“As crises demonstram que o papel de proteção do Estado é essencial”. Entrevista com Jean-Paul Fitoussi

Inauguração do Hospital de Urgência de São Bernardo do Campo em 2020 (Fonte: Flickr)

18 Fevereiro 2022

 

O economista e pensador francês Jean-Paul Fitoussi afirma que as crises das últimas décadas, incluindo a que o mundo ainda atravessa por causa da pandemia de coronavírus, evidenciaram que todas as sociedades precisam de “proteção” e que o papel do Estado é “essencial” na construção desses para-raios de defesa e auxílio, em especial dos setores mais desprotegidos.

 

Em uma entrevista exclusiva para a Télam, Fitoussi também analisa as negociações da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e argumenta que a política de sobretaxas do organismo “não só é punitiva, como também é equivocada porque é impossível que obtenha sucesso”. “Ninguém se beneficiaria em afundar a Argentina no caos”, ressalta.

 

Fitoussi também critica a chamada teoria do derrame - “é um fato falso”, sentencia sem rodeios -, oferece as chaves sobre o empobrecimento da linguagem como processo disciplinador, conforme descreve em seu último livro Cómo nos hablan. La neolengua en nuestra sociedade [EDUNTREF], e se arrisca a um debate sobre a ecologia para além da habitual zona de conforto que facilitam os chavões.

 

“O aumento do gasto em proteção é o que impediu que a Covid tenha consequências catastróficas. O auge dos partidos extremistas no mundo demonstra que a democracia já está em perigo. E a necessidade de proteção mostra que o Estado e o keynesianismo voltaram”, argumenta em diálogo com essa agência, por videoconferência entre Paris e Buenos Aires.

 

Economista e sociólogo, Fitoussi é professor no Instituto de Estudos Políticos de Paris desde 1982.

 

A desigualdade, as complexidades do vínculo democracia-desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental são alguns dos grandes temas que formam a espinha dorsal de sua extensa obra como pesquisador que, entre 1989 e 2010, presidiu o Observatório Francês de Conjunturas Econômicas (OFCE), reconhecido instituto dedicado à pesquisa.

 

Autor de inúmeros livros, ensaios e artigos, Fitoussi participou como especialista na Comissão de Assuntos Monetários e Econômicos do Parlamento Europeu, entre os anos 2000 e 2009, e integrou, junto com Joseph Stiglitz e Amartya Sen - com quem dividiu diferentes momentos de sua vida profissional - a Comissão sobre a Mensuração do Desempenho Econômico e o Progresso Social, que buscou dar conta de indicadores alternativos ao Produto Interno Bruto para medir resultados econômicos e progresso social.

 

O caso argentino está longe de ser algo estranho para ele. “Inquieta-me que o anseio de reduzir a dívida com os organismos internacionais provoque a perda do capital humano, o empobrecimento da Nação”, destacou, por exemplo, em meados de 2020, durante um encontro organizado pela Universidade Nacional de Três de Fevereiro (UNTREF), instituição pela qual, além da Universidade de Buenos Aires (UBA), é Doutor Honoris Causa.

 

Dois anos depois, analisando os dilemas da desigualdade desnudados pela pós-pandemia, Fitoussi é categórico ao avaliar os indicadores de bem-estar: “A desigualdade extrema é sintoma de regressão social, não de progresso. A taxa de crescimento é uma média. Uma taxa de crescimento alta só importa quando beneficia a grande maioria da população”.

 

A entrevista é de Bernarda Llorente, publicada por Télam, 15-02-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Em muitos fóruns internacionais, a Argentina reivindicou a revisão da política de sobretaxas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e inclusive conseguiu o apoio recente do G20. Qual é a sua avaliação a respeito dessa diretriz do organismo internacional?

 

A política de sobretaxas do FMI não só é punitiva, como também é equivocada porque é impossível que obtenha sucesso. Não é possível aumentar os pagamentos dos devedores com multas em forma de sobretaxas, quando vão mal. É uma política pró-cíclica: quando o país vai mal economicamente, paga mais do que quando vai bem. É uma receita que provavelmente acabe levando o país à falência (e então não pagará a dívida) em detrimento dos credores, mas em benefício do FMI, que fica com as sobretaxas.

 

Todos os atores econômicos perdem, menos os rentistas (e as nações). Mas as perdas econômicas são altas, especialmente para o país em recessão. O caso da Grécia é um exemplo do quanto um endividamento excessivo pode custar para a economia e a sociedade: várias vezes a quantidade da dívida pública que é preciso pagar.

 

Em termos gerais, como você observa a negociação que está sendo efetivada por um novo acordo pela dívida?

 

O acordo com o FMI deve ser renegociado não apelas pelas sobretaxas, mas porque as condições impostas pelo FMI, em 2018, não foram adequadas. O próprio FMI reconheceu. Nas entrelinhas, compreendemos que o FMI teve algumas considerações políticas. Da forma como está não é possível pagar a dívida e ninguém se beneficiaria em afundar a Argentina no caos.

 

 

O FMI progrediu em alguns aspectos, a partir dos anos 2000, mas o Consenso de Washington não está morto. As doutrinas têm vida longa. Os programas de ajuste sempre pedem austeridade e reformas estruturais, e sempre apelam à “coragem” da população.

 

Nessa renegociação, parece que – dessa vez – a Argentina está em uma posição de, no mínimo, superioridade moral. A maioria dos economistas a apoiam, o G20 também apoia a Argentina. O principal problema parece ser a diferença entre as avaliações dos credores. Mas eu espero que os credores tenham percebido que correm o risco de perder tudo, caso tentem ganhar muito, segundo o modelo predador-presa.



A pandemia de coronavírus demonstrou os efeitos negativos da desarticulação do Estado de bem-estar. É possível reconstruí-lo. Sobre quais bases?

 

Não há dúvidas de que podemos fazer isso. Por que quando éramos mais pobres tínhamos um sistema muito melhor do que o que temos, quando somos mais ricos? Dirão que os déficits dos sistemas de proteção social continuam crescendo e que os países não podem se permitir continuar financiando-os. O que nos leva à pergunta anterior.

 

O PIB é muito mais alto hoje do que quando estabelecemos esses sistemas. Não é tanto um problema de financiamento, mas uma questão de doutrina. Logicamente, nossa conversão ao liberalismo nos impele a reduzir o papel do Estado. Por último, a maior parte dos gastos são financiados com impostos sobre os salários. Mas a participação dos salários na receita nacional diminuiu por trinta anos, ao mesmo tempo que o desemprego aumentou.

 

 

Não só temos a oportunidade de reconstruir estes sistemas, como não temos outra opção. As sucessivas crises das últimas décadas demonstram que os cidadãos precisam de proteção, que o papel do Estado é essencial. Se essa proteção não lhes fosse dada, se veriam tentados a mudar de regime político. Isso explica a deterioração quase universal dos sistemas de saúde, a redução relativa das aposentadorias e do seguro-desemprego.

 

Basta destacar que o aumento do gasto em proteção é o que impediu que a Covid tenha consequências catastróficas. O auge dos partidos extremistas no mundo demonstra que a democracia já está em perigo. E a necessidade de proteção mostra que o Estado e o keynesianismo voltaram.

 

Em um mundo marcado pela extrema desigualdade, você destaca as diferenças importantes entre crescimento do PIB e progresso social, questionando também a “teoria do derrame”. Quais são esses indicadores de “bem-estar” que deveríamos medir e impulsionar?

 

A desigualdade extrema é sintoma de regressão social, não de progresso. A taxa de crescimento é uma média. Uma taxa de crescimento alta só importa quando beneficia a grande maioria da população. Caso contrário, seria muito melhor para o descanso social ter, digamos, uma taxa de crescimento menor, mas que beneficia a todos. 1% por 1.000 é muito melhor do que 10% por 100. A taxa média de crescimento é a mesma, mas não o clima social e político.

 

 

O “derrame” é um fato falso, caso contrário a redistribuição não teria passado dos pobres para os ricos, mas o oposto. A desigualdade obscena qualificaria o processo mais como derrame para cima! Não posso resumir em poucas palavras o que foi um programa de pesquisa de 10 anos e que ainda não acabou.

 

Contudo, podemos citar alguns exemplos de indicadores de bem-estar. Entre os determinantes do bem-estar estão a educação, a saúde, o emprego decente, a segurança econômica e a desigualdade. Se medirmos estes indicadores, podemos considerar os diferentes fenômenos que afetam o desenho da política econômica.

 

Por exemplo, uma política que diminua a segurança econômica ou deteriore o sistema de saúde não deveria ser aplicada. Pode ajudar a diminuir o déficit orçamentário de aproximadamente em 0,5%, mas pode diminuir muito mais o bem-estar. É porque não temos nenhuma medida para este último que não o levamos em consideração.

 

Uma das consequências da desigualdade é o processo migratório do Sul ao Norte. Como você avalia que o crescente racismo na sociedade europeia pode ser processado?

 

Não é a primeira vez que a Europa enfrenta o racismo. O que aprendemos é que o racismo deve ser fortemente combatido. Isto não só é possível, mas necessário. Há três fatores que podem desempenhar um papel muito importante. O primeiro é uma lei contra o racismo e a discriminação. A lei deveria impor condenações e sanções. O segundo é a educação e, em particular, o ensino da cultura. E o terceiro é a resolução dos problemas dos habitantes do país.

 

Se a população padece uma alta taxa de desemprego, um importante grau de precariedade, um alto nível de insegurança, irá se opor à chegada de novos imigrantes. O déficit do sistema de proteção também desempenhará um papel. Se as pessoas estão convencidas de que o gasto social aumenta com o número de imigrantes, também vão se opor à sua chegada. Isto é falso, os imigrantes contribuem para o financiamento do sistema de proteção.

 

Como vê o futuro das democracias europeias?

 

Na Europa, falamos em déficit democrático, sem dizer exatamente a que nos referimos. Esse silêncio é consequência de um estratagema da Newspeak (Novilíngua), que conduz a uma autocensura generalizada: “se você critica a Europa, é antieuropeu”. Então, você é automaticamente excluído do círculo das elites, com consequências negativas para sua carreira. O resultado é uma censura generalizada que, obviamente, não pode se sair bem com a democracia.

 

 

Mais importantes ainda são as falhas na construção da Europa. A Europa é uma união de estados federados, sem um estado federal! A soberania não é nacional, nem federal, o que torna a Europa um curioso objeto constitucional. Esta ausência de soberania tem consequências consideráveis para a vida do povo.

 

Não é exagero dizer que na Europa os cidadãos têm direito a mudar de governo, mas não de políticas. Daí a impressão de que as políticas são sempre as mesmas, seja qual for a cor política dos governos. Portanto, o mal-estar na democracia é considerável: um sistema robusto de autocensura e a impossibilidade de mudar as políticas! A única solução é fazer da Europa uma Federação ou então voltar aos Estados nacionais com um sistema confederado.

 

Você fala em ecologia política. Poderia aprofundar o significado e o alcance desse conceito?

 

A ecologia é o lugar dos discursos, mais do que das ações: bons sentimentos e blá, blá, blá generalizado. Além disso, a tecnocracia ocupa um lugar determinante, já que o campo é considerado técnico. No entanto, a maioria das medidas que os governos tentaram implementar, como o imposto sobre o carbono, encontraram uma violenta revolta popular e foram abandonadas. Este foi o caso, em particular, da França com o movimento dos coletes amarelos.

 

 

É que a ecologia não é técnica, mas política. É um bem de luxo que as categorias menos ricas não podem se permitir. O orçamento de combustível de um lar pobre é uma porcentagem muito alta de sua renda. O orçamento de combustível de um lar rico é uma porcentagem insignificante.

 

Mas, sobretudo, a ecologia implica investir no futuro, e podemos exigir que aqueles que não enxergam o seu próprio futuro invistam nele? Já estão em um estado de insegurança econômica considerável. Como poderiam fazer isso? A ecologia é política porque força a democracia a se preocupar com a sociedade e a redistribuição, caso almeje implementar seus grandiosos planos.

 

Você costuma dizer que é preciso se apegar a alguma esperança para continuar vivendo. Qual é a sua?

 

O presente é um momento evanescente entre o passado e o futuro. Ninguém pode viver este momento se não tiver segurança sobre o futuro, pois sabe que essa segurança determina sua sobrevivência. Além disso, a natureza humana é tal que não pode renunciar ao progresso econômico e social. O destino dos filhos e os netos tem que ser melhor do que o dos pais e os avós.

 

 

Sem a esperança de um futuro melhor para os que não possuem capital, é difícil experimentar o bem-estar. Essa esperança é justamente o que define a sustentabilidade. Uma situação é sustentável se cada geração transmite à geração seguinte um capital no sentido mais amplo do termo, que a permita experimentar um nível de bem-estar ao menos igual ao que ela mesma experimentou. Pessoalmente, como já deve ter percebido, minha esperança é que meus filhos e netos tenham uma vida melhor do que a que tive.

 

“A linguagem ‘politicamente correta’ está a caminho de colonizar toda a linguagem”

 

“A manipulação da linguagem – seja fazendo cair em desuso ou então modificando seu significado através de simplificações extremas – indica um processo de pauperização que acaba diluindo a substância e a trama do debate democrático e o valor de conceitos chaves”. Essa hipótese articula o último livro do economista e sociólogo francês Jean-Paul Fitoussi: Cómo nos hablan. La neolengua en nuestra sociedad.

 

A obra – publicada na França após o primeiro ano da pandemia de coronavírus – constitui uma cartografia das novas regras da linguagem que, como naquela Novilíngua (Newspeak) imaginada por George Orwell, em seu clássico 1984, subordinam a opinião pública a um debate muitas vezes restrito e vazio de conteúdo.

 

“A nova direita, ou melhor, os partidários das doutrinas liberais, tornaram-se mestres na arte de transformar as palavras em slogans, passando da informação à propaganda. Neste processo, as palavras perdem muito de seu significado. Esta é a dinâmica do empobrecimento, marca registrada da Newspeak, arrisca Fitoussi, em entrevista exclusiva à agência Télam.

 

Para Fitoussi, o processo é preciso e quantificável: “Não apenas as palavras estão diminuindo em número, mas seu significado está se reduzindo, limitando duplamente nossa capacidade de pensar”. E alerta: “A esquerda e o progressismo perderam propriedade sobre os conceitos de liberdade, democracia, igualdade. A linguagem politicamente correta está a caminho de colonizar toda a linguagem”.

 

A Novilíngua é uma nova linguagem que, empobrecida ou alterada, esvazia de substância o debate democrático e mina o pensamento. É o mal destes tempos que ele descreve em seu último livro. O pensamento é controlado pela linguagem? É um fenômeno reversível ou duradouro?

 

No livro de George Orwell 1984, a Newspeak ou Novilíngua é a linguagem que o Grande Irmão cria para substituir a linguística muito rica e limitar o pensamento. Uma forma de alcançar tal objetivo é empobrecer a própria linguagem reduzindo o dicionário.

 

 

O estratagema é claro: se faltam palavras para dizer algo, não é possível dizer e, além disso, nem sequer é possível pensar. (Joseph ) Goebbels, o grande comunicador, poderia ter servido de modelo a Orwell. Em essência, disse: “Não quero que pensem como eu; quero empobrecer a linguagem de tal forma que não possam pensar a não ser como eu”.

 

A linguagem está controlando o pensamento porque habilita o pensamento. Suprimir uma palavra ou utilizar uma palavra errada nos priva de um conceito que possa captar bem nossos pensamentos e nossas experiências. Os conceitos, por sua vez, impulsionam a política. O conceito errado pode ter um impacto profundamente negativa na vida das pessoas. No princípio era o verbo, diz o Evangelho segundo São João.

 

É reversível essa evolução? Pode ser que sim, mas será longa e dolorosa. A linguagem politicamente correta está a caminho de colonizar toda a linguagem. Notem como foi fácil suprimir do dicionário Newspeak todas as palavras associadas à teoria keynesiana.

 

A “nova” direita não só imprime ideias como slogans, mas também se apropria e distorce termos do progressismo, tais como “mudança”, “liberdade”, “democracia” e “igualdade”, entre outros. O que aconteceu para que a esquerda e o progressismo perdessem a “titularidade” e significado desses conceitos? A que se deve o fenômeno?

 

A “novadireita, ou melhor, os partidários das doutrinas liberais, tornaram-se mestres na arte de transformar palavras em slogans, passando assim da informação à propaganda. Nesse processo, as palavras perderam muito de seu significado. Essa é a dinâmica do empobrecimento, marca registrada da Novilíngua: não apenas as palavras estão diminuindo em número, mas seu significado está se restringindo, limitando duplamente a nossa capacidade de pensar.

 

 

A esquerda e o progressismo perderam “propriedade” sobre esses conceitos – liberdade, democracia, igualdade, etc. – porque dirigiam as mesmas políticas da direita, acreditando que a economia de mercado pura era a mais eficiente. Pela mesma razão, também anunciaram a morte de Keynes.

 

De fato, a Novilíngua se tornou progressivamente a linguagem da esquerda. Mas isso não deveria nos surpreender: o objetivo da “Newspeak” é limitar o pensamento até que convirja para um “pensée unique” (pensamento único).

 

Você descreve outras palavras que a crise financeira de 2008 desenterrou de modo efêmero: keynesianismo, demanda, política de expansão monetária, “orçamentária”, para depois voltar a torná-las tabu ou Novilíngua. No atual cenário, em que pandemia e pós-pandemia se entrelaçam, esses conceitos para imaginar um mundo diferente deveriam ser retomados?

 

Obviamente, deveriam, pois isso permitiria um dicionário mais rico e uma pluralidade de doutrinas e teorias que dariam a oportunidade ao legislador de escolher políticas melhores. Mas, então, por que essa mudança não aconteceu, após a crise financeira?

 

Na Europa, os governos correm para voltar ao mundo de antes, inclusive elaboraram novas regras para alcançar políticas fiscais mais austeras (Pacto Fiscal). Tudo aconteceu como se o cérebro, lavado pela nova linguagem, não os permitisse enxergar uma política diferente.

 

Outra hipótese é que perderam a tecnologia das políticas fiscais ativas, razão pela qual não lhes resta outro remédio a não ser continuar com a política que a Novilíngua classificou em primeiro lugar e que eles sabem como operar.

 

Um processo semelhante pode caracterizar o mundo da pós-pandemia e já está aumentando a preocupação com a importância da dívida, mas não com a condição do sistema de saúde!

 

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