A disputa pelo voto evangélico em 2022

Bolsonaro participa do Culto alusivo ao 1º Encontro Fraternal de Líderes Evangélicos | Foto: Alan Santos - PR

05 Abril 2022

 

"Os desenhos políticos estão começando a se consolidar para 2022. Só se espera que esse diálogo de Lula com as Grandes Corporações Evangélicas (GCE) a partir de Paulo Marcelo não seja tão ativo como foi no passado. Por falar de passado, não se espera que o caminho das 'casas' não seja relembrado por setores sociológicos de missão integral como ocorreu no início dos anos 2000", escreve Fábio Py, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RIO e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro - UENF.

 

Eis o artigo.

 

“Tentei ser crente,
mas meu cristo é diferente.
A sombra dele é sem cruz”
O Rappa

 

O artigo tem dois intuitos. O primeiro é traçar uma breve história da relação religião e política no Brasil no século XX (a partir do núcleo evangélico). Já o segundo é destacar as estratégias das três principais candidaturas presidenciais de 2022 com os evangélicos. Para tratar essa estratégia das eleições, primeiro se destacará o detalhe da construção do mundo evangélico brasileiro no século XX, no autoritarismo de Vargas e depois com a Ditadura civil-empresarial-militar brasileira na década de 1980. Nesse recorte, se pontuará que os evangélicos, especialmente as tradições pentecostais, têm as maiores taxas de crescimentos do século XX e XXI, passando assim a ter uma pungente importância política. Portanto, para escrever sobre o panorama político e os evangélicos, primeiro se descreverá sobre a chegada dos “crentes”, sua conotação nacional em Vargas, seu crescimento na Ditadura e, por fim, um esboço político de 2022 - parte do de 2018. Passa-se à organização do Brasil.

 

1. A fundação do Brasil na pia batismal

 

A relação de religião e política, em certa instância, funda o Brasil. Logo, ela é complexa e controversa. Contudo, se faz presente desde a formação brasileira a partir do catolicismo junto ao processo colonial e imperial. Agora, a relação da política com expressões evangélicas é mais recente. Elas começam a ser esboçadas mais intensamente em 1870, quando aportaram no porto do Rio de Janeiro cerca de três mil pessoas vindas da região da Virginia, mediante o acordo com o império. O grupo de sulistas americanos que aportam no Brasil está absolutamente impregnado pelo racismo, pela lógica de trabalho no latifúndio, escravidão e da apologética branca protestante. Logo, politicamente eles serviram as formulações estatais do Brasil pois foram por elas beneficiados na chegada. Agora, não se pode esquecer que o catolicismo tem um lugar de privilégio como parte da história das formulações dos Estados brasileiros consolidando um somatório de “teologias do poder” nacionais.

 

2. Os novos atores políticos, os evangélicos e os governos autoritários do XX

 

Saltando para o século XX, direto para o período Vargas, quando organizou as diferentes formas de representação das religiões no Brasil, nesse contexto se enquadra o nome “evangélico” como campo político brasileiro, ainda que em tamanho diminuto. No período, se consolidou uma representação das organizações católicas e, ao mesmo tempo, se construiu a Confederação Evangélica Brasileira (CEB) que era uma primeira busca de representatividade dos evangélicos junto ao Estado. Por isso, a CEB serviu na construção de pontes das elites varguistas e sua conservação. Ao mesmo tempo, embora tenha ocorrido diálogos com setores do estado logo preocupados com sua conservação, a CEB foi também povoada por nomes de esquerda, uma mistura típica do trabalhismo brasileiro.

 

Sobre a relação de religião e política, outra época retumbante foi na Ditadura civil-empresarial-militar brasileira, que durou de 1964 a 1985. Se o catolicismo ajudou arduamente no golpe militar, à primeira vista pode-se até dizer que os protestantes tradicionais não foram tão explícitos. Mas essa é uma visão apenas de superfície, pois ocorreu um amplo processo de denúncias internas das juventudes batistas, presbiterianas, metodistas e luteranas pelos pastores aos órgãos de repressão. Ou seja, as estruturas das igrejas, lideradas por pastores, ajudavam na coesão social repressiva de sustento do governo militar. Junto a isso, algumas dessas igrejas, como a batista, alavancaram um crescimento a partir de uma renovação junto aos missionários dos americanos, como figuras emblemáticas como o pastor Billy Graham.

 

Um detalhe fundamental que não pode ser esquecido: no meio da década de 1970, quando a violência da Ditadura aumentou, chega ao país uma nova configuração teológica ligada ao pentecostalismo, a chamada teologia da prosperidade. Essa inovação teológica começa a circular no país em 1975, a partir de missionários pentecostais americanos, financiados por empresas e pelos órgãos do estado dos EUA. Assim, essa renovação teológica pró-capital aporta no país mediante um conjunto de acordos do estado militar, o empresariado, e a inteligência imperialista americana para barrar a expansão da teologia da libertação, com suas Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs. Logo, a perspectiva era de diminuir as articulações populares sobre o desígnio de “deus dá graças na terra para cada pessoa (...) permite inclusive o direito de prosperar materialmente”, como defende a teologia da prosperidade.

 

Assim, a teologia da prosperidade foi parte do emblema das elites brasileiras para desarticulação da teologia da libertação e, ao mesmo tempo, ajudou a amplificar a expansão do pentecostalismo – que já era a maior parcela dos evangélicos brasileiros. Assim, se admite que tanto os evangélicos tradicionais como os pentecostais cresceram na Ditadura e participaram em alguma medida do projeto de poder, mesmo que existissem grupos resistentes à lógica da Ditadura. Pode-se dizer, mesmo provisoriamente, que os tradicionais se expandiram nas cidades e os pentecostais junto às periferias.

 

3. A redemocratização e a ascensão da FPE

 

No fim da Ditadura, por conta de alguns discipulados junto ao evangelista Jerry Falwell, de Nilson do Amaral Fanini (batista) e Edir Macedo, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), o setor evangélico brasileiro elege em 1986 seus primeiros políticos. Esse é o germe da chamada bancada evangélica, o pontapé da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Em 1986, foram eleitos 33 deputados e senadores evangélicos, e nas atas das primeiras reuniões já indicaram o compromisso de defesa da “família cristã” e por ela o compromisso com as pautas conservadoras.

 

Com o passar dos anos, com o crescimento dos evangélicos principalmente nas periferias, a bancada evangélica passa a agremiar outros setores religiosos, como os católicos e os espíritas, passando a se designar FPE. Desde a sua formação, a FPE defende uma expansão da nomenclatura de "família cristã” para “família tradicional cristã brasileira”, como consta nos primeiros discursos de seus membros em 2013. Curiosamente, a FPE, que apoiou os governos petistas, a partir de um turbilhão de desentendimentos públicos com o governo de Dilma Rousseff, passou a ser base do governo posterior, o de Michel Temer. Tanto foi que, no ano de 2016, a FPE foi um ativo agente político de mobilização pelo impedimento de Dilma.

 

No meio do impedimento de Dilma, os atores políticos da FPE começam a traçar um projeto político de ter no país um presidente cristão. Nessas discussões, Bolsonaro se batiza no Rio Jordão, retornando ao Brasil para votar o impedimento, se dispondo como “político evangélico” - recém convertido. A partir disso, começa a ter coro a ideia de que Bolsonaro seria o candidato ideal à presidência do país. Portanto, no processo eleitoral de 2018 Bolsonaro conta com apoio da FPE, bloco partidário com grande poder político com mais de 360 lideranças, além das Grandes Corporações Evangélicas (GCE), com lideranças como Silas Malafaia, Edir Macedo, Socrates Oliveira, Josué Valandro Junior, Augustus Nicodemus, Padre Paulo Ricardo etc.

 

4. Novas estratégias eleitorais para 2022 a partir dos evangélicas

 

A partir dessa ampla rede de apoio religioso, Bolsonaro vence as eleições de 2018, utilizando estrategicamente uma série de jargões cristãos, temas e exegeses bíblicas tendo em vista que a população evangélica já chega a 40% da fatia economicamente ativa do país. Mantém, a partir desse jogo político religioso, uma “teologia do poder autoritário”, pela primeira vez no país, de traço evangelical, precisando recorrentemente se afirmar como “presidente genuinamente cristão” para consolidação constante de hegemonia junto às GCE, embora seja verdade que ao longo do processo algumas das suas lideranças tenham abandonado o apoio. Como, por exemplo, parte da Assembleia de Deus e também da própria Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), setor Rio de Janeiro, que não apoiam mais irrestritamente a reeleição de Bolsonaro.

 

Contudo, hoje, o projeto político de Bolsonaro (pelo partido PL) que desponta para reeleição de 2022 é pautado junto ao setor das GCE e com seus grandes evangelistas. Embora tenha ocorrido, ao longo da pandemia de Covid-19, atritos pela forma que Bolsonaro tratou a saúde e a questão da IURD de Angola, as lideranças dessa igreja têm projetos para a reeleição de Bolsonaro. Contudo, como é comum na trajetória política da própria IURD, algumas lideranças já abriram o diálogo com setores do PT do Rio. Afinal, é impossível, desde a redemocratização, que exista um projeto presidencial no país que não tenha apoio da IURD. Assim, pode-se dizer que embora Bolsonaro tenha apoio da maioria das GCE, seu projeto político não seja o único que as GCE mantém o diálogo. Afinal, 2022 não é 2018. Mesmo assim, Silas Malafaia, Marcos Feliciano e Claudio Duarte são lideranças deveras aguerridas do projeto bolsonarista.

 

Já no caminho do trabalhismo brasileiro, se tem a candidatura do Partido Democrático Trabalhista (PDT), de Ciro Gomes. Político experiente, Gomes vem traçando um caminho inverso aos dois candidatos anteriores, não se aproximando dos grandes evangelistas. O responsável por essa interlocução com os setores evangélicos de baixo é o pastor Alexandre Geraldo, pastor pentecostal periférico em Santa Catarina. Geraldo é o Presidente Nacional do Cristãos Trabalhistas, no qual afirma a defesa do estado laico e defende que “Bíblia e a Constituição não entram em conflito”. A partir do trabalho do pastor, Ciro tem se reunido com pastores em todo o país, ouvindo pleitos particulares, e, sobretudo, tem intuito de desmistificar elementos de sua trajetória repleta de notícias falsas. Assim, numa linha diferente de Bolsonaro, que busca o apoio das GCE, o ímpeto do diálogo com os evangélicos de Gomes se dá na vontade de diálogo com as comunidades religiosas de periferia com planos de fornecer “formação para elas”. A avaliação momentânea é que o bolsonarismo se apossou dessas igrejas nos últimos anos, por isso a importância do trabalho de base.

 

Assim, o mote do projeto de Gomes não se faz pela via dos “pastores 'midiáticos, sedentos de poder, mas sim “se quer formar as pessoas e quebrar o preconceito delas com Ciro”. Admite que está preocupado com “a defesa da família", contudo, de diferente sentido da FPE, pois admite tanto o modelo tradicional como os formatos contemporâneos. No decorrer do ano a campanha irá lançar a cartilha "Fundamentos éticos do trabalhismo cristão”, e no Rio de Janeiro quem assumiu o comitê foi Luiz Longuini Neto, pastor presbiteriano, adepto da teologia de missão integral, alguém preocupado com a ação social da igreja e as igrejas de periferia.

 

Agora, quem desponta na frente nas pesquisas eleitorais é o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. O diálogo do partido junto aos setores evangélicos está nas mãos de alguns articuladores, mas principalmente da ex-senadora e prefeita do Rio de Janeiro Benedita da Silva. Ela, que tem origem na Assembleia de Deus, e que hoje frequenta a Igreja Presbiteriana Betânia em Niterói. Ao inverso do que ocorreu na década do mandato presidencial petista, parece que o plano A da estrutura partidária é apostar no diálogo tanto com os evangélicos de esquerda (com figuras como o pastor Ariovaldo Ramos, Nilza Valéria e a pastora Lusmarina) como também com lideranças das periferias brasileiras. Assim, o PT vem apostando tanto na construção de Comitê Evangélicos de Esquerda, ou também de Comitês Populares Regionais ultrapassando as barreiras do país. Sua primeira reunião ocorreu em novembro de 2021, com mais de 700 lideranças evangélicas.

 

A partir desse grande encontro, a pauta é da construção de reuniões constantes para os diálogos com as necessidades das populações periféricas, que são de maioria pentecostal. Esse aparenta ser o plano A da hegemonia petista. Contudo, não se pode deixar de destacar que já se nota uma sequência de reuniões da elite petista do Rio de Janeiro com as lideranças da IURD e da própria Assembleia de Deus da cidade. A figura para construção dessas pontes mais disfarçadas entre o projeto político de Lula e as GCE é o pastor Paulo Marcelo Schallenberger, que é próximo a Marcos Feliciano. Assim, se está indicando que tanto o PT como as lideranças das GCE, como a IURD, podem se ligar novamente. Mesmo não sendo o plano A de ambos os nichos, a figura de Paulo Marcelo deve lembrar para Lula “o caminho da casa” Macedo – e vice-versa.

 

É claro que os desenhos políticos estão começando a se consolidar para 2022. Só se espera que esse diálogo de Lula com as GCE, a partir de Paulo Marcelo, não seja tão ativo como foi no passado. Por falar de passado, não se espera que o caminho das “casas” não seja relembrado por setores sociológicos de missão integral como ocorreu no início dos anos 2000.

 

Referências bibliográficas

 

 

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