Uma época de medos

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09 Abril 2022

 

"Pandemia e guerra pareciam, até poucos meses atrás, citações a um tempo distante e enterrado. A ciência e a paz, as duas grandes criaturas do Século XX, mostraram-se subitamente frágeis. Como a democracia", escreve Walter Veltroni, político e jornalista e escritor italiano, em artigo publicado por  Corriere della Sera, 07-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Segundo ele,"somos frágeis e assustados. E estes são sempre, na história, os momentos mais perigosos. Aqueles em que vem a tentação de se entregar à proteção segura do homem forte de plantão. Pessoalmente, espero estar errado, não tenho certeza de que tudo o que está acontecendo tenha o efeito de aumentar automaticamente a racionalidade e o altruísmo na opinião pública. Em vez disso, temo que os inevitáveis efeitos sociais desta guerra, enxertados no cenário econômico minado pela pandemia, possam gerar, com a inquietação e o risco de retrocesso nos padrões de vida, um sobressalto de novo populismo, um fascínio por soluções autocráticas".

 

"Os regimes autoritários precisam do medo. As democracias precisam da esperança", assevera o ex-prefeito da cidade de Roma.

 

Eis o artigo.

 

Este milênio foi inaugurado com o anúncio de uma catástrofe: o famigerado bug do milênio que mais tarde se tornou a primeira grande fake news do novo século. Mas o verdadeiro começo desse novo tempo aconteceu em um dia de setembro, quando milhares de pessoas inocentes foram queimadas, asfixiadas, obrigadas a se jogar no vazio por terroristas suicidas incapazes de aceitar que pudesse existir algo ou alguém que tivesse uma religião diferente da deles.

 

E depois, como na sequência de "Laranja Mecânica" em que Malcolm McDowell tem os olhos mantidos abertos artificialmente, passaram diante de nossos olhos imagens de Atocha, do metrô de Londres, da redação do Charlie Hebdo, da praia ensanguentada de Sharm El Sheik, do Bataclan, dos garotos mortos em Utoya, das crianças sequestradas em Beslan, de Aleppo ou Grozny arrasadas, dos massacres de migrantes e dos desastres ambientais. Depois a crise econômica de 2008. E a pandemia, com cinco milhões de mortos, as casas que viraram presídios, o distanciamento social que para muitos adolescentes se tornou uma interrupção da vida. Agora as cidades queimadas nas portas da Europa, os milhões de refugiados, as crianças com seus dados pessoais escritos nas costas, as mulheres estupradas, as valas comuns. Mesmo os rumores assombrosos sobre o uso de fornos de cremação móveis para apagar os horrores cometidos.

 

Sami Modiano, que sobreviveu ao extermínio dos judeus, falou muitas vezes do horror que experimentou, naquele inferno ao qual nada pode ser comparado. Ele me disse em lágrimas uma vez que tinha acontecido "Tudo na frente desses olhos."

 

Como nos tornamos agora? Como toda essa dor nos mudou? E como conseguimos viver, todos os dias, carregando nos ombros esse pesado manto de medos? As gerações nascidas no pós-guerra há muito se gabavam de serem as primeiras na Europa a não ter conhecido a guerra. O século XX foi um século curto, mas cheio de sangue. Derramado nas trincheiras, sob os bombardeios ou combatendo, na Espanha ou em Praga, pela liberdade das ditaduras.

 

No entanto, agora somos como boxeadores bamboleantes, sentimos o risco de cair no tatame. A dobradinha de pandemia e guerra nos mostrou todas as nossas fragilidades e onde menos esperávamos.

 

Pandemia e guerra pareciam, até poucos meses atrás, citações a um tempo distante e enterrado. A ciência e a paz, as duas grandes criaturas do Século XX, mostraram-se subitamente frágeis. Como a democracia.

 

Somos frágeis e assustados. E estes são sempre, na história, os momentos mais perigosos. Aqueles em que vem a tentação de se entregar à proteção segura do homem forte de plantão. Pessoalmente, espero estar errado, não tenho certeza de que tudo o que está acontecendo tenha o efeito de aumentar automaticamente a racionalidade e o altruísmo na opinião pública. Em vez disso, temo que os inevitáveis efeitos sociais desta guerra, enxertados no cenário econômico minado pela pandemia, possam gerar, com a inquietação e o risco de retrocesso nos padrões de vida, um sobressalto de novo populismo, um fascínio por soluções autocráticas.

 

Os regimes autoritários precisam do medo. As democracias precisam da esperança.

 

Apenas uma boa notícia emergiu dessas crises. A maior construção dos últimos séculos, um continente unido no signo da liberdade e da democracia, realizou passos importantes, impulsionado pelas crises. A Europa reagiu bem à pandemia e à guerra. Mas agora deve dar mais um passo: munir-se de uma política externa comum e de defesa e acelerar para a única solução para os riscos para a paz no continente: a construção dos Estados Unidos da Europa. Uma comunidade de centenas de milhões de cidadãos que, sob o signo da democracia, contribua para a construção de uma nova ordem mundial. Afinal, os pais da ideia de Europa a fizeram surgir justamente no confinamento, quando os limites dos estados do continente eram manchados de sangue europeu.

 

Putin pensava em concluir em pouco tempo esta guerra infame, em anular num piscar de olhos aquele povo e aquele Estado do qual nega a própria existência, em encontrar uma Europa dividida e gaguejante.

 

Aquela dos anos passados.

 

Não foi assim. Putin poderá agora aceitar uma solução negociada ou prolongar e exacerbar dramaticamente o conflito. Esta se tornou a seca alternativa do momento. E, se a Europa unida não deixar sozinho quem está corajosamente resistindo a uma invasão, a eterna luta entre autocracia e democracia pode se voltar para a solução almejada por todos os cidadãos que amam, querem e defendem o direito de serem eles mesmos. Porque a liberdade de cada um é a verdadeira aposta que está em jogo, nas valas comuns e prédios destruídos que todos os dias passam diante de nossos olhos.

 

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