Na Amazônia, a zombaria dos criminosos nos desafia

Imagem de buscas por Dom Phillips e Bruno Pereira em instalações em terra da base da EVU (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

24 Junho 2022

 

"O desafio é romper a estrutura que sustenta e acena positivamente com a continuidade da invasão, dos saques, das ameaças e da consumação delas. As denúncias feitas por organizações, como a APIB, o Univaja, o Cimi, e por servidores públicos estaduais e federais não encontram eco e são minimizadas ou arquivadas".

 

O artigo é de Ivânia Vieira, jornalista, professora da Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), doutora em Processos Socioculturais da Amazônia, articulista no jornal A Crítica de Manaus, co-fundadora do Fórum de Mulheres Afroameríndias e Caribenhas e do Movimento de Mulheres Solidárias do Amazonas (Musas).

 

Eis o artigo. 

 

A dor nos remete a situações não normatizadas. Grito, choro, paralisia, tristeza, raiva, silêncio. Em meio a um rio Amazonas de palavras, falta a palavra viva e capaz de traduzir o que sentimos, como nos sentimos.

 

Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips seguidos dos acréscimos de perversidade a que seus corpos foram submetidos são a atualidade da dor da Amazônia. A palavra para expressa-la escapa do vasto vocabulário nacional, pois, os termos “indignação”, “indignados”, “revoltante”, “revoltados”, tão mencionados nas redes sociais parecem desgastados pelo ativismo da repetição compartilhada entre os mesmos. Como se cada um de nós estivéssemos com fita métrica individual beirando o individualismo na medida do tamanho da indignação virtual.

 

A dor da Amazônia é histórica e tem tantos nomes, tanta tristeza, tanto sangue derramado. Bruno, Dom e Maxciel são os mártires desde junho de 2022. Outras e outros vivem sob a ameaça de morte, estão na lista dos que devem morrer. Comunidades inteiras de indígenas, de populações tradicionais e de missionários que lutam em favor dos direitos dos povos indígenas encontram-se acossados pelo avanço da presença dos saqueadores, dos mandantes que detêm controle cada vez maior na Região Amazônica.

 

Qual a palavra incendiadora dos nossos corações? Aquela potente ao ponto de ultrapassar nossos interesses mais particulares e nossas vaidades por likes e seguidores? A Amazônia, feita de gente-bicho, bicho-gente/pedra, água, floresta, terra, vento, chuva/sol, reivindica enfrentar a luta na conjugação mais coletiva e plural; e arrancar os demônios abençoados pela teologia da prosperidade que fazem negócios criminosos em nome da banca da fé.

 

Acomodar os assassinatos deste mês na lista dos mortos e dizer, como fazemos hoje que estão presentes é um gesto respeitoso, emociona. O desafio é romper a estrutura que sustenta e acena positivamente com a continuidade da invasão, dos saques, das ameaças e da consumação delas. As denúncias feitas por organizações, como a APIB, o Univaja, o Cimi, e por servidores públicos estaduais e federais não encontram eco e são minimizadas ou arquivadas.

 

A conduta oficial deve ser questionada, confrontada e submetida a julgamento em âmbito nacional e internacional porque estabelece elos de cumplicidade com os que atuam criminosamente na Amazônia. Quantas mortes ainda serão necessárias para mudar a ordem desse comportamento?

 

Homens e mulheres anônimas, moradores da região do Alto Solimões, mobilizaram-se desde a notícia do desparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips, no dia 5 de junho, para ajudar nas buscas. E assim o fizeram, na coragem e na fé, movidos por compromisso único, solidariedade concreta. São pessoas que sabem o que é viver nessa parte da Amazônia, algumas delas ameaçadas, todas firmes na luta em defesa da vida e dos direitos humanos e socioambientais das populações que habitam esse lugar que também precisam ser cuidadas e protegidas. A dor que carregamos tem nome, cor e endereço, os responsáveis por ela continuam desfilando e zombando de nós, no asfalto e nas plataformas digitais.

 

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