“China moderna”, realmente? Artigo de Francesco Sisci

(Foto: glaborde7 | Pixabay, creative commons)

04 Junho 2022

 

“É impossível pensar que a China – que pode influenciar intencionalmente o mundo, tentando puxar as cordas na política de outros países, ou involuntariamente por seu peso político e econômico global – não permitiria que o mundo espiasse ou visse sua política doméstica. Mas é isso que Pequim está fazendo, censurando fortemente a imprensa estrangeira e o movimento de estrangeiros na China. Isso cria objetivamente um atrito ríspido entre a China e o resto do mundo. Além disso, esse atrito é claramente visível também em outros lugares. Os EUA fornecem a infraestrutura do comércio mundial com seu mercado de ações e seu dólar [4]. Se a China quer desafiar isso e quer ter uma moeda internacional, precisa ter um renminbi totalmente conversível e ter um déficit comercial para exportar sua própria moeda. O sistema financeiro da China está pronto? E o sistema político está ciente dos custos de tudo isso? Caso contrário, mais cedo ou mais tarde, sua produção doméstica será afetada ou permanecerá confinada a ser uma parte importante, mas descartável, de uma complexa cadeia de valor totalmente dominada por outros”, escreve o sinólogo italiano Francesco Sisci, em artigo publicado por Settimana News, 01-06-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

A ascensão do Estado moderno carrega há muito tempo ambiguidades não resolvidas enraizadas nas bases do pensamento político ocidental. Isso também criou opacidades para a transformação do Estado chinês nas vésperas do 20º Congresso do Partido Comunista Chinês. Pequim precisa entender essa situação para lidar com isso.

 

Desde meados do século XIX, houve uma significativa transformação na estrutura e economia dos Estados ocidentais enquanto também ganhava maior controle da economia global [1]. O Estado feudal se tornou “moderno” e liberal, e muitas áreas se tornaram proibidas ou foram monopolizadas pelo Estado.

 

Por exemplo, a violência que era uma vez era também privada – pessoas carregavam armas sem permissão especial ou tinham milícias privadas – se tornou monopólio do Estado.

 

Atividades como a escravidão e o tráfico de drogas, antes perfeitamente legais, foram proibidas; prostituição e jogos se tornavam regulados. O Estado então tomou muitos poderes para proteger a lei e a ordem anteriormente legalmente distribuída ao longo do território, com o pagamento de “paramilitares” dos influentes locais.

 

Mas essa invasão do Estado em heranças feudais ou atividades que antes eram “livre comércio” não eliminou a violência privada ou o tráfico de drogas. Só os tornou ilegais e, portanto, clandestinos, secretos. Então, essas atividades passaram em pequena escala ou organizadas, por serem áreas de negócios, em indústrias ao contrário de roubo e estelionato, que são atividades pontuais.

 

Outro elemento, sociedades ou clubes secretos, e associações ilegais tornaram-se legais e, portanto, sujeitas a regulamentação por serem contrárias aos poderes constituídos. Em alguns casos, no entanto, algumas associações permaneceram ou se tornaram ilegais para praticar atividades econômicas que se tornaram ilegais, como escravidão ou tráfico de drogas ou a cobrança de dinheiro de proteção por “máfias” [2].

 

Eles assumem tarefas, reais ou alegadas, de administrar uma paz local e justiça civil ou criminal no lugar do Estado onde o Estado está ausente ou expulso.

 

Por serem organizações com fins lucrativos e não para fins políticos quando uma indústria ilegal ou semilegal é praticada, elas devem ser secretas e precisam de proteção consciente ou inconsciente por órgãos estatais. Ou seja, proteção do Estado central cobrindo “máfias” para seus próprios fins ou inconscientes porque os funcionários do Estado são corruptos.

 

Isso cria zonas cinzentas de semilegalidade para o Estado, o que leva a ambiguidades para os cidadãos e também a zonas cinzentas dos poderes do Estado, porque as organizações clandestinas com fins lucrativos podem começar a ter suas próprias agendas políticas, alternativas às do Estado.

 

Os Estados ocidentais, advindos dessa situação, decidiram lidar com o crime organizado ad hoc, reconhecendo que o crime, organizado ou não, convive com uma sociedade livre e a sociedade precisa ficar de olho e expurgá-lo. Mas não pode ser erradicado.

 

A confusão se deve a muitas razões históricas e à sucessão de sistemas de diferentes origens. Mas também se deve a debates complexos que vêm desde a antiguidade, e já no século V a.C. se viam diferenças de regimes políticos que podiam se alternar dentro de um mesmo país: democracia (governo da plebe, na verdade), oligarquia, reinos, ditaduras, e muitas coisas no meio.

 

A complexidade e a ambiguidade também se transformam em uma dificuldade em manter a ordem e levam um país como a China, com uma ideia muito linear de Estado, a rejeitar totalmente essa proposta política.

 

Ordem chinesa e modernidade

 

Na antiga tradição chinesa, tudo era altamente regulamentado e não havia debate entre as formas de governo. A sociedade estava dividida entre os cavalheiros e as pessoas comuns, que eram tratadas de forma diferente pelo Estado. Havia “xing” (punições corporais) para os plebeus e, para os aristocratas, havia “li” (regulamentos rituais) de acordo com o Liji do século IV a.C., o Clássico dos Rituais. Mas ambos são fortemente regulamentados.

 

Nas formas de governo, temos apenas um indicador de debate político, se o herdeiro do trono seria filho natural ou filho adotivo, escolhido pelo governante sem pensar em suas origens [3].

 

Havia também diferentes escolas de pensamento sobre se as regras deveriam ser aplicadas com força (legalistas) ou com tato e humanidade (confucionistas). Havia, em todo caso, um acordo de que a regra se baseava em um Mandato do Céu (Tian ming / 天命), que poderia ser alterado se o povo fosse malgovernado.

 

De 1949 até o presente, houve uma enorme transformação na forma como o Estado chinês era administrado. Durante séculos, o aparato estatal da China foi relativamente leve, contando com poderosos líderes de clãs locais que administravam o local com o acordo do oficial imperial. Por outro lado, começando com a República Popular da China, a autoridade central desceu aos níveis mais baixos das aldeias, eliminando os chefes dos clãs.

 

Esta foi uma mudança sem precedentes na China, alcançada por meio de uma reforma maciça da sociedade tradicional, que foi considerada culpada da humilhação da China no século anterior. E, no entanto, não foi a última grande mudança; outras mudanças vieram apenas cerca de 30 anos depois.

 

Com a liberalização econômica, no final da década de 1970, a estrutura profunda e rígida da República Popular da China (RPC) foi minada sem ser adaptada. Houve apenas decadência do antigo poder e penetração de novos poderes sem uma nova estrutura política e legal clara. Novas atividades econômicas cresceram em uma área cinzenta sem uma distinção legal clara entre o que era legal ou ilegal. Para isso, cresceram atividades em outros lugares consideradas legítimas ou que o mundo considerava como mafiosas.

 

Dessa forma, no final da década de 1990, o Estado chinês sentiu que estava sendo minado pelas máfias, que eram nativas ou “transplantadas de Hong Kong e Taiwan". Ainda assim, no início dos anos 2000, a China havia eliminado as máfias. Ainda assim, tantas atividades de proteção e abusos de poder foram de fato “assumidas” diretamente por elementos do Estado, que se tornaram altamente corruptos.

 

A resposta a tudo isso foi tentar erradicar o problema, não como nos países ocidentais que aceitam a existência de crimes que devem ser mantidos sob controle, mas não podem ser eliminados. A mentalidade era semelhante à da fase inicial da RPC, impondo uma importante mutação do sistema estatal, mantendo, no entanto, o mesmo molde ideológico de 1949.

 

Nesse contexto, a concentração de poder do presidente Xi Jinping pode ser historicamente equivalente às reformas de Luís XIV na França no século XVII para combater o poder feudal da aristocracia. Mas após a primeira concentração, o poder deve ser redistribuído de forma diferente porque é simplesmente impossível administrar um país grande e desafiador com um homem.

 

Além disso, enquanto no Ocidente essa lenta mutação ocorreu ao longo de 3 a 4 séculos e foi em uma direção da sociedade feudal para a liberal, embora, com muitos solavancos no caminho, com revoluções fascistas e comunistas nesse meio tempo. Na China foi diferente. A China passou por uma montanha-russa de caprichos colossais ao longo de apenas 70 anos. Eles podem estar bem, mas nenhuma sociedade pode passar por esses altos e baixos sem ser profundamente abalada e magoada.

 

A virada estadunidense

 

Nesse meio tempo, não houve apenas isso. Algo confuso estava acontecendo nos EUA, por décadas o farol da modernização da China.

 

Os EUA foram o primeiro Estado moderno antes da revolução liberal envolver a Europa. Então, sendo a frente do seu tempo, talvez levou ao fato de que os EUA retinham vestígios do passado: disseminação do porte de armas; violência permitida no âmbito privado e não monopólio do Estado; um sistema eleitoral desajeitado; um legado de um sistema de escravidão ainda não totalmente digerido.

 

A abolição da escravidão foi, em termos modernos, uma profunda transformação econômica nos EUA. A emancipação dos escravos significou que trilhões de dólares em valor (na moeda moderna) dos próprios escravizados foram zerados e um sistema de produção inteiro foi desfeito.

 

Dessa forma, trilhões de dólares foram retirados do Sul para o Norte, uma “depredação” da riqueza em nome da liberdade. É claro, isso era o certo, mas isso deixou os ex-escravizados no Sul empobrecidos e sem um futuro claro. Isso foi feito em outros países também, mas os libertos da escravidão foram excluídos do debate político.

 

Por outro lado, nos EUA, logo após a guerra, na década de 1870, os ex-escravistas e seus votos foram readmitidos no debate político nacional. Algumas de suas reivindicações foram aceitas, levando assim à exclusão parcial dos libertos da escravidão da vida política dominante por muitas décadas, apesar de serem formalmente livres e autorizados a votar e serem eleitos. Ou seja, os EUA, desde o final do século XIX, viviam em um sistema feito de muitas regras faladas e não ditas, com diferenças entre os Estados da União e as condições locais.

 

Era diferente do sistema de apartheid sul-africano. Lá, os negros não eram escravos ou propriedades valiosas; eram pessoas que participavam da vida econômica, produzindo valor e pagando impostos, embora não votassem. Dar-lhes um voto não tirou um centavo de valor de ninguém. Além disso, os africanos originais eram a maioria, ao contrário dos EUA, onde os libertos da escravidão eram minoria e, portanto, mais facilmente descartáveis.

 

As dificuldades estadunidenses em lidar com seu passado e seu legado têm uma influência essencial em seu papel e influência no mundo, especialmente em comparação com países europeus, com história semelhante, mas manejo diferente da história da escravidão ou do direito de portar armas. Mas tudo isso acontece às claras, sob o escrutínio atento da imprensa livre nacional e estrangeira.

 

China dentro e fora da ordem internacional

 

A China é globalmente importante. Então a organização do poder na China é uma questão tão global quanto o presidente dos EUA. Mesmo que outros países não votem para eleger o presidente, eles participam ativamente no acompanhamento da campanha e favorecem este ou aquele candidato, ao mesmo tempo em que desempenham um papel na opinião pública americana. Por exemplo, o presidente Joe Biden é apreciado na Europa, enquanto o presidente Donald Trump é odiado e tem seu peso no debate político dos EUA. A relação dos EUA com a Europa, raízes de sua cultura, não é direta e sem problemas. O legado não resolvido da escravidão e seu “direito de portar armas” é uma questão importante e definidora no âmbito doméstico e no relacionamento dos EUA com o resto do mundo e a Europa.

 

É impossível pensar que a China – que pode influenciar intencionalmente o mundo, tentando puxar as cordas na política de outros países, ou involuntariamente por seu peso político e econômico global – não permitiria que o mundo espiasse ou visse sua política doméstica. Mas é isso que Pequim está fazendo, censurando fortemente a imprensa estrangeira e o movimento de estrangeiros na China. Isso cria objetivamente um atrito ríspido entre a China e o resto do mundo.

 

Além disso, esse atrito é claramente visível também em outros lugares. Os EUA fornecem a infraestrutura do comércio mundial com seu mercado de ações e seu dólar [4]. Se a China quer desafiar isso e quer ter uma moeda internacional, precisa ter um renminbi totalmente conversível e ter um déficit comercial para exportar sua própria moeda. O sistema financeiro da China está pronto? E o sistema político está ciente dos custos de tudo isso? Caso contrário, mais cedo ou mais tarde, sua produção doméstica será afetada ou permanecerá confinada a ser uma parte importante, mas descartável, de uma complexa cadeia de valor totalmente dominada por outros.

 

Nisso a China precisa escolher o que quer ser. Em poucas palavras: quer ser uma parte importante do sistema global? Em seguida, precisa aceitar suas regras, o que significa também modificar seu sistema doméstico para atender às exigências estrangeiras. Quer manter suas diferenças em relação ao “sistema estrangeiro”? Então terá que aceitar que será gradualmente marginalizado e excluído pelo “ambiente global”. Isso, no final do dia, é a essência do recente discurso [5] sobre a China do secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken.

 

Blinken não tentou pegar a China de surpresa, ameaçando-a com tempestade e fúria para obter retornos rápidos, como fez o governo anterior de Trump. Em vez disso, ele lançou as bases para um consenso global de uma nova ordem mundial que excluiria a China. É uma estratégia de longo prazo que não busca concessões ou negociações rápidas com a China. Sem surpresas, aqui, apenas “termos contratuais”. Diz: esta é a situação, é pegar ou largar, cabe a você. É mais justo e frio do que no passado. É um novo jogo histórico que Pequim terá que entender completamente; no entanto, ele quer lidar com isso.

 

Aqui, a guerra na Ucrânia com os miseráveis fracassos políticos, militares e econômicos russos e os problemas chineses em andamento devido à covid-19 podem ser uma bênção disfarçada – um aviso saudável a Pequim para dissipar ilusões sobre a situação global e seu caminho para o futuro. O tempo para as terceiras vias se foi.

 

Notas

 

[1] Veja também o livro de John Dickie “The Craft – How the Freemasons Made the Modern World” (2020). 

[2] Agradeço ao Le Monde por ter levantado esta questão tão sensata e delicada. Reportagem, em francês, disponível neste link

[3] Veja mais em: ALLAN, Sarah. Buried Ideas: Legends of Abdication and Ideal Government in Recently Discovered Early Chinese Bamboo-slip Manuscripts. Ed. Suny Press, 2015.

[4] Veja também o artigo de Paul Krugman, “How the West Is Strangling Putin’s Economy”, publicado pelo New York Times, disponível neste link

[5] O discurso de Anthony Blinken, proferido em 26-05-2022, está disponível, em inglês, neste link

 

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