Ataque aos Jesuítas

Ruínas de São Miguel Arcanajo, no Brasil | Foto: Rafael C. Beltrame / Wikimedia Commons

11 Dezembro 2021

 

"As Reduções, ou seja, as missões que os Jesuítas organizaram na América Latina para converter e “civilizar” a população indígena dos Guarani, foram experiências extraordinárias. Tudo aconteceu ao longo de 150 anos, entre o início do século XVII e a segunda metade do século seguinte. As Reduções se estenderam por um vasto território localizado entre os atuais Estados do Paraguai, Argentina e Brasil", escreve Paolo Mieli, escritor italiano, em artigo publicado por Corriere della Sera, 07-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini

 

Eis o artigo 

 

As Reduções, ou seja, as missões que os Jesuítas organizaram na América Latina para converter e “civilizar” a população indígena dos Guarani, foram experiências extraordinárias. Tudo aconteceu ao longo de 150 anos, entre o início do século XVII e a segunda metade do século seguinte. As Reduções se estenderam por um vasto território localizado entre os atuais Estados do Paraguai, Argentina e Brasil. Foram, na controversa história das colonizações, algo insólito em que a missão de cunho espiritual e de forte traço comunal prevaleceu sobre tudo o mais. Os jesuítas, em meados do século XVIII, foram depois acusados de terem recortado aquele território para exercer sobre ele "uma jurisdição independente e desprovida de controles", a fim de "acumular enormes riquezas em benefício exclusivo da Companhia".

 

Mas a situação não foi essa. Em 1767 os jesuítas foram expulsos e aquela experiência única na história chegou ao fim. Gianpaolo Romanato agora a reconstitui em um livro fascinante, Le Riduzioni gesuite del Paraguay. Missione, politica, conflitti. (As reduções jesuítas do Paraguai. Missão, política, conflitos, em tradução livre) publicado pela Morcelliana.

 

Reprodução da capa de Le Riduzioni gesuite del Paraguay. Missione, politica, conflitti.  

 

Romanato parte de alguns dados já acertados. Nas Américas "conquistadas" pelos europeus, as missões eram o único lugar onde os "índios" progrediam em vez de regredir. Em outros lugares foram marginalizados, no máximo relegados a papéis servis: "Somente nas Reduções puderam se desenvolver, se tornar (relativamente) autônomos, se autogerir, tornando-se artesãos, operários, mercadores, soldados, músicos, agricultores, criadores, administradores". A única via proibida para eles era a do sacerdócio ("o que", observa Romanato, "sem dúvida levanta algumas questões"). Mas, fora essa dúvida legítima, tudo o mais foi, para a época, algo excepcional.

 

A primeira descrição orgânica dessas missões foi publicada em Veneza em 1743 pelo mais famoso historiador italiano da época, Ludovico Antonio Muratori (1672-1750). O livro de Muratori, O cristianismo feliz nas Missões dos Padres da Companhia de Jesus no Paraguai (Sellerio), baseava-se em algumas cartas de padres inacianos que atuavam no Paraguai, bem como no relato do Jesuíta Gaetano Cattaneo, que deixou Cádiz em dezembro de 1728 e chegou um ano depois, em dezembro de 1729, em Yapeyú (hoje na província argentina de Corrientes). Textos "dignos de fé", claro, mas que datam de mais de dez anos antes de Muratori começar sua própria obra. “Parece-me”, escreveu Muratori, “que apenas a cristandade do Paraguai desfruta de privilégios singulares, que sobre ela chovem todas as bênçãos de Deus”. Contudo, assinala Romanato, Muratori "ele carecia de notícias frescas, que lhe teriam dado informações de sinal totalmente diferente". Na época, na realidade, as missões, em vez de serem abençoadas por Deus, “encontravam-se em graves dificuldades e perto da derrota”. Por quê?

 

Os portugueses haviam fundado em 1680 a Colônia de Sacramento no Rio da Prata, em frente a Buenos Aires. O forte, escreve Romanato, "exerceu pressão constante sobre os espanhóis, com uma ação de desgaste militar e comercial que forçou os governantes coloniais hispânicos a repetidas intervenções armadas para desalojar os rivais". Intervenções em que forma engajadas tropas guaranis. Indígenas que, já há tempo, eram usados como mão de obra para os empreendimentos de urbanização. Em rivalidade com os portugueses, as autoridades espanholas empenharam os guaranis com frequência cada vez maior, nas operações militares e nas obras públicas como, por exemplo, a construção de Montevidéu. Nos 50 anos de 1680 a 1730, calcula Romanato, “foram mais de quinze intervenções, com contingentes inclusive pesados, de quatro mil homens, que tinham que se deslocar para muito longe”. Em vários casos, as viagens mantiveram os nativos por mais de um ano longe de sua terra de origem e dos assentamentos jesuítas. Durante essas operações, os guaranis "entraram em contato com pessoas estranhas e sofreram influências que inevitavelmente afrouxaram a ordem moral sobre a qual se fundava a vida disciplinada das missões". A isso se acrescentaram fugas e deserções.

 

Para "alargar o fosso em torno das missões" foi depois empregado um grande contingente armado guarani (talvez 12 mil homens, milhares dos quais morreram em combate) em apoio aos regulares espanhóis para reprimir a perigosa revolta "comunera", que eclodiu em Assunção e nos centros paraguaios envolvidos nesse tipo de motins durante a década de 1724-1735. Tal rebelião - "na qual", segundo Romanato, "é possível identificar uma antecipação do independentismo paraguaio" - era inspirada no mundo dos colonos crioulos intolerantes às excessivas proteções concedidas pelo governo aos indígenas e determinados a fazer valer seus direitos sobre a terra, sobre a mão de obra indígena, sobre as vias de comunicação”. E fazê-lo "adotando formas avançadas de autogoverno local". Assim, a “revolta comunera” é hoje considerada pelos historiadores “um dos episódios fundadores da identidade do país”.

 

 

Assim, na opinião da Espanha, o fato de os indígenas terem sido chamados a defender as razões de Madrid abriu “um abismo entre as missões e o ambiente local”. Um abismo que nas décadas seguintes não foi mais possível recuperar. Além disso, “os aspectos antecipatórios da futura revolta contra os espanhóis e anticolonial fizeram com que a escolha legalista e leal às missões parecesse uma opção reacionária e anti-histórica”. O isolamento dos jesuítas e dos guaranis - justamente em função de sua lealdade à Espanha - tornou-se assim total. E as Reduções "permaneceram presas apenas à cobertura governamental".

 

O geral dos jesuítas Franz Retz (no cargo de 1730 a 1750) percebeu tudo isso. Como fica claro por algumas de suas cartas "cheias de pessimismo" sobre aquelas ilhas de aparente "cristianismo feliz". A realidade era muito menos feliz do que poderia parecer, como se deduz de uma carta de Retz em que ele menciona os "inúmeros males que assolam estas missões" (15 de julho de 1737). Mas o geral Retz teve o cuidado de não denunciar publicamente o que estava acontecendo nas Reduções. Aliás, Romanato justifica-o, “dizer para o exterior apenas o positivo e calar sobre o negativo havia sempre sido um hábito dos jesuítas, desde o início da sua história”. Na vida da Ordem “sempre houve coisas secretas que deviam ser dosadas, caladas para o exterior, geridas com sigilo”.

 

Os estudos dos demógrafos (unânimes) depois demonstraram que apenas nas missões os indígenas experimentaram um crescimento demográfico em vez de uma queda. Foram suprimidas porque haviam se tornado "perigosas concorrentes econômicas" dos portugueses brasileiros ("frequentemente em luta com os espanhóis que viviam nas zonas de fronteira"). Além disso, a guerra às Reduções era uma peça fundamental para a campanha em vista à supressão da Companhia de Jesus. Claudio Ferlan, no livro Os Jesuítas (il Mulino), também atribui as principais culpas pelo que aconteceu a Portugal. Ou melhor, ao Marquês de Pombal, o poderoso Primeiro-Ministro do rei D. José I, que "acreditava que, ao livrar-se dos inacianos, demonstraria o poder de Portugal perante a Santa Sé". E "marcaria um ponto decisivo na luta contra a superstição na qual estava pessoalmente engajado, como fervoroso defensor das ideias iluministas".

 

 

É preciso dizer, porém, que entre aqueles indígenas houve muitas mortes em meados do século XVIII. Algumas epidemias de varíola entre os guaranis causaram mortes que, segundo Romanato, devem ser consideradas "um trágico acontecimento natural contra o qual a medicina da época nada podia fazer". Mas não é um argumento que possa ser utilizado para atacar os missionários "mesmo que", reconhece o estudioso, "é verdade que a concentração da população de alguma forma favoreceu a propagação e a virulência do contágio".

 

O destino do "Estado Jesuíta" foi finalmente decidido pelo Tratado de Madrid, assinado "quase em segredo" em 13 de janeiro de 1750 por Espanha e Portugal. Tratado que tinha a finalidade de “pôr termo a dois séculos de tensão entre os dois reinos, definindo de uma vez por todas as fronteiras entre a América portuguesa e aquela espanhola. O "território das Reduções" recebeu um golpe definitivo. O Padre Lope Luis Altamirano nada pôde fazer, enviado às pressas com a tarefa específica de supervisionar as transferências dos índios e entregar as missões aos novos proprietários. Também houve episódios de revolta. Mas “a resistência dos índios, em vez de induzir à cautela, acirrou os ânimos”.

 

Ninguém queria "ceder diante de um punhado de 'selvagens'". Todos, espanhóis e portugueses, "culparam os jesuítas pela revolta, considerando-os os verdadeiros e ocultos inspiradores dos guaranis". Acossado entre o martelo e a bigorna, Altamirano, “a quem haviam sido dadas instruções que não admitiam brechas”, nada mais pôde fazer, segundo Romanato, senão apoiar a intervenção armada, colocando-se ao lado dos algozes.

 

Os guaranis então se voltaram para um habilidoso comandante militar, Sepé Tiaraju, que liderou uma espécie de guerrilha que durou até fevereiro de 1756, quando Sepé Tiaraju foi morto. Privados de seu líder, os índios "desabaram e foram massacrados, deixando no solo cerca de mil e 500 mortos e centenas de prisioneiros". Depois disso, em poucos meses, as Reduções se renderam.

 

 

Quem pagou essa terrível conta, além dos inocentes guarani, foram os jesuítas "que agora todos consideravam traiçoeiros e traidores, ainda que nunca se tenha provado suas responsabilidades no levante indígena". As dúvidas que há tempo fervilhavam na Europa sobre aquela estranha e incrível "república de selvagens" construída pelos jesuítas na América do Sul e sobre as riquezas que, longe de todos, escondia "encontraram novo impulso depois da revolta ainda mais estranha dos Guarani, que ‘não podiam’ ter agido sozinhos, por sua exclusiva iniciativa”. As suspeitas e acusações foram alimentadas inclusive por ex-jesuítas, "provavelmente animados mais por rancores do que por argumentos". Também impiedoso foi o juízo unânime sobre a missão de Altamirano "cuja conduta desprovida de flexibilidade", explica Romanato, se justifica somente "pelo fato de que ele sabia bem o quão ténue era o fio que mantinha viva a Companhia". De fato, em 2 de abril de 1767, "veio o golpe definitivo" com o fim da Ordem na Espanha; seis anos depois, em 1773, a Companhia de Jesus foi suprimida pela Santa Sé também canonicamente. E com ela, até os guaranis foram definitivamente engolidos pela história.

 

 

Muito mais tarde, um parlamentar escocês, Robert Cunninghame Graham (1852-1936), escreveu um livro, A Arcádia perdida. A história dos jesuítas na América do Sul entre os séculos XVII e XVIII (Castelvecchi), na qual desmantelou o "preconceito anglo-saxão" segundo o qual as colônias espanholas haviam sido mal administradas e os conquistadores hispânicos haviam se revelado horríveis "açougueiros motivados pelo único prazer do sangue". Cunninghame Graham reparou que após a expulsão dos Jesuítas da Espanha, apesar dos insultos e da "lama deliberadamente lançada" sobre a Companhia, ninguém (ou quase) tinha "algo a dizer contra as ações da Ordem durante seu longo governo no Paraguai”. Nenhum jesuíta jamais foi acusado, "nenhum crime foi debitado a eles". Até mesmo as razões de sua expulsão "nunca foram apresentadas ao mundo". Certo é que depois de poucos anos da saída definitiva das missões entre o Uruguai e o Paraná, Cunninghame Graham continuou, "a confusão se instalou". Em 20 anos, a maioria das missões foi abandonada e, mesmo antes que outros trinta anos se passassem, "não permanecia vestígios de sua prosperidade passada". Mas é justo agora que esses vestígios retomem seu lugar de direito nos livros de história.

 

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