A teologia cristã em paradigma pós-teísta e as inspirações místicas de Teilhard de Chardin

O pós-teísmo, segundo o jesuíta Paolo Gamberini, "assumiu mais explicitamente a visão teilhardiana do Cristo cósmico e a compreensão panenteísta de Deus". O tema será debatido na próxima conferência do "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas", na próxima quarta-feira, 15-06-2022, às 10h

Foto: Pixabay

Por: Patricia Fachin | 13 Junho 2022

 

"O que é pós-teísmo?" Esta é a pergunta que o teólogo jesuíta Paolo Gamberini propôs responder no artigo intitulado "O desafio do pós-teísmo", publicado na página eletrônica do Instituto Humanitas Unisinos - IHU no mês de maio. O texto faz parte do debate que está sendo realizado por um grupo de teólogos "chamados 'pós-teístas'", como John Shelby Spong, Roger Lenaers, José María Vigil, Mary Judith Ress, Diarmuid O'Murchu, José Arregi e Santiago Villamayor.

 

O tema está repercutido no "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas", promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, com o objetivo de "analisar, debater e apontar perspectivas a respeito das possibilidades, chances e desafios para apresentar a pessoa de Jesus Cristo, com sua mensagem, de forma que faça sentido hoje".

 

Gamberini é o próximo conferencista do Ciclo e a palestra, intitulada "A Teologia cristã em paradigma pós-teísta", será ministrada virtualmente na próxima quarta-feira, 15-06-2022, às 10h, e transmitida na página do IHU, nas redes sociais e no canal do IHU no YouTube.

 

Paolo Gamberini (Foto: ApertaMente)

 

 

 

Segundo o teólogo e professor da Università La Sapienza, Roma, "uma primeira resposta" para a questão "pode ser a simples constatação de que Deus – como ainda é pensado e vivido pelas religiões institucionais – não é mais crível". A "constatação" é fundamentada no fato de que "a consciência religiosa das novas gerações parece ser mais secularizada, agnóstica e indiferente: parece que já não se sinta mais a necessidade do transcendente. Não estamos apenas além de Deus ou depois de Deus, mas também além da pergunta sobre a existência de um Deus assim (teísta). Estamos na era do pós-teísmo", explica.

 

 

Entre os fatores que contribuem para "a consciência religiosa das novas gerações", destaca-se o fato de que "assistimos cada vez mais a uma separação imparável entre os vários planos da comunicação da fé cristã: o plano litúrgico-devocional do povo de Deus; o plano catequético tradicional dos educadores; o plano de formação intelectual dos líderes (leigos, candidatos ao ministério e padres); por fim, o plano acadêmico de pesquisa (professores e pesquisadores). Esses planos estão atualmente divididos e sem contato entre si. Precisamos de uma linguagem da fé capaz de dialogar com a modernidade (e pós-modernidade), capaz de falar novamente da fé com novas categorias, imagens e paradigmas", disse.

 

De acordo com o jesuíta, o pós-teísmo "não rejeita qualquer transcendência, mas apenas a imagem teísta de um Deus separado do mundo e que, de tempos em tempos, a seu critério e vontade, intervém ora aqui e ora ali". O pós-teísmo, na compreensão dele, "assumiu mais explicitamente a visão teilhardiana do Cristo cósmico e a compreensão panenteísta de Deus".

 

Teilhard de Chardin

 

O jesuíta francês Teilhard de Chardin, que viveu entre 1881 e 1955, assim como muitos místicos em seu próprio tempo, não foi completamente compreendido, mas seus escritos sobre a sua própria relação com Deus a partir da sua vida concreta e de seu trabalho científico dão, como disse o jesuíta Carlos James dos Santos em recente conferência virtual no Centro de Promoção de Agentes de Transformação – Cepat, "razões à esperança". "A espiritualidade mística de Teilhard de Chardin é profundamente uma espiritualidade mística da esperança. Vamos lembrar que o Papa Francisco fala que a esperança se ancora na eternidade e ela tem um rosto e esse rosto é Jesus Cristo. Então, quando falamos de esperança, estamos falando na ancoragem na vida eterna, ou em Deus, ou na Trindade Santa, e quando falamos de Trindade, nós falamos de encarnação. Essa perspectiva encarnatória é que faz com que Teilhard de Chardin, principalmente nos tempos de hoje, se torne muito relevante".

 

 

De acordo com Santos, o pensamento de Teilhard de Chardin perdeu relevância nos 1970 "porque a sua compreensão e visão de mundo integrava muito a perspectiva cósmica e cosmológica", enquanto o espírito do tempo estava focado na "perspectiva da práxis" e na "transformação da realidade". Por isso, naquele cenário, pontua, "a dimensão cristã deixou um pouco de lado essa visão mais holística, sistêmica que Teilhard de Chardin traz". Mas hoje, ressalta, "se pensarmos as encíclicas do Papa Francisco, Laudato Sì' e Fratelli tutti, veremos que ambas estão em perfeita sintonia com a visão de Teilhard de Chardin. (...) Teilhard de Chardin sempre é importante para ampliar nosso pensamento e nos tirar do quadrado, que é a zona de conforto, dimensão mais insuportável da recusa do ser humano de ir além, ir avante. São duas direções que, para Teilhard, são seu encantamento: para o alto e para adiante".

 

 

No texto "Missa sobre o Mundo", redigido em 1923, quando Teilhard de Chardin se encontrava no deserto de Ordos, na China, participando de expedições científicas relativas à sua área de pesquisa acadêmica, paleontologia e geologia, impedido de celebrar a Eucaristia, ao oferecer uma "oferenda" a Deus, ele não só manifestou sua mística e sua compreensão acerca do próprio Deus, como expôs sua própria relação com Ele, oferecendo-se a si próprio na realidade concreta em que estava inserido. Nas primeiras linhas, ele escreve:

 

"Visto que, uma vez mais, Senhor, já não nas florestas do Aisne, mas nas estepes da Ásia, não tenho nem pão, nem vinho, nem altar, elevar-me-ei acima dos símbolos até à pura majestade do real, e oferecer-vos-ei, eu, Vosso sacerdote, no altar da Terra inteira, o trabalho e a dor do Mundo. (...)

 

Cristo glorioso, influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo; Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que o ouro em fusão; Vos cujas mãos aprisionam as estrelas, Vós que sois o primeiro e o último, o vivo, o morto e o ressuscitado: Vós que reunis em vossa unidade todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por Vós que meu ser chamava com um desejo mais vasto do que o universo: Vós sois verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!

 

Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de viver, meu Deus, estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo. Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim, dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha natureza, eu não quero, eu não posso dizer outra coisa que os inúmeros prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria: jamais poderia pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o que nos rodeia!

 

Ao vosso corpo em toda a sua extensão, ao Mundo tornado por vosso poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para renascer, eu me entrego para dele viver e dele morrer, ó Jesus!"

 

Pierre Teilhard de Chardin (Foto: Reprodução)

 

Nas palavras do teólogo inglês Chris McDonnell, em artigo publicado na página eletrônica do IHU no mês passado, "a vida de Pierre Teilhard de Chardin reluz com a mistura do acadêmico com a fé". Ele explica: "Ordenado em 1930 como um padre da Companhia de Jesus, sua vida se estendeu pelo mundo científico e sua crença cristã. Ele foi nomeado à Academia Francesa de Ciências em 1950 por seu trabalho disruptivo em paleontologia enquanto ao mesmo tempo sua pesquisa incorria no desgosto do Vaticano. (...) Durante uma de suas expedições no deserto de Ordos, na China, ele se viu sem meios para celebrar a missa. Em vez disso, escreveu a famosa meditação 'La Messe sur le Monde' ('A Missa sobre o Mundo'), uma declaração cheia de fé de sua crença cristã".

 

 

Ao comentar a obra de Teilhard de Chardin no encontro organizado pela Associação italiana Teilhard de Chardin no Instituto Veritatis Splendor de Bolonha em 2017, o físico e doutor em teologia, François Euvé, comentou que "a obra de Teilhard seduziu muitas gerações de ouvintes e leitores por sua ambição de chegar a uma visão de conjunto da história do mundo e do lugar da humanidade dentro dele. O otimismo que a caracteriza poderia encontrar consonância com o entusiasmo de muitos homens e mulheres da época, firmes defensores da opinião generalizada de que o progresso técnico poderia contribuir para o bem-estar da humanidade". Entretanto, advertiu, ao analisar o pensamento de Teilhard, "deve ser evitado o grave erro de considerá-lo um sistema definitivamente pronto. Em vez de fazer uma construção intelectual, é melhor apreender o dinamismo subjacente que o anima. Teilhard na verdade era, antes de tudo, um pesquisador, consciente de que a pesquisa tem como objetivo alcançar um resultado, mas, acima de tudo, é a mais alta das funções humanas, por ser expressão da participação do homem na criação de um mundo em gênese".

 

Em abril de 2015, por ocasião do 60º aniversário da morte de Pierre Teilhard de Chardin, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU publicou o artigo do pastor evangélico francês Vincens Hubac, que define o jesuíta como um cientista, um visionário e um místico. "Se Pierre Teilhard é um homem da terra, do cosmos, também é um homem de Deus, que desde a infância busca o Absoluto... talvez, no fim, a busca de toda a sua vida", sublinha. Em um excerto de "O meu universo", Teilhard corrobora as palavras de Hubac:

 

"Quanto mais eu posso rastrear nas minhas recordações (de antes da idade de 10 anos), noto em mim a existência de uma paixão claramente dominante: a paixão pelo Absoluto... A necessidade de possuir, em tudo, 'algum Absoluto' era, desde a minha infância, o eixo da minha vida interior. Entre os prazeres daquela idade, eu não era feliz (se bem me lembro) senão em relação com uma alegria fundamental, que consistia geralmente na posse (ou no pensamento) de algum objeto precioso. Ora se tratava de qualquer pedaço de metal, ora de um salto para a outra extremidade, eu me comprazia no pensamento de Deus-Espírito".

 

Segundo o pastor, "o 'fenômeno humano' (título de uma das suas obras fundamentais) ilustra o surgimento de um 'sempre mais' de consciência e de espírito. A antropogênese é o lugar, o cumprimento da evolução. Certamente, o ser humano é um ser inteligente, mais do que as outras espécies animais. Acima de tudo, o ser humano pensa e sabe em um nível jamais igualado: pense que pensa e sabe que sabe. No ser humano, existe a consciência, eis o que é – junto com o surgimento da vida e da inteligência – uma fonte de admiração. O ser humano é mais do que o junco pensante pascaliano perdido no 'gelo infinito' do espaço e do tempo. O ser humano é a própria presença do infinitamente complexo que pensa e é consciente. Ele é espírito, espiritual e sinal visível da noosfera ('esfera do espírito', em grego). A noosfera vem se sobrepor, completar e ultrapassar a biosfera. Camada pensante do ser humano, ela é o lugar e a união dos espíritos pensantes em comunicação uns com os outros e movidos pelo espírito dinamizante de Deus, o Cristo Evoluidor. A noosfera é centrada em Deus e resolutamente voltada para a frente, rumo ao ponto Ômega'".

 

Próximas conferências

 

As próximas conferências previstas para o "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" são as seguintes:

 

"Desafios e oportunidades para as comunidades de fé numa sociedade pós-cristã", 24-06-2022, às 10h, com Fulvio Ferrario, doutor em Teologia e pesquisador nas áreas de História da Teologia (LuteroBarth e Bonhoeffer) e de Teologia Sistemática, a relação entre fé e razão e escatologia. Atualmente, Ferrario leciona na Faculdade de Teologia Valdese, Roma. 

 


Fulvio Ferrario (Foto: Reprodução do YouTube)

  

 

"Crer em Deus e crer em Jesus hoje: para além das crenças", em 01-07-2022, às 10h, com José Arregi Olaizola, doutor em Teologia pelo Instituto Católico de Paris e professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Deusto.

 

 José Arregi Olaizola (Foto: M. Mielniezuk)

 

 

Na página do evento "Ciclo de Estudos: O cristianismo no contexto das transformações socioculturais e religiosas contemporâneas" estão disponíveis as conferências ministradas até o momento. Acesse aqui

 

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