Os “Fratelli (quase) tutti” de Joseph Ratzinger: um texto com várias surpresas. Artigo de Andrea Grillo

25 Junho 2022

 

"O texto de J. Ratzinger, embora derivando do contexto pré-conciliar de quase 65 anos atrás, oferece uma reconstrução do tema onde, ao lado de uma forte tensão apologética, aparece o papel decisivo da assembleia eucarística como lugar de experiência da transição entre fraternidade limitada e fraternidade universal. Tema ausente em “Fratelli tutti”, que nunca utiliza, nem uma vez, nem a palavra eucaristia, nem a palavra sacramento, devido à sua orientação rigorosamente universalista".

 

A opinião e do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 20-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Se Francisco escreveu um texto magistral em 2020, J. Ratzinger, mais de 60 anos antes, havia ministrado um curso sobre “fraternidade cristã”, que virou livro em 1960 (e traduzido para o italiano quando seu autor havia se tornado papa, em 2005).

 

O curso de 1958

 

Como acontece em um bom curso universitário, J. Ratzinger expõe em primeiro lugar o conceito de "irmão" antes e fora do cristianismo. Irmão é, antes de tudo, um fenômeno de "vínculos de sangue" e também um fenômeno mais amplo, que abrange amizade e afinidade eletiva. Por um lado, portanto, existem os vínculos congênitos e, por outro, os vínculos eletivos que implicam o uso do termo “irmão”. Assim, o termo cria necessariamente um viés "interno" e um "externo": cria-se, ao mesmo tempo, uma união entre irmãos e uma oposição entre irmãos e não irmãos, entre amigos e inimigos, entre parentes e estranhos. Essa tensão, porém, não diz respeito apenas à cultura de Platão ou Xenofonte, mas também à tradição judaica, que usa "irmão" com o sentido de "correligionário", enquanto usa "próximo" com o sentido de "compatriota", mesmo que se tenha que reconhecer que a própria distinção entre religião e nação não é em si uma compreensão originária. Não é difícil identificar aqui uma correspondência entre a polis e a tradição judaica, com a identificação do paralelismo entre "povo/bárbaros" e "povo/gentios". Mas a especificidade de Israel é que o Deus de Israel é o Deus de todos os homens: a fraternidade se baseia não apenas na "geração", mas na "eleição".

 

Isso conduz a leitura da fraternidade na base de uma dupla imagem de Deus e do homem: a unidade da criação e a unidade do gênero humano em Adão e Noé, e a eleição de Abraão e a história do povo eleito se cruzam, sem nunca poder-se identificar completamente. A fraternidade universal e a fraternidade "dividida" do resto dos homens (isto é, entre compatriotas e correligionários) são colocadas entre si de forma dialética.

 

Inclusive os desenvolvimentos do helenismo, tanto com a descoberta da fraternidade por iniciação, como da universalidade humana delineada pelo estoicismo, contribuem para criar as premissas que levarão a uma ampliação do conceito de "fraternidade". Com o Iluminismo, porém, chega-se a uma leitura diferente, em que as diferenças entre os homens se devem a “atos positivos”, enquanto a natureza determina os homens como todos iguais e todos irmãos. A própria revolução, segundo Ratzinger, visa restabelecer a primazia da natureza sobre a história [1].

 

Aqui parece desaparecer todo "duplo ethos" (isto é, a diferença entre amigos-inimigos, entre compatriotas e estrangeiros, entre pessoas e estranhos), mas ao mesmo tempo a universalização, por um lado, perde sua raiz histórica e, por outro, entra em profundo conflito com as práticas que determina. A universalização, tornando-se “imediata”, perde suas mediações condicionadas e contingentes, tornando-se assim fraca e indefinida.

 

O mesmo pode ser dito das consequências da leitura iluminista, ou seja, da fraternidade marxista, que aliás fala não de "irmãos", mas de "companheiros". Nela retorna uma variante do "duplo ethos" antitético, com uma força nova e também bastante violenta: a distinção entre capital e proletariado corta o mundo em dois e torna objetivamente impossível pensar em uma ideia universal de fraternidade, que assim cai sob suspeita da ideologia "anticientífica". Obviamente, o marxismo também olha para uma "fraternidade universal", mas apenas "além da história", como ponto de solução de uma dialética histórica inevitavelmente composta de irmãos-companheiros e de inimigos. O que é claro - para Ratzinger - é que o esclarecimento da noção de irmão, em relação à cultura, parece ser uma tarefa específica da teologia cristã, mesmo correndo o risco de confundi-la com uma "mística da iniciação" ou com uma "universal natural ou histórico".

 

Uma teologia neotestamentária da fraternidade

 

No estudo de Ratzinger, o uso do termo "irmão" no NT é plural. O próprio Jesus usa a palavra irmão de três maneiras diferentes:

 

a) Alguns textos (especialmente no Evangelho segundo Mateus) usam o significado hebraico de irmão, como "correligionário";

 

b) Outros textos usam a linguagem rabínica, que identifica os "irmãos" com os discípulos;

 

c) Por fim, há uma série de textos em que um novo sentido de fraternidade aparece de forma surpreendente, por exemplo em Mt 25,31-46 e Lc 10,30-37. O "Juízo Final" e o "Bom Samaritano" são a ilustração mais poderosa e elevada de uma proximidade/fraternidade identificada com a necessidade e a compaixão.

 

Por um lado, está bem estabelecido que todos os necessitados são, além de todas as fronteiras, irmãos de Jesus precisamente por sua necessidade de ajuda. Por outro, é inegável que a futura comunidade de crentes formará, como tal, uma nova comunidade fraterna distinta dos não crentes. Uma pretensão limitada, portanto, coloca-se ao lado de uma universal. A questão de seu relacionamento mútuo permanece sem solução "[2].

 

O desenvolvimento dessa pluralidade de significados em Paulo e João determina a especificação da noção cristã de irmão: tanto em relação à noção judaica quanto em relação à experiência pagã. Isso acontece tanto por meio do repensamento “de cima” – ou seja, da paternidade de Deus em Cristo e no Espírito – quanto “de baixo”, com a doutrina dos “segundo Adão”. A especificação da fraternidade cristã não exclui, porém, o risco de fechamento e de um novo "duplo ethos", ao qual resistirão sempre os textos evangélicos mais universais.

 

A teologia dos Padres também continua o aprofundamento da fraternidade. Mas depois do século III fica claro que a tendência predominante é para um uso apenas "hierárquico" e "ascético" do termo irmão. Esse enxugamento do léxico cristão atravessa a tradição e chega até o século XX.

 

Dessa brilhante leitura histórica, porém orientada pelas questões mais urgentes típicas da década de 1950, Ratzinger deduz finalmente quatro teses "objetivas". Podemos examiná-las em sua drástica urgência, pois constituem uma excelente síntese sistemática, caracterizada por um traço resoluto, nítido, com poucas mediações.

 

Quatro teses

 

Eis a primeira tese, de natureza dogmática:

 

"Ao contrário da irmandade puramente intramundana do marxismo, a irmandade cristã é sobretudo uma irmandade baseada na paternidade comum de Deus Ao contrário do conceito impessoal de Deus pai da Stoá e do conceito vago e inseguro de pai do Iluminismo, a paternidade de Deus é uma paternidade mediada no Filho, que inclui nele a unidade fraterna. Portanto, para que a fraternidade cristã se torne, como tal, uma realidade viva, é preciso antes de tudo um conhecimento vivo da paternidade de Deus e uma permanência viva na unidade com Cristo Jesus, fruto da graça” (59-60).

 

E aqui está a segunda tese, de natureza ética:

 

O fato de se tornar um com Cristo inclui o fato de que os cristãos também se tornam um entre si e, consequentemente, significa um cancelamento das fronteiras naturais e históricas que os separam. Para além das necessárias fronteiras, ligadas ao estado social ou hierárquicos, o ethos de uma fraternidade paritária deve, portanto, reinar” (73).

 

E aqui está a terceira, de caráter eclesial:

 

No entanto, o cristianismo é de saída e essencialmente não apenas o cancelamento de fronteiras, mas por sua vez cria uma nova fronteira, a fronteira entre cristãos e não cristãos. Consequentemente, o cristão é diretamente apenas irmão do cristão e não do não-cristão. O seu dever de amar refere-se sempre, independentemente disso, de forma pura e simples ao necessitado, que dele precisa; no entanto, a construção e a prática de uma fraternidade intracristã viva continua a ser uma exigência que impele (82).

 

Por fim, a quarta tese, que tem como título “o verdadeiro universalismo”:

 

A delimitação da fraternidade cristã limitada não visa a criação de um círculo esotérico com fim em si mesmo, mas ocorre a serviço do todo. A comunidade cristã fraterna não é contra, mas a favor do todo. A fraternidade cristã cumpre seu dever para com o todo, sobretudo com missão, o ágape e o sofrimento (94).

 

As quatro teses estão evidentemente ligadas ao debate político e social do final da década de 1950. Mas revelam claramente duas aquisições fundamentais, típicas de uma "transição problemática" que estava ocorrendo então, às vésperas do Concílio Vaticano II: de um lado a correlação entre fraternidade e paternidade, pelo outro a experiência da filiação "em Cristo" como condição para a anulação das fronteiras naturais e históricas que separam os homens. A afirmação final de um "ethos da fraternidade paritária" reconhece, no entanto, a necessidade de limites ligados tanto à dimensão social quanto à subordinação hierárquica.

 

A fraternidade consiste na dupla experiência da paternidade de Deus e da fraternidade em Cristo, que no Espírito se abre a cada homem e a cada mulher. Isso implica, no entanto, uma tensão insuperável entre "fraternidade que cancela em fronteiras" e "fraternidade interna" que as afirma. Um ethos específico e um ethos fraterno universal permanecem como polos não resolvidos, mesmo que o primeiro deva ser entendido como a radical serviço do segundo. Finalmente nos perguntamos: que papel tem a celebração litúrgica da Eucaristia nesse sistema. Sobre esse ponto, do qual a Fratelli Tutti não fala nada, Ratzinger introduz um aprofundamento de grande importância, que merece ser analisado.

 

Igreja Universal, Igreja Local e Assembleia Eucarística

 

O termo “ecclesia” tem um significado essencial que contém em si três níveis diferentes:

 

a única Igreja é sempre concretamente representada pela comunidade local concreta. A comunidade local realiza-se, por sua vez, como Igreja na assembleia do culto, isto é, sobretudo na celebração da Eucaristia" [3]

 

Isso comporta uma série de implicações importantes para a fraternidade:

 

"Por conseguinte, a fraternidade cristã requer concretamente a fraternidade das comunidades paroquiais individuais. Por sua vez, essa fraternidade terá o seu fundamento decisivo e o seu primeiro ponto de partida na celebração dos mistérios eucarísticos" [4].

 

Isto corresponde ao que a teologia clássica disse da Eucaristia, que não é sobretudo o encontro da alma com Cristo, mas a “concorporatio cum Christo”. Tudo isto significa que a fraternidade cristã encontra fundamento não só no significado interior da Eucaristia, mas também na sua "forma exterior". Disso resulta uma série de conclusões de natureza explicitamente litúrgica, que atestam uma compreensão "original" de J. Ratzinger, que depois de 10 ou 20 anos teria expressado em termos muito diferentes, para não dizer quase antitéticos: ouçamos com atenção este texto:

 

"O reconhecimento de que ekklesía (igreja) e adelphótes (fraternidade) têm o mesmo significado, que a igreja que se realiza na celebração do culto é essencialmente uma comunidade fraterna, também obriga a celebrar concretamente a Eucaristia como culto fraterno no diálogo responsorial e não deixar passivos, diante de um hierarca solitário, um grupo de leigos, por sua vez individualmente imersos de maneira solitária em seu próprio livro de orações ou em alguma 'devoção eucarística'. A Eucaristia deve tornar-se novamente visivelmente o sacramento da fraternidade, para assim poder exprimir plenamente a sua capacidade de formar a comunidade."[5]

 

O centro da argumentação de Ratzinger é a justificação de uma "fronteira", que, no entanto, encontra sua expressão mais dinâmica precisamente na "forma ritual". As características dessa forma são surpreendentes, pois atestam, antes do Vaticano II e da Reforma litúrgica, uma compreensão da liturgia não identificada com o "conteúdo objetivo da oração eucarística", como será típico do pensamento de J. Ratzinger a partir de 1968. Aqui a forma ritual é ainda portadora de uma mediação decisiva em relação à "formação da comunidade" e tem sua plena justificação na dimensão dialógica e na superação da passividade diante do ato hierárquico. A história sucessiva transferira a percepção de Ratzinger mais sobre os riscos do que sobre as oportunidades dessa leitura "comunitária da fraternidade" e "fraterna da Eucaristia". Esse temor já estava presente em 1960, mas de forma subordinada a secundária, como decorre do texto que segue imediatamente ao que acabamos de citar, onde Ratzinger alerta para uma possível degeneração:

 

"Isso não deve conduzir a um dogmatismo social: a missão de cada Cristão, muitas vezes pode consistir precisamente no silêncio, na vida apartada. No entanto, mesmo uma missão desse tipo é uma forma de serviço fraterno e, portanto, não pode abolir a forma fraterna do culto comunitário da Igreja, mas apenas confirmá-la de um modo novo” [6].

 

Aqui, como é evidente, é ainda a dimensão comunitária que tem o primado e que reconduz para si também as formas "apartadas" de vida e celebração cristã. Com alguma surpresa descobrimos que, 47 anos depois desse texto, J. Ratzinger, uma vez que se tornou papa, com o Motu Proprio Summorum Pontificum, tornará possível a qualquer padre celebrar mais uma vez como "hierarca solitário". E, no entanto, justamente sobre essa correção entre celebração e vida Ratzinger estava preocupado, na época, em recuperar uma relação significativa. Assim como para a correlação entre igreja e mundo, entre cristãos e não cristãos. Aqui encontramos novamente a contraposição que Ratzinger frisa entre perspectiva cristã e perspectiva iluminista:

 

“Em primeiro lugar, não parece supérfluo ressaltar mais uma vez que este mundo externo, os não-cristãos (ou os não ainda irmãos), existe. Sobre esse ponto, de fato, tendemos continuamente a pensar de maneira iluminista, e não paulina e cristã, com a consequência de que facilmente consideramos qualquer delimitação um pouco suspeita”.[7]

 

O texto de J. Ratzinger, embora derivando do contexto pré-conciliar de quase 65 anos atrás, oferece uma reconstrução do tema onde, ao lado de uma forte tensão apologética, aparece o papel decisivo da assembleia eucarística como lugar de experiência da transição entre fraternidade limitada e fraternidade universal. Tema ausente em “Fratelli tutti”, que nunca utiliza, nem uma vez, nem a palavra eucaristia, nem a palavra sacramento, devido à sua orientação rigorosamente universalista.

 

Notas:

 

[1] Cf. J. Ratzinger, La fraternità cristiana, Brescia, Queriniana, 2005, 25.

[2] Ratzinger, La fraternità, 42.

[3] Ratzinger, La fraternità, 86.

[4] Ratzinger, La fraternità, 86.

[5] Ratzinger, La fraternità, 87.

[6] Ratzinger, La fraternità, 87

[7] Ratzinger, La fraternità, 89.

 

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