Como Newman, mas em diálogo com a modernidade. Artigo de Riccardo Larini

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16 Dezembro 2021

 

Relendo a “Apologia” de Newman durante os meses de verão do ano passado, admirei mais uma vez a profundidade e a honestidade intelectual daquele homem. Em certo ponto, porém, ele parece ter alcançado a certeza e quase deixa de buscar. Mas não acho que o caminho do mundo nos permita parar em seu atracadouro. Precisamos da sua mesma seriedade, mas de resultados diferentes, mais problemáticos, em alguns aspectos contrários aos dele.

 

O comentário é de Riccardo Larini, teólogo e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos. O artigo foi publicado em Riprendere Altrimenti, 09-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Há dois mil anos, um judeu marginal – um galileu que havia vislumbrado e anunciado a irrupção de um misterioso senhorio de Deus, acabando não só por colher pouco sucesso na vida, mas até por conhecer uma morte muito terrível, como um rejeitado por Deus e pelos homens – nunca deixou de interrogar povos e culturas de todos os cantos da terra.

 

A partir da sua figura, foram construídas verdadeiras catedrais, tanto físicas quanto de pensamento. A sua mensagem, sobretudo na reinterpretação de alguns dos seus discípulos que saíram vitoriosos nos primeiros séculos da nova era por ele inaugurada, deu origem até a civilizações inteiras definidas precisamente como “cristãs”.

 

De certa forma, seria possível interpretar essa progressiva conquista do espaço público e privado pela “nova” religião como um caminho, não desprovido de ambiguidade, de sacralização do mundo.

 

Como ocorre de uma forma um pouco inexorável em todas as religiões, porém, também no cristianismo a força inspiradora da origem nunca foi suficiente para manter unidos aqueles que se referiam ao seu fundador, Yeshua de Nazaré.

 

De fato, se olharmos com honestidade para o caminho da Igreja, desde os seus primórdios, certamente se pode dizer que foi um percurso caracterizado por divisões quase inexoráveis e contínuas, apesar das tentativas irênicas ainda do primeiro historiador do cristianismo, o evangelista Lucas, ou de quem acrescentou um capítulo final ao Evangelho de João, para inserir a comunidade que o havia inspirado a um caminho de comunhão com a Igreja encabeçada pelos descendentes espirituais do apóstolo Pedro.

 

A incapacidade da “cristandade”, no sentido de um mundo cujas instituições fundamentais eram permeadas pelos valores e pelas doutrinas cristãs, de permanecer unida certamente é uma das raízes da era moderna, embora provavelmente não a única. As guerras religiosas que surgiram no cristianismo no fim da Idade Média também levaram à exigência de buscar em outro lugar a unidade da sociedade e da política.

 

Raízes da “secularização”

 

A raiz do termo “secularização” está precisamente aí, significando a inversão de tendência em relação à progressiva sacralização do mundo dos primeiros 15 séculos cristãos, por meio da passagem de bens e territórios da Igreja a proprietários civis, à qual se seguirá a busca de princípios dependentes da razão, e não da religião, para governar a sociedade.

 

Com a época da razão, teve início uma ênfase da autonomia dos indivíduos na escolha de princípios, valores e orientações, que pôs gravemente em crise todas as religiões. Isso devido não tanto a uma suposta irracionalidade da experiência religiosa – totalmente a ser provada –, mas sim à tendência das crenças tradicionais de proporem estruturas humanas de mediação entre a fonte da experiência religiosa e as consciências dos fiéis individuais. Em outras palavras, devido à tendência das estruturas de poder religiosas à heteronomia, ao direcionamento “a partir de fora” da consciência humana, em contraste com a descoberta pela razão moderna do desejo fundamental e irrenunciável de autonomia de todo ser humano.

 

Toda a era moderna foi, portanto, palco do encontro/confronto entre fé e razão, entre religião e racionalidade, segundo dinâmicas que cruzaram e dividiram não só grupos inteiros de pessoas, mas também o próprio íntimo dos fiéis, que foram estimulados a novas sínteses, ainda hoje muito distantes de destinos estáveis e compartilhados.

 

O ataque desferido pelo Iluminismo à fé cristã provocou reações de vários tipos nos últimos dois séculos e meio. O século XIX, por exemplo, viu o surgimento de uma tentativa, de certo modo, grandiosa de reação por parte de alguns intelectuais cristãos às críticas radicais dirigidas a eles pelos mestres iluministas, conduzida por meio da utilização de uma das armas cruciais cunhadas pela modernidade: o método histórico-crítico.

 

Em Oxford, um grupo de intelectuais crentes de absoluto valor, incluindo Edward Pusey e John Keble, se dedicou a um estudo aprofundado das fontes antigas do cristianismo em busca de critérios capazes de fazê-lo sobreviver à crítica moderna. Um dos expoentes do chamado “movimento de Oxford”, o então jovem padre anglicano John Henry Newman (que mais tarde se converteria ao catolicismo), descreveu seu itinerário de pesquisa intelectual e espiritual em um livro intitulado “Apologia pro vita sua”.

 

Depois de anos de estudo e pesquisa, Newman descobriu que a afirmação feita muitos séculos antes por Santo Agostinho nas suas lutas contra os dissidentes donatistas, “Securus judicat orbis terrarum” (o mundo julga de modo seguro), era o critério último para julgar a verdade e a confiabilidade de qualquer ensinamento de natureza religiosa. Não a razão, portanto, mas o juízo certo e unânime da Igreja (antiga), era o fundamento de tudo, com o corolário de que tal juízo, pela vontade de Deus, está e sempre permanecerá firme e presente em todas as épocas na Igreja apostólica.

 

Apesar da ênfase do próprio Newman no “primado da consciência” em alguns de seus escritos publicados na época do Concílio Vaticano I, na realidade ele representa uma tentativa muito culta e refinada de remover da esfera da razão algumas mediações humanas, colocando-as em um ambiente intocável e, por isso mesmo, sagrado. Não por acaso, Newman figuraria entre os defensores do dogma da infalibilidade papal (embora apenas sobre as questões de fé).

 

Fé e razão

 

Toda a história do magistério católico na era moderna é, de certa forma, uma tentativa de compaginar fé e razão, salvaguardando o máximo possível os ensinamentos tradicionais do cristianismo (muitas vezes distinguindo com dificuldade entre a tradição evangélica e as tradições subsequentes e secundárias), mas com eles também (e acima de tudo, eu ficaria tentado a dizer) a autoridade da Igreja e a sua estrutura até certo ponto “sacral”.

 

O próprio Vaticano II, de fato, embora inaugurando importantes trajetórias de abertura à razão e à cultura da era moderna, acabará reiterando na Lumen gentium (a constituição dogmática sobre a Igreja) a estrutura hierárquica da Igreja e a sacralidade dos seus ministros, os quais, no Código de Direito Canônico promulgado em 1983 no rastro dos pronunciamentos conciliares, serão os únicos aos quais será reconhecido um pleno poder não apenas de “santificação”, mas também de ensinamento e de governo na Igreja.

 

No entanto, a pergunta que eu me faço pessoalmente há décadas é esta: o caminho percorrido por Newman no Vaticano II, passando pelas afirmações nada casuais sobre o primado petrino e a infalibilidade papal da constituição Pastor aeternus do Vaticano I, é uma resposta verdadeiramente credível para o desafio da modernidade e para a força dificilmente negável da secularização? É a única resposta possível?

 

Contemporaneamente com os desenvolvimentos que acabo de narrar da teologia católica na era moderna, sucederam-se em todas as Igrejas e também no mundo acadêmico secular uma série de ondas daquela que foi definida como pesquisa sobre o Jesus histórico. Como se sabe, os resultados essenciais de todos os estudos históricos dedicados ao Nazareno foram relativamente escassos e, em muitos aspectos, insuficientes para fundar por si próprios uma teologia ou uma cristologia (e antropologia) profunda.

 

No entanto, as pesquisas sobre Jesus continuam ocorrendo, assim como todo o mundo da arte, da literatura e da cultura continua fascinado por aquele homem que viveu há dois milênios. Por quê?

 

Assim Albert Schweitzer conclui a sua imensa panorâmica sobre a primeira onda de estudos históricos sobre Jesus (a tradução que proponho é bastante livre, e estou ciente disso):

 

“Nenhuma confissão cristã sabe expressar a essência de Jesus. Ele vem até nós como um desconhecido sem nome, assim como se aproximou na margem do lago àqueles homens que não sabiam quem ele era. Ele profere a mesma frase: ‘Segue-me!’ e nos coloca diante das tarefas que ele deve resolver na nossa época. Ele fala com autoridade. E se revelará a quem o escuta, sejam sábios ou pouco sábios. Ele se revelará na paz, na ação, nas lutas e nos sofrimentos que eles viverão em comunhão com ele. E eles vão experimentar quem ele é, assim como se conhece um segredo inefável.”

 

Certamente não sou o único que alimenta uma enorme admiração por Schweitzer e por tudo o que ele fez na sua vida, um exemplo como poucos de seguimento de Yeshua de Nazaré e do seu evangelho.

 

Porém, gostaria de sublinhar algumas coisas que tornam particularmente preciosas as palavras recém-citadas, ajudando-nos ao mesmo tempo a captar as razões que sustentam o seu testemunho.

 

O Nazareno e os “diversamente cristãos”

 

Para ser aquilo que foi, Schweitzer não precisou de mandatos oficiais de ninguém, nem de doutrinas a serem acolhidas em uma caixa fechada ou a serem defendida com os dentes cerrados. Além disso, ele nunca mostrou quaisquer sinais de desprezo em relação a alguma instituição ou Igreja. Ele simplesmente conjugou dois elementos essenciais: uma busca constante, com todos os meios humanos, do rosto daquele que ele decidiu seguir desde criança, e a plena assunção de responsabilidade em relação àquilo que a sua consciência lhe ditava na vida após o encontro com o Nazareno.

 

O itinerário que ele traçou é semelhante ao de quem eu gosto de definir como “diversamente cristãos”, de Ernesto Buonaiuti a Maria di Campello e Evelyn Underhill, de Ernesto Balducci a Giovanni Vannucci, até figuras muito diferentes entre si dos nossos dias, como Enzo Bianchi, Vito Manciso e Rowan Williams: pessoas que não se contentaram com aquilo que receberam das suas Igrejas ou comunidades de origem, mas quiserem ir além, rumo à origem última da sua experiência de fé, para si mesmos e para os outros, em busca de qualquer vestígio do humano e do divino nas dobras da história e da vida cotidiana.

 

Relendo a “Apologia” de Newman durante os meses de verão do ano passado, admirei mais uma vez a profundidade e a honestidade intelectual daquele homem. Em certo ponto, porém, ele parece ter alcançado a certeza e quase deixa de buscar. Mas não acho que o caminho do mundo nos permita parar em seu atracadouro. Precisamos da sua mesma seriedade, mas de resultados diferentes, mais problemáticos, em alguns aspectos contrários aos dele.

 

O mundo moderno continuará combatendo qualquer sacralização voltada a tirar algo do juízo do diálogo e da razão, e mais ainda do juízo da consciência individual. Mas não acho que seja intrinsecamente hostil aos valores vividos e anunciados por Jesus há 20 séculos. Pelo contrário, ele continua profundamente intrigado com o Nazareno, assim como quase todas as culturas do globo em todos os tempos.

 

Como dizia Bergson, porém, se a religião privilegiar apenas o seu próprio componente estático – regras, doutrinas e sistemas de governo da vida e da sociedade –, ela será sempre hostilizada pelo componente dinâmico do impulso vital humano: aquele que rompe constantemente as barreiras e que, suscitando caminhos também coletivos, tende sobretudo a responder às exigências fundamentais de desenvolvimento espiritual dos indivíduos.

 

O “ele vem até nós” de Schweitzer é e continua sendo o convite fundamental: a buscar Deus e o ser humano, o seu encontro misterioso em Jesus Cristo, sem nenhum medo de “errar”. Porque, se há uma certeza no anúncio cristão, é o fato de que Deus que nos amou enquanto estávamos longe dele e não tem nenhuma intenção de nos abandonar.

 

Enfim, só assim será possível realizar uma sacralização do mundo aberta a todos, não excludente, capaz de transformar tudo, por ser capaz de permitir o crescimento e o desenvolvimento de cada pessoa. Uma sacralização dinâmica, uma verdadeira “encarnação de toda a matéria”, como Pierre Teilhard de Chardin havia intuído de maneira genial.

 

Porque aquele senhor que viveu há dois mil anos em Nazaré transformou de uma vez por todas a nossa concepção da religião, derrubando todas as barreiras entre o sagrado e o profano, eliminando todas as castas e todas as separações, e dando início a uma temporada de esperança para todos e todas, sem excluir ninguém.

 

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