Um mundo em mudança e as lealdades políticas de um Vaticano globalizado. Artigo de Massimo Faggioli

Imagens: Google Earth. Animação: IHU

02 Mai 2022

 

 

“A guerra da Ucrânia está expondo os problemas nas relações entre a Cúria Romana, o papado e a disruptiva ordem internacional”, escreve o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, Filadélfia, EUA, em artigo publicado por La Croix International, 28-04-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

A ordem política impacta na Igreja Católica e vice-versa.

Por exemplo, os dois maiores desenvolvimentos teológicos em torno do Concílio Vaticano II (1962-65) – a colegialidade episcopal e a teologia do laicato – eram parte de uma reconciliação entre o catolicismo e a modernidade política, em particular uma reconciliação com a democracia e a burguesia.

Essa reconciliação está agora sob perigo de acabar, ou pelo menos de ser seriamente rompida, em nosso tempo de ódio eclesial e político – e a globalização. Globalização é um fenômeno capitalista, não burguês. Falar sobre a crise da democracia se tornou mais banal.

O crepúsculo de uma ordem política tem impacto sobre a Igreja também – na sua cultura, instituições, e habilidade para organizar-se e ser ativo num mundo em relações.

 

O crepúsculo de uma ordem política e um sistema eclesiástico

 

A guerra na Ucrânia está acelerando o crepúsculo desta ordem, a qual nasceu em 1945. O Vaticano tem que lidar com isso porque há consequência que não são menos importantes que outras reformas eclesiais, incluindo a recente reforma da Cúria Romana do Papa Francisco.

O crepúsculo de uma ordem política corresponde também ao crepúsculo de um sistema eclesial e eclesiástico, algo que é muito mais profundo que apenas o clericalismo.

Como um efeito colateral da crise da democracia, a ideia de reforma no sentido de desinstitucionalização parece mais atrativa à maioria dos ativistas católicos de hoje.

O governo da Igreja está em estado de emergência há muito tempo: mesmo antes do sistema de governo, a própria ideia de governar a Igreja perdeu alcance entre os próprios católicos.

Isso pode ser visto pelo fato de as reformas da Cúria Romana parecerem mais frequentes na história da Igreja. Desde o Vaticano II elas têm sido promulgadas a cada duas ou três décadas (1967, 1988, 2022).

Essas reformas precisam responder a mudanças teológicas (Vaticano II), assim como para a mudança na ordem social, política e econômica (globalização).

 

A mensagem do Vaticano sobre a guerra na Ucrânia

 

Mas isso é mais que apenas um problema teológico. Isso também é um problema de como a teologia e a tradição das instituições interagem com um dado sistema social, burocrático e econômico – a Cúria Romana, as Igrejas locais, os corpos diplomáticos da Santa Sé, o restante da “corte” romana, o círculo mais próximo ao Papa, a imprensa e as redes sociais.

Nós vimos isso recentemente, quando havia uma multiplicidade de vozes e de mensagens naqueles primeiros dois meses de guerra na Ucrânia.

Dentro da Cúria Romana nós vimos o papa e seu círculo midiático de um lado; e, embora muito mais marginal, as competentes vozes para lidar com as dimensões diplomáticas e eclesiásticas do conflito (a Secretaria de Estado, a Congregação para as Igreja Orientais, o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade entre os Cristãos) de outro lado.

Houve várias correções de rota na mensagem do Vaticano sobre a Ucrânia devido à falta de alinhamento institucional de comunicação.

A mais notável foi quando os ucranianos se opuseram à proposta de duas mulheres, uma ucraniana e outra russa, carregarem a cruz juntas durante a cerimônia anual do papa na Sexta-Feira Santa no Coliseu.

Mas os problemas de comunicação nunca são apenas problemas de comunicação. Eles fazem parte de um quadro maior, ou seja, o novo relacionamento entre a Cúria Romana, o papado e uma ordem internacional rompida.

 

O efeito italiano no Vaticano

 

Primeiro problema: até recentemente o Vaticano podia contar com uma presença e autoridade mais fortes dos italianos na Cúria e nas organizações internacionais (especialmente a União Europeia e as Nações Unidas).

Mas a posição da Itália no cenário internacional e a reputação dos italianos na Cúria Romana decaíram nos últimos anos, sem dúvida, devido às falhas de vários italianos.

Isso teve o efeito colateral de libertar o Vaticano e a alta hierarquia eclesiástica da maioria injustificada de italianos em uma Igreja que é global.

O Vaticano abraçou a diversidade e a inclusão à sua maneira particular. Mas isso tem custos em termos da capacidade do Vaticano de entender o mundo de forma unificada.

Para ser claro: ter um papa italiano ou uma Cúria Romana mais italiana não era e não seria garantia de manter o Vaticano mais alerta politicamente.

Mas o contrário também é verdadeiro: uma Cúria Romana mais “global” não significa que o Vaticano esteja necessariamente mais consciente das possíveis consequências de suas palavras e ações, bem como dos pecados de omissão, ao perceber ameaças contra a integridade o Vaticano.

Uma Cúria mais global também significa uma Cúria que poderia ser menos sensível à instabilidade política do Velho Continente.

Nos últimos anos, vários eventos político-religiosos em Roma destacaram uma crescente aliança entre a extrema-direita política na Europa, os círculos ultraconservadores da Igreja Católica e do Vaticano e a Rússia de Putin.

O alarme disparou quando Steve Bannon e amigos tentaram invadir a Igreja Católica e criar centros de influência na Cidade Eterna. Menos atenção foi dedicada ao problema da penetrabilidade do Vaticano por outros tipos de influências, especificamente russas.

 

Russofilia na Itália

 

Não é muito diferente do que aconteceu na Alemanha e no Reino Unido em termos de deixar seus sistemas econômico, financeiro e político se tornarem um centro de projeção do interesse russo no Ocidente.

Para a Santa Sé, não é simplesmente o fato de que, em comparação com o passado, menos italianos ocupam cargos importantes no Vaticano.

É também que tipo de italianos existem, vindos da nova Itália que foi fundamentalmente remodelada nesses quase 30 anos desde a ascensão do bilionário empresário e político Silvio Berlusconi em 1993-1994.

A guerra na Ucrânia revelou uma russofilia profundamente enraizada entre algumas elites culturais e políticas italianas, tanto à esquerda (herança da simpatia pela União Soviética que derrotou Hitler) quanto à direita (uma versão globalizada das “guerras culturais” abraçada por Putin e Patriarca Kirill de Moscou).

Isso é importante porque o Vaticano, o papado e a Cúria Romana estão localizados na Itália e interagem com esse ambiente. Até certo ponto, eles também refletem as fraquezas do establishment político e intelectual italiano em perceber a ameaça vinda da Rússia de Putin.

 

Um novo movimento “não alinhado”

 

Segundo problema: a internacionalização da Cúria Romana é uma aquisição importante em termos de semelhança entre o que a Igreja Católica é hoje globalmente e seu governo central – administrativo, mas também simbólico – no Vaticano.

Houve um tempo em que as lealdades ideológicas e geopolíticas dos cardeais eram mais claramente identificáveis. Isso não é assim hoje.

E não é apenas um problema das culturas religiosas que essas novas elites da Cúria representam (sobre os católicos LGBTQIA+, sobre o meio ambiente, sobre o capitalismo etc.), mas também de alianças e lealdades internacionais em um mundo que agora é mais conflituoso entre os principais atores (EUA e UE, Rússia, China, Índia e Brasil).

Os governos que representam mais da metade da humanidade se recusaram a tomar partido no conflito Ucrânia-Rússia, evitando a contabilidade binária de nós contra eles que caracterizou a maior parte da era pós-Segunda Guerra Mundial.

Muitos países da África, Ásia e América Latina – onde está localizado o “Sul Global” do catolicismo (incluindo dois países-chave para o catolicismo: México e Brasil) – assumiram uma posição independente em relação à guerra na Ucrânia.

Este é um retorno ao movimento “não alinhado” da era da Guerra Fria que não é totalmente diferente da interpretação de Francisco da geopolítica hoje.

Estamos vivendo em um mundo mais complicado do que era durante a Guerra Fria ou os 30 anos do período pós-Guerra Fria.

As antigas lacunas geopolíticas não apenas mudaram, mas, graças a uma elite clerical católica mais diversificada em Roma e conectada a Roma, essas brechas foram redefinidas, especialmente à luz de questões sociais globais, como os direitos LGBT, o papel da religião na política e liberdade religiosa.

Francisco tornou o Colégio dos Cardeais mais global, mas muitos desses clérigos de alto escalão mal se conhecem. A maioria deles nunca se conheceu, pessoalmente, como faculdade.

E isso significa que o próximo conclave será singularmente imprevisível e exposto a novos tipos de interesses e divergências políticas.

 

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