Lava-pés: gesto-ensinamento-missão (Quinta-Feira Santa)

Foto: Cathopic

13 Abril 2022

 

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Quinta-Feira Santa, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de  João 13,1-15.

 

Eis o texto.

 

“Compreendeis o que acabo de fazer? Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, pois eu o sou. Portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros”

 

+ Prepare sua oração, ativando uma disposição interna para viver o Mistério do Lava-pés.

 

+ Dê especial atenção às “adições”: lugar, posição corporal, pacificação interior, consciência de estar diante de Deus...

 

+ Faça sua oração preparatória, bem como a composição vendo o lugar, a petição da graça...

 

+ Mobilize seus sentidos para que eles o ajudem a fazer uma contemplação; os “pontos para a oração”, podem preparar o terreno interior para acolher o gesto ousado de Jesus no Lava-pés:

 

No gesto do Lava-pés, Jesus, antes de sua Paixão e com sua original sabedoria, nos oferece uma outra perspectiva de vida. Sem dúvida alguma, Jesus como Mestre era um provocador, no sentido etimológico da palavra, (pro-vocar: chamar para frente, desinstalar), que motivava as pessoas a verem as coisas a partir de uma perspectiva diferente daquela que era habitual.

 

Desconcertante: exatamente assim foi Jesus; Ele foi um homem que viveu e falou de tal maneira que se revelou desconcertante para aqueles que o conheceram e se aproximaram dele. Jesus desconcertou sua família que o considerava louco; desconcertou àqueles que o acusavam de “blasfemo”, de “escandaloso”. Jesus desconcertou todo mundo, até o final de sua vida, que foi o mais desconcertante de tudo.

 

Desconcertou porque assumiu uma postura diferente frente ao contexto social, religioso e político no qual viveu. Jesus não se “encaixou” em nenhum grupo e deixou transparecer sua liberdade frente às leis, às tradições de seu povo, ao templo, aos poderes... Por isso foi incompreendido e rejeitado.

 

Desconcertante também foi o gesto de Jesus realizado na Última Ceia. O gesto do “lava-pés” tornou-se inspirador e provocativo para todo(a) seguidor(a); constitui um dos gestos mais expressivos da missão e da identidade daqueles(as) que exercem algum serviço em sua comunidade.

 

Lava-pés é revelação e ensinamento. É amor e mandamento. É gesto-vida, gesto-horizonte, gesto-luz...

 

É gesto que nos ensina a olhar a vida sob outra perspectiva, pois nos mobiliza a fazer uma contínua travessia dos lugares que controlamos aos lugares onde não somos o centro.

 

Custa-nos muito modificar nossa perspectiva; estamos acostumados a um modo fechado de viver, com umas viseiras que não nos permitem captar a vida em sua plenitude e riqueza; com isso nos instalamos no já adquirido e conhecido e atrofiamos em nós o dinamismo que busca abrir a mente e alargar o coração à realidade que nos cerca.

 

Ver as coisas “por uma outra perspectiva” é muito mais instigante.

 

Um ponto de vista novo, limpo e original é uma grande ajuda para uma vida sadia.

 

O que Jesus pretende, no gesto do “lava-pés”, é nos oferecer um novo ponto de vista, um novo ângulo, um novo ensinamento, fazendo-nos ver a realidade do outro como se fosse pela primeira vez, com um olhar límpido e uma atitude compassiva.

 

Rente ao chão e em contato com os pés dos outros, Jesus realiza uma mudança e uma amplitude de visão que lhe faz perceber tanto as riquezas e dons de cada um, como captar a desnudez, a fragilidade e as limitações das pessoas. E, olhadas a partir daí, Ele deixa transparecer que qualquer pretensão de superiori-dade ou domínio se revela como ridícula e falsa.

 

Nesse deslocamento a um “lugar entre tantos outros”, Jesus viu de perto e por dentro àqueles que eram considerados distantes e excluídos. Porque, para Ele, os maiores e os mais importantes são aqueles que, segundo nossos critérios, não são contados. O lugar em que Jesus decidiu se situar deu origem à “revolução nas relações pessoais”, que tanto nos sobressalta e ao qual tanto nos resistimos. Só o fato da possibilidade desse deslocamento se revela ameaçadora porque nos tira do terreno do conhecido e nos convida a descobrir novos significados que não coincidem com os que consideramos evidentes.

 

Com o gesto do lava-pés e ao deslocar-se para o lugar do servo, Jesus rompe a verticalidade e a relação senhor-escravo, os de cima e os de baixo, os de dentro e os de fora, inaugurando, assim, a nova ordem circular do Reino, onde ninguém é descartável.

 

Ali também Ele nos revela um rosto novo de Deus: o Deus cuidadoso e compassivo, identificado com os últimos e que a partir do último, serve, sustenta, universaliza, iguala, inaugurando, deste modo, a horizon-talidade do Reino e denunciando toda hierarquia e pretensão de poder-dominação.

 

A verdadeira grandeza humana está na identificação com Jesus que se doa, sem por condições nem reservas.

 

Como aconteceu com Pedro, o gesto de Jesus no Lava-pés continua nos escandalizando, porque se há algo que incomoda é deslocar-nos até os últimos e nos colocar no lugar deles.

 

Não é comum deslocar-nos para o lugar do outro, sobretudo o outro que pensa e sente diferente. “Nós pensamos e sentimos a partir de onde estão nossos pés” (Frei Betto).

 

É tão natural perceber, delimitar, defender e fechar-nos no nosso próprio lugar. E isso o fazemos de maneira tão zelosa que nem vemos o que está para além do nosso próprio lugar.

 

São grandes os riscos de vivermos em horizontes tão estreitos. Tal estreiteza aprisiona a solidariedade e dá margem à indiferença, à insensibilidade social, à falta de compromisso com as mudanças que se fazem urgentes. O nosso próprio lugar se torna uma couraça e o sentido do serviço some do horizonte inspirador de tudo aquilo que fazemos.

 

Compreendemos claramente que o que ali estava em jogo, no Lava-pés, não era a humildade, nem sequer uma boa exortação para praticar a caridade. A intenção de Jesus foi muito mais longe, tão longe que Ele mesmo teve de perguntar aos discípulos aturdidos: “Compreendeis o que vos fiz?”

 

Em muitas culturas e tradições espirituais (como no Evangelho), o Mestre lava os pés dos seus discípulos. De um ponto de vista simbólico, “lavar os pés” de alguém é devolver-lhe a capacidade de sentir-se enrai-zado, é recolocá-lo de pé, ativar nele a autonomia para que possa dar direção à sua vida.

 

A palavra “pé”, “podos” em grego, está estreitamente relacionada à palavra “paidos”, usada para significar criança. Assim, um “pedagogo” é um especialista que cuida dos pés do ser humano, desde que cuidar dos pés de alguém significa cuidar da criança que está nele.

 

Eis a missão do(a) seguidor(a) de Jesus: ajudar as pessoas a se colocarem de pé, resgatando-as em sua dignidade para serem capazes de andar pelos seus próprios pés.

 

Não cabe ao cristão carregar as pessoas com seu paternalismo. Antes, sua missão é vê-las maduras, entrando por seus próprios pés na presença de Deus e assumindo o compromisso com a vida.

 

“Depois que lhes lavou os pés, retomou o manto, voltou à mesa e lhes disse: ‘compreendeis o que vos fiz?’” Jesus volta ao lugar em que estava antes, mas volta diferente.

 

Ele repõe o manto, mas não depõe a toalha-avental. Ele assume e visibiliza uma nova realidade que carac-teriza o novo modo de ser e viver, que é próprio dos cristãos. O amor-serviço tem como primeiro símbolo o avental. O avental é o selo de autenticidade que orienta, credita e dignifica a autoridade que se faz serviço. A autoridade cristã nasce do serviço, se sustenta nele, só persevera servindo.

 

“Tal Cristo, tal cristão”: na vivência do serviço evangélico, somos chamados a vestir o “avental de Jesus”.

 

“Vestir o coração” com o avental da simplicidade, da ternura acolhedora, da escuta comprometida, da presença atenciosa, do serviço desinteressado...

 

Jesus pede que a dinâmica iniciada por Ele tenha continuidade, seja progressiva e circular, partindo do meio para a periferia, a fim de atingir a todos.

 

+ Leia saboreando o relato evangélico de Jo 13,1-15.

 

+ Na contemplação do Lava-pés, observe silenciosamente os gestos de Jesus. Todos os gestos possuem uma sacralidade própria, uma reverência, uma paz e calma especial. Não há pressa, não há agressividade, não há nada que possa dar a mínima aparência de algo que fosse obrigado.

 

+ Depois de contemplar com “todo acatamento” os gestos de Jesus, converse com Ele sobre a sua admiração e sobre o seu desejo de prolongar estes mesmos gestos no seu cotidiano.

 

+ Traga à memória as pessoas que você precisa lavar os pés...

 

+ Revele sua gratidão para esta experiência tão íntima e tão intensa.

+ Registre no seu caderno as “moções” mais fortes experimentadas na oração.

 

 

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