicar os seus custos: isso é mundanismo, não radicalidade evangélica!"

 

Eis o texto.

 

Com o trecho do Evangelho deste domingo, abre-se a segunda parte do Evangelho segundo Lucas, aquela que nos testemunha a viagem de Jesus a Jerusalém, onde ele será preso, condenado e crucificado.

 

A ouverture é solene: “Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém.” Os dias estão prestes a cumprir-se, o evento da sua elevação está prestes a ocorrer na vida de Jesus, e ele o sente dentro de si como uma necessitas acima de tudo humana (o profeta não pode deixar de ser perseguido e morto precisamente em Jerusalém; cf. Lc 13,34-35), na qual está inscrita a necessitas divina: se Jesus obedecer à sua vocação e não se subtrair dos seus inimigos, defendendo-se ou fugindo, então ele será tirado, elevado desta terra para o Reino, para o Pai. Será a hora do seu êxodo (cf. Lc 9,31), e essa partida é chamada por Lucas – que se inspira no relato do fim de Elias (cf. 2 Re 2,8-11) – de elevação, ascensão, arrebatamento (análempsis). É significativo que Lucas use o mesmo termo (para ser exato, o verbo analogambáno) para falar da ascensão de Jesus ao céu (cf. At 1,2.11.22).

 

Jesus, então, “tomou a firme decisão de partir para Jerusalém”, ou seja, diríamos nós, cerrou os dentes, assumiu um rosto severo e determinado, porque, sabendo que ia ao encontro de um fim trágico, também ele teve que derrotar o medo que o assaltava. Jesus reuniu todas as suas forças, tomou coragem do fundo do coração e, lendo-se como o Servo certo de que o Senhor estava com ele, “endureceu o seu rosto como pedra, porque sabia que não se sentiria fracassado” (cf. Is 50,7). A experiência de endurecer o rosto é típica do profeta que às vezes experimenta que é o Senhor que lhe endurece o rosto, para ajudá-lo contra os inimigos; outras vezes é ele mesmo quem deve endurecer o rosto para poder aceitar o destino da perseguição.

 

Profecia a um preço alto, às custas de ter que cerrar os dentes e pregar aquilo que não se queria, agir como não se queria (cf. Ez 3,8-9). Muitas vezes não pensamos no cansaço, no medo e na angústia vividos por Jesus, mas a sua condição de plena humanidade não o preservou desses sentimentos diante daquilo que se perfilava diante dele: rejeição, condenação religiosa e política, morte violenta. Humanamente, Jesus sentiu o desconforto de Elias diante da perseguição de Jezabel (cf. 1Re 19,1-8), sentiu a angústia de Jeremias como cordeiro levado ao matadouro (cf. Jr 11,19), fatigou-se como o Servo ao aceitar dar a vida pelos pecadores (cf. Is 53,12).

 

Nessa situação de reviravolta, Jesus enviou alguns mensageiros à sua frente, discípulos enviados para preparar o seu caminho como novos precursores, mas estes, ao entrarem em um vilarejo de samaritanos, são rejeitados. É a experiência da oposição a Jesus e ao seu Evangelho por parte daqueles samaritanos que ele tanto amava, a ponto de assumir alguns deles como exemplares, na famosa parábola (cf. Lc 10,33-35), e ao ler, em um encontro pessoal, o resultado das suas ações messiânicas (cf. Lc 17,15-16). Os samaritanos, cismáticos e considerados impuros pelos judeus, desprezados e considerados como escória e, portanto, oprimidos, não acolhem o Evangelho, porém, e, desconfiando de Jesus como galileu que se dirige a Jerusalém, o rejeitam.

 

Lucas registra, então, a reação dos dois irmãos discípulos, Tiago e João, “boanerges, isto é, ‘filhos do trovão’” (Mc 3,17), que, pertencendo à comunidade de Jesus, sentem-se ofendidos e se dirigem ao próprio Jesus, confiando no poder que ele lhes confiara: “Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?”, ou: “Queres que façamos como Elias, que invocou o fogo do céu que devorou os seus inimigos” (cf. 1Re 18,36-40; 2Re 1,10)? Era uma ação realizada por um grande profeta como Elias, e, por isso, pode ser repetida devido à presença de Jesus, um profeta maior do que Elias.

 

João e Tiago não devem ser condenados com muita facilidade: compreender que o caminho de Jesus não é o da condenação, mas sim o da misericórdia, não era fácil para eles, judeus observantes e zelosos! Por outro lado, não eram eles os mais próximos de Jesus, intérpretes da sua vontade? Aceitar a sua fraqueza, a possibilidade do fracasso da sua missão, acolher o seu ministério não de condenação, mas de salvação do pecador, não era fácil...

 

Mas Jesus rejeita essa solicitação ou tentação por parte dos dois discípulos, volta-se para aqueles que o seguiam e os repreende, dizendo (segundo alguns manuscritos): “Vocês não sabem de que espírito são! Porque o Filho do homem não veio para perder as vidas dos homens, mas para salvá-las.” Jesus registra a ignorância deles sobre os sentimentos dele e o estilo da sua missão, e denuncia que o coração deles é habitado por um espírito que não está conforme ao dele. Na história, infelizmente, muitas vezes aconteceria que os discípulos de Jesus, justamente acreditando que estão realizando a vontade e o desejo do Senhor, na realidade o contradiriam e lhe dariam o rosto de um juiz que veio para castigar e destruir os malvados...

 

Se há aquelas pessoas que rejeitam Jesus, há outras, porém, que querem segui-lo, tornando-se seus discípulos. Lucas também testemunha essa corrida atrás de Jesus e nos apresenta três fatos ocorridos durante o seu caminho rumo à Cidade Santa. Em primeiro lugar, ele conta sobre um homem que grita a Jesus: “Eu te seguirei para onde quer que fores.” Palavras muito generosas, aparentemente convictas, que contêm uma proposta incondicional. Jesus escuta, discerne que há entusiasmo naquela pessoa, mas sabe que isso não é suficiente para perdurar na vocação. Quem faz essa afirmação não chama Jesus de “Senhor”, não tem fé nele, mas é um daqueles que quer dar a si mesmo uma vocação, não recebê-la: é um autocandidato ao seguimento, com um entusiasmo de militante. Ao contrário do comportamento da pastoral de hoje, que define a vocação como “fácil”, “sem renúncias”, “escolha de tudo”, Jesus proclama com clareza as dificuldades do caminho do discípulo, porque não quer fazer um “recrutamento”, uma “acumulação” de discípulos. Tornar-se discípulo significa aceitar a pobreza, a insegurança, o fardo do irmão ou da irmã para carregar, a submissão recíproca, a insegurança e depois também o fracasso, aquele fim para o qual o Senhor caminha com o rosto endurecido. Sim, pior do que o destino dos animais selvagens! E, assim, aquela autovocação não tem sequer o tempo da prova...

 

Há outro a quem Jesus diz: “Segue-me”, mas ouve como resposta: “Senhor, deixa-me primeiro ir enterrar meu pai.” Pedido legítimo, baseado no mandamento que exige que o pai e a mãe sejam honrados (cf. Ex 20,12; Dt 5,16). No entanto, Jesus pede que, ao segui-lo, interrompa-se o vínculo com a ordem familiar e com a religião da lei, dos deveres: “Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus.” Quando Jesus chama, não se pode preferir um mandamento, por mais santo que seja, ao seu amor: ou ele é escolhido radicalmente ou se continua junto com os mortos! Diante dessas afirmações claras de Jesus, como nós nos posicionamos? Nós as assumimos como uma necessitas, ou as lemos de bom grado como hipérboles maximalistas, ou fazemos como a pastoral dominante hoje, que tem medo de pedir a ruptura com a família por causa de Cristo e continua beatificando a família como se fosse a realidade última e essencial para a vida eterna?

 

Por fim, um terceiro se aproxima de Jesus e promete segui-lo, pedindo-lhe apenas uma extensão de tempo para se despedir da família, das pessoas da sua casa, pai, mãe, irmãos e irmãs. Por outro lado, Eliseu havia feito o mesmo pedido a Elias, depois de ter sido chamado por ele (cf. 1Re 19,20), portanto, tal exigência parece legítima. Porém, Jesus não afirma a exemplaridade dessas palavras de Eliseu nem o seu comportamento, mas proclama fortemente que, se alguém que tem o arado em mãos olha para trás, não apenas cava mal o sulco, mas não sabe se concentrar na meta, mostrando, assim, que não está apto para o reino de Deus.

 

Concluo estes breves comentários com uma certa tristeza. Em primeiro lugar, porque nós mesmos não somos capazes dessa radicalidade; por isso, não devemos julgar os outros. Mas tristeza também porque a voz de muitos cristãos, sim, a voz de muitos, até mesmo de pastores da Igreja, já não sabe mais repetir as palavras do Evangelho com o preço que elas exigem. Na angústia devida à falta de vocações para as obras que ela coordena, a tentação é a de embelezar o chamado, como quem faz propaganda para um produto sem indicar os seus custos: isso é mundanismo, não radicalidade evangélica!

 

Leia mais