“Uma sociedade que oferece a seus jovens o ideal de se tornarem milionários está condenada à repetição das crises.” Entrevista com Alain Supiot

Foto: Wikimedia Commons

31 Mai 2022

 

"Por trás da propaganda que exalta a suposta liberdade dos 'autoempreendedores', é de fato a estrutura legal da servidão que está ressurgindo com o trabalho em plataformas. No direito feudal, o servo não era um empregado, mas o inquilino da 'posse servil' que lhe era concedida por seu senhor, em troca de pagamento. Essa é exatamente a fórmula que as plataformas buscam impor. Elas querem se beneficiar da atividade dos trabalhadores que gerenciam, controlam e, se necessário, 'desconectam', sem terem de assumir a responsabilidade patronal, especialmente contribuir para o financiamento da Seguridade Social."

 

A opinião é do jurista e professor emérito do Collège de France, Alain Supiot, que publica La justice au travail (A justiça no trabalho), obra na qual coloca em perspectiva histórica essa grande questão e analisa os seus desdobramentos atuais. Apresenta também uma nova edição de Les lettres persanes (Cartas Persas). Em nossas colunas, ele pede a superação da oposição entre justiça distributiva e justiça recognitiva, ou seja, entre o que hoje é chamado de “social” e “sociedade”.

 

A entrevista é de Anna Musso, publicada por L’Humanité, 27-05-2022. A tradução é de André Langer.

 

Alain Supiot ocupou a cadeira “Estado social e mundialização: análise jurídica da solidariedade” no Collège de France. O professor emérito participou, de 2016 a 2018, da Comissão Global sobre o Futuro do Trabalho. Seus trabalhos como jurista abarcam principalmente duas áreas complementares: o direito social e a teoria do direito. Suas pesquisas atuais se concentram nas mudanças do Estado social no contexto da globalização. 

 

Segundo ele, "impulsionado pela fé religiosa em um processo histórico de globalização, o anarcocapitalismo tende a liquidar a diversidade de leis e territórios para submetê-los uniformemente à 'ordem espontânea' de um mercado que se tornou total, supostamente para abolir a solidariedades e as fronteiras nacionais e governar uniformemente o planeta. Para responder às revoltas suscitadas por este processo, está agora em plena marcha um etnocapitalismo, que dirige a ira social aos bodes expiatórios, designados pela sua religião, nacionalidade ou suas origens, e oferece assim um misto de neoliberalismo e de identitarismo".

 

Eis a entrevista.

 

O título do seu livro, La justice au travail, tem, na sua opinião, um duplo sentido: a “distribuição justa do trabalho e de seus frutos” e “a exigência de justiça como força histórica”. Como o senhor articula essas duas dimensões?

 

A justiça tem sido muitas vezes concebida como uma ordem ideal e imutável à qual seria apropriado se conformar. Mas é antes a experiência historicamente mutável da injustiça que é primordial. Foi a miséria da classe trabalhadora engendrada pela ascensão do capitalismo industrial que despertou, no século XIX, a vontade de compreender suas causas e combater sua disseminação. Essa experiência difere daquela que os trabalhadores de uma plataforma ou dos profissionais da saúde sujeitos à gestão por indicadores numéricos podem ter hoje.

 

Em outras palavras, a justiça não é o resultado de uma “ordem espontânea”, de um mecanismo autorregulador de tipo biológico ou econômico; ela é o horizonte de esforços constantemente renovados para reduzir os fatores de injustiça específicos de uma determinada época e de determinadas circunstâncias.

 

A história nos ensina que quanto pior a injustiça nas sociedades, mais cresce a violência. A paz baseia-se, portanto, na justiça social, como proclamou a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Como é que este princípio ainda não é compreendido?

 

As revoltas contra as injustiças podem ser reprimidas ou capturadas por demagogos que dirigem a raiva social contra os bodes expiatórios. É somente quando são animadas por um projeto político coerente que elas podem dar origem a uma sociedade mais justa. Foi o caso, no século XX, com a invenção do Estado social, que permitiu às democracias triunfarem sobre os regimes totalitários.

 

Seu projeto era o da cidadania social, que garantisse a todos a segurança econômica, sem a qual não haveria verdadeira cidadania política. Mas, como indica o preâmbulo da constituição da OIT, “a não adoção por qualquer nação de um regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus próprios territórios”. Em outras palavras, a justiça social deve ser um objetivo compartilhado pelas nações que cooperam para esse fim.

 

 


No entanto, durante quase meio século, a crença numa “ordem espontânea do mercado” tem, pelo contrário, levado a alimentar a concorrência de todos contra todos, tanto a nível internacional, como europeu ou nacional. Estabelecer assim como norma fundamental a busca de cada um dos seus interesses particulares desqualifica o interesse público e a frugalidade, e engendra inevitavelmente a violência. Uma sociedade que oferece a seus jovens o ideal de se tornarem milionários não é social nem ecologicamente sustentável e se condena à repetição das crises.

 

Na França, “a justiça social foi construída sobre três pilares: os serviços públicos, a seguridade social e o direito do trabalho”. Dada a atual desconstrução, o que acontece com a justiça social e a solidariedade em nosso país?



Ao contrário do que pensam seus promotores, essa desconstrução não leva ao advento de uma ordem espontânea do mercado, baseada no ajuste dos cálculos de utilidade entre indivíduos movidos unicamente pela busca dos seus interesses privados. A necessidade de solidariedade não desaparece, mas é transposta para outras bases – não democráticas –, tais como: o pertencimento étnico ou religioso, a cor da pele ou a orientação sexual. A “justiça social” é então invocada em apoio às reivindicações identitárias, cuja inflação é proporcional ao declínio da cidadania econômica e social.



O senhor escreve que “a justiça social não deve ser limitada ao binário ter e ser, mas aberta ao agir”. O que isso quer dizer?



Trata-se justamente de ir além da oposição entre justiça distributiva e justiça recognitiva, ou seja, entre o que hoje se chama de “social” e “sociedade”. A primeira reduz os humanos ao que eles têm – ao seu patrimônio e seu poder de compra; e a segunda, ao que são – à sua identidade religiosa, cromática ou sexual. No entanto, é necessário ter em conta antes de tudo o que fazem, ou seja, a contribuição que dão através do seu trabalho para o bem-estar comum.

 

 

Essa é uma das lições a serem aprendidas com a pandemia da Covid. Ela jogou luz sobre a sorte dos “trabalhadores essenciais”, em particular aqueles que cuidam dos doentes nos hospitais públicos: médicos, enfermeiros, cuidadores, sem esquecer os trabalhadores da manutenção ou dos restaurantes, hoje subcontratados em todos os sentidos do termo. Foi preciso reconhecer que – independentemente das origens, da cor da pele ou da orientação sexual – eles não eram remunerados de acordo com a natureza essencial de suas tarefas (pensemos nas lacunas vertiginosas entre a remuneração de uma enfermeira e a de um bancário de negócios…).



A pandemia também mostrou que o hospital funcionaria muito melhor se fosse organizado com base em sua experiência nessas tarefas, e não por tecnocratas ou empresas de consultoria. De maneira mais geral, não responderemos aos nossos desafios sociais e ecológicos sem permitir que os trabalhadores participem ativamente do que fazem e como fazem.



O senhor diz que “a governança pelos números” produz uma nova forma de desumanização. Em que consiste?



A governança pelos números trata todos os trabalhadores — tanto os dirigentes como os subordinados — como se fossem computadores com dois pés. Devem reagir em tempo real aos sinais que lhes chegam para atingir os objetivos numéricos fixados pelos programas. Eles estão, assim, presos aos círculos especulativos de uma representação numérica do mundo, desconectada de sua experiência concreta das tarefas a serem cumpridas. Muito antes da pandemia, os profissionais dos hospitais se queixavam de ter que “tratar os indicadores e não os doentes”.



Esse afundamento na desumanização resulta em um aumento considerável de doenças mentais no trabalho. Esses riscos de deterioração da saúde mental não poupam as classes dirigentes. Ao perceberem o mundo somente por meio de sua representação numérica, elas perdem o contato com a realidade e aparecem cada vez mais “desconectadas” ou “fora da realidade”.



O trabalho de plataforma, conhecido como “uberização”, leva ao ressurgimento dos laços de fidelidade. Isso é uma espécie de refeudalização das relações humanas?



O ressurgimento dos laços de fidelidade é um fenômeno geral, igualmente evidente entre as empresas de uma mesma cadeia de produção, entre a União Europeia e os Estados-membros ou entre os Estados hegemônicos e seus vassalos. Mas é verdade que a uberização oferece uma manifestação “quimicamente pura” disso.



Por trás da propaganda que exalta a suposta liberdade dos “autoempreendedores”, é de fato a estrutura legal da servidão que está ressurgindo com o trabalho em plataformas. No direito feudal, o servo não era um empregado, mas o inquilino da “posse servil” que lhe era concedida por seu senhor, em troca de pagamento. Essa é exatamente a fórmula que as plataformas buscam impor. Elas querem se beneficiar da atividade dos trabalhadores que gerenciam, controlam e, se necessário, “desconectam”, sem terem de assumir a responsabilidade patronal, especialmente contribuir para o financiamento da Seguridade Social.



Uma característica importante desses novos laços de fidelidade é, de fato, permitir que aqueles que controlam as redes de informações e detêm a realidade do poder de se eximirem de suas responsabilidades sociais e ecológicas.



Como liberar o trabalho baseado nos vínculos de subordinação na força de trabalho e nos vínculos de fidelidade para os trabalhadores “uberizados”?



Em relação a estes últimos, há razões para pensar que o governo francês, como a maioria dos países europeus já fez e como propõe a Comissão de Bruxelas, terá que se alinhar com a jurisprudência, que na maioria das vezes reconhece a relação empregatícia.

 

 

Quanto ao “pacto fordista”, que consistiu em trocar a submissão dos empregados por um mínimo de segurança econômica, foi durante trinta anos alvo de políticas neoliberais ilustradas na França pelas chamadas reformas de El Khomri e Macron. Elas procuraram, especialmente, liberar as empresas dos acordos salariais por ramos e, assim, envolvê-las em uma corrida por salários mais baixos, em vez de competir apenas pela qualidade de seus produtos. Porque é somente a negociação por ramo que possibilita elevar tanto essa qualidade quanto o poder aquisitivo.



O absurdo dessas reformas aparece em um momento em que há consenso sobre a necessidade desse aumento, do mesmo modo que a abolição dos comitês de saúde e de segurança se revelou uma tolice em tempos de Covid. Em vez de correr atrás de quem oferece a menor oferta social, seria mais apropriado, como sua pergunta sugere, projetar reformas que deem aos trabalhadores “a satisfação de dar a medida completa de sua habilidade e conhecimento e contribuir com o melhor para o bem-estar comum”.



Esse objetivo talvez fosse irrealista quando foi proclamado em 1944 na Declaração de Filadélfia, mas está ao nosso alcance hoje, desde que coloquemos nossas novas máquinas inteligentes a serviço do bem-estar e da criatividade dos humanos e de seus ambientes de vida, em vez de se empenhar em fazer o contrário. Menciono neste opúsculo alguns prenúncios desse imenso projeto da liberdade no trabalho e na democracia econômica.



O senhor clama por uma “verdadeira mundialização” para combater a globalização, que você qualifica como um “anarcocapitalismo” que ameaça a paz. Como definir e desencadear uma “mundialização” virtuosa?


Impulsionado pela fé religiosa em um processo histórico de globalização, o anarcocapitalismo tende a liquidar a diversidade de leis e territórios para submetê-los uniformemente à “ordem espontânea” de um mercado que se tornou total, supostamente para abolir a solidariedades e as fronteiras nacionais e governar uniformemente o planeta. Para responder às revoltas suscitadas por este processo, está agora em plena marcha um etnocapitalismo, que dirige a ira social aos bodes expiatórios, designados pela sua religião, nacionalidade ou suas origens, e oferece assim um misto de neoliberalismo e de identitarismo.



Para sair desse duplo impasse, seria necessário distinguir entre globalização e mundialização. O mundo, no sentido etimológico do termo, é o contrário do imundo; é um ambiente tornado habitável pelo trabalho humano e pelo respeito ao seu oikoumêne (a relação dos humanos com o seu ambiente). Uma verdadeira política de mundialização consistiria em inventar novas solidariedades entre as nações que a revolução digital e o aumento dos perigos ecológicos tornam mais interdependentes do que nunca. Ao evitar as armadilhas da globalização e da introversão identitárias, tal política faria da diversidade de línguas e culturas uma força, e não um obstáculo no caminho para uma nova concepção de justiça no trabalho, que associe a igual dignidade dos seres humanos e a preservação e a valorização da diversidade de seus ambientes de vida.



O senhor também publicou e prefaciou uma nova edição de Les lettres persanes, de Montesquieu. Qual é a atualidade desse texto clássico?



Se mantive uma correspondência póstuma com Montesquieu por ocasião do tricentenário das Cartas Persas, é precisamente porque ele é o único filósofo do Iluminismo que entendeu que a compreensão e o respeito pela diversidade das civilizações não podem ser um obstáculo, mas ao contrário, uma condição para a emancipação dos homens pela razão. É também porque escreve numa linguagem admirável, que nos alivia do globish vigente entre os que hoje nos governam.

 

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