A tese eclesial do “mal comum” em matéria de abuso. Artigo de Andrea Grillo

Fonte: Unsplash

11 Junho 2022

 

A tese do abuso como “mal comum” não deve ser subestimada, pois tem uma pertinência própria. Mas esconder a expectativa diferente que a sociedade tem em relação aos “homens da Igreja” é uma forma pouco feliz de secularização com resultados clericais, uma estratégia que quer levar toda a vantagem do relativismo sociológico, para não perder sequer um privilégio clerical.

 

A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 08-06-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

No debate que foi aberto há algum tempo também na Itália em torno da questão dos abusos, e sobre a qual o Papa Francisco escreveu a memorável Carta ao povo de Deus em agosto de 2018, insinuou-se quase imediatamente uma tese reducionista nas palavras eclesiais, que pode ser condensada nestes poucos pontos essenciais:

 

a) o fenômeno dos abusos de menores não é típico da Igreja, que apresenta apenas uma porcentagem de casos que varia de 2% a 4%. De acordo com essa tese, o fenômeno diria muito mais respeito a outros ambientes, como os familiares, esportivos, escolares, do espetáculo ou do serviço militar, que apresentam percentuais muito mais elevados.

 

b) A insistência nas responsabilidades eclesiais, que seriam proporcionalmente pequenas em relação aos outros âmbitos, mostraria muito bem um preconceito anticlerical e um desejo de revanche contra a Igreja, sem uma justificativa de verdade.

 

c) As vítimas também, se fossem realmente tão importantes, estariam protegidas também nos 96 casos em cada 100 envolvendo outros ambientes abusivos, e não apenas naqueles dois ou quatro casos em cada 100 que afetam diretamente sujeitos eclesiais de responsabilidade.

 

Como essa não é apenas a tese de jornalistas inescrupulosos, ou de sociólogos improvisados, ou polemistas de língua domesticável, mas é uma argumentação que é repetida, de forma pouco meditada, também por homens da Igreja e até por alguns bispos, é bom mostrar claramente todos os seus limites. Tento aqui refutar cada um dos “pontos fortes” do raciocínio proposto:

 

a) Cada agência educativa procura uma proximidade, uma vizinhança, uma confiança e uma possível ingerência do adulto na esfera do menor: seja porque ensina uma conjugação verbal, seja porque ajuda a se desmarcar debaixo da cesta de basquete, seja porque guia a mão em uma passagem difícil no teclado, o “mestre” se aproxima do aluno e se faz próximo dele com o corpo, com a palavra, com a autoridade. Mas nunca age “in persona Christi”. Talvez queira ser um Deus para o aluno, mas nunca age “por Deus” nem “em nome de Deus”. Essa é a primeira diferença decisiva, que é muito impressionante ver esquecida não pelo jornalista ou pelo polemista, mas nas palavras de alguns bispos. Abusar é sempre um fato grave: tanto quando se trata de abuso espiritual ou moral, quanto quando se trata de abuso corporal ou sexual. Mas ainda mais grave é um abuso que tem como pano de fundo ou como pretexto, como desculpa e como margem não a autoridade de um homem, mas a autoridade de Deus. Fazer um discurso de “porcentagens menores” sem falar da “responsabilidade incomparavelmente maior" é miopia humana e irresponsabilidade eclesial. O abuso é sempre um pecado contra a pessoa e contra Deus. Mas, quando feito “em nome de Deus” ou “sob a cobertura de Deus”, é verdadeiramente um escândalo para todos: acima de tudo, deveria sê-lo para os homens da Igreja, pelo menos para aqueles realmente responsáveis.

 

b) É inevitável que, se a primeira refutação for verdadeira, decorra daí uma escassa relevância da “perseguição” que seria levantada contra a Igreja por parte desses “poucos casos”. Esse argumento é ainda mais fraco do que o primeiro, porque deduz um escândalo a partir de uma proporção quantitativa. E observa com escândalo que as pessoas “se incomodam tanto” com um padre, mas “não dizem nada” sobre um treinador de futebol ou um professor de dança. Se é legítimo esperar de todos o comportamento mais correto em relação aos menores, é inevitável que a reação seja diferente em relação a quem não tem nenhum “projeto de salvação” além da disciplina do corpo ou da mente, em comparação com quem se apresenta, necessariamente, como guardião de uma salvação global da pessoa, da sua dignidade e da sua vocação. Também aqui, se anularmos essa diferença estrutural de partida e compararmos simplesmente o ato, na sua figura mais formal e na sua dimensão quantitativa, perderemos a medida do escândalo alheio e a necessidade da própria conversão.

 

c) Em cascata, o terceiro argumento, ainda mais sutil, que questiona a real atenção às vítimas, denunciando o silêncio que recai sobre as vítimas de abusos “não clericais”, também se apresenta como mais uma queda de tom e de nível no debate eclesial. Aqui também, se é verdade que toda pessoa abusada merece a máxima atenção, ela deve ser reconhecida no seu sofrimento e que é preciso reconhecer-lhe uma justa fome de justiça e de ressarcimento, insinuar que a atenção às vítimas de abuso clerical é uma espécie de “montagem”, que esquece o (percentualmente) maior sofrimento das vítimas de abuso não clerical, é mais uma vez fazer uma comparação quantitativa, que não considera a radical diferença entre a autoridade de um zelador, de um professor, de um maestro de coro e a de um presbítero. Como diziam os antigos, “corruptio optimi, pessima”: é muito surpreendente que alguns homens da Igreja, que deveriam lembrar pelo menos algumas frases em latim, sejam tão esquecidos da sabedoria clássica e usem argumentos dignos de jornalistas improvisados ou de sociólogos sem discernimento.

 

A tese do abuso como “mal comum” não deve ser subestimada, pois tem uma pertinência própria, justamente ao denunciar uma chaga social que perpassa tanto as famílias quanto as instituições, as agências educacionais assim como as agências assistenciais. Mas esconder a expectativa diferente que a sociedade tem em relação aos “homens da Igreja”, misturando-os no grande caldeirão das “agências educacionais”, onde sempre há maçãs podres, é uma forma pouco feliz de secularização com resultados clericais, uma estratégia que quer levar toda a vantagem do relativismo sociológico, para não perder sequer um privilégio clerical.

 

Que isso seja dito por um polemista, por um jornalista ou por um sociólogo, eu posso aceitar. Que isso provenha de padres ou bispos, isso me escandaliza profundamente e me pede para não me calar nem diante do escândalo de todo abuso, nem diante do abuso de poder que pretende fazer com que argumentos fracos se tornem fortes, palavras risíveis se tornem sérias, os violentos e seus protetores se tornem vítimas, e as vítimas e seus defensores se tornem violentos.

 

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