Reflexões de um rabino sobre a Lei, os fariseus e “nosso amigo Francisco”

Foto: Bruno Aguirre | Unsplash

01 Dezembro 2021

 

“Francamente, não estou muito preocupado com esta ou aquela declaração episódica feita pelo Papa Francisco. Certamente às vezes ficamos preocupados. Nós precisamos ficar. No entanto, nossas preocupações, nossos medos e nossa dor devem, por necessidade ética, ser expressos no contexto geral da amizade deste papa e da Igreja. Que fique bem claro que o povo judeu não tem melhor amigo na cristandade hoje do que a Igreja Católica Romana. A Igreja Católica cumpriu as suas promessas feitas na Nostra Aetate e nas notas subsequentes à Nostra Aetate, apelando aos fiéis católicos para compreenderem o Judaísmo e o povo Judeu como o Judaísmo e o Povo Judeu se entendem”, escreve Yehiel E. Poupko, rabino da Federação Judaica Metropolitana de Chicago, EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 29-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis o artigo.

 

Em sua audiência geral em 11 de agosto de 2021, o Papa Francisco fez uma palestra intitulada “Catequese sobre a Carta aos Gálatas, 4: A Lei Mosaica”. Entre outras coisas, o papa disse: “A Lei não dá vida. Ela dá não oferece o cumprimento da promessa porque não é capaz de cumpri-la”.

 

Ele prosseguiu dizendo: “Todos os que têm fé em Jesus Cristo são chamados a viver no Espírito Santo, que liberta da Lei e, ao mesmo tempo, a cumpre de acordo com o mandamento do amor”.

 

A Lei, mais conhecida pelo Povo Judeu como Mitzvot – os Mandamentos da Torá – é a própria essência do Judaísmo. Somos o povo eleito porque somos o povo comandado. Deus nos concedeu o maior dos elogios. Ao nos comandar, foi a avaliação de Deus que nós – o povo judeu, os filhos de Abraão e Sara, Isaac e Rebeca, Jacó, Raquel e Lia – temos os ativos intelectuais e emocionais, a força moral e ética para cumprir os Mitzvot.

 

Assim, não é surpresa que o papa tenha recebido cartas de algumas organizações comunitárias judaicas expressando muita preocupação com essa declaração. Em uma comunicação do Rabino Chefe de Israel, o autor escreveu: “Em sua homilia, o Papa apresenta a fé cristã como não apenas substituindo a Torá, mas afirma que esta não dá mais vida, o que implica que a prática religiosa judaica na era atual torna-se obsoleto. Isso é, com efeito, parte integrante do ensino de desprezo para com os judeus e o judaísmo que pensávamos ter sido totalmente repudiado pela Igreja”.

 

O cardeal Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, autoridade vaticana responsável também pelas relações com o judaísmo e o povo judeu, respondeu a essa carta afirmando o que é sabido: que o judaísmo e o povo judeu gozam do maior respeito e afeto do Papa Francisco; que suas observações sobre as Mitzvot não foram dirigidas ao povo judeu; e que, para os cristãos, as Mitzvot são uma jornada para Cristo.

 

Koch afirmou ainda que “no discurso do Santo Padre, a Torá não foi desvalorizada”. Ele também escreveu que isso “não significa que a Torá foi diminuída ou não é mais reconhecida como o caminho de salvação para os judeus”, e que o papa estava se referindo apenas ao contexto histórico da carta de São Paulo, não ao Judaísmo contemporâneo.

 

Esta não é a primeira vez que uma apresentação do Papa Francisco causou alguma preocupação na comunidade judaica e também na própria Igreja Católica Romana. Em 19 de outubro de 2017, em sua meditação matinal na Capela da Domus Sanctae Marthae, intitulada “Fariseus de hoje”, o Papa Francisco advertiu os pastores que queriam excluir alguns católicos da participação em certos sacramentos, observando que “isso está acontecendo hoje porque os fariseus, doutores da lei, não são coisa de outrora: ainda hoje são muitos”.

 

Sua declaração levanta aquele estereótipo antigo dos fariseus (Perushim), que são na verdade os sagrados pais espirituais do Judaísmo e do povo judeu até hoje, como hipócritas que não entendem o espírito da lei. A resposta judaica era previsível. Essas declarações sobre os fariseus são profundamente dolorosas para nós. Ao longo dos séculos, essas caracterizações fomentaram o ódio aos judeus.

 

Agora, qual foi a resposta da Igreja a essas preocupações levantadas pela comunidade judaica e por muitos amigos católicos? Uma conferência foi convocada não muito tempo depois, no Vaticano, sob o patrocínio do papa, sobre os fariseus! É assim que os verdadeiros amigos agem.

 

Onde mais no mundo cristão alguém consegue uma conferência erudita completa, totalmente aberta, realizada a fim de explorar uma questão de interesse judaico? Isso vai ao cerne da relação católica-judaica contemporânea, que é a estrutura determinante para apresentar tais preocupações judaicas.

 

Francamente, não estou muito preocupado com esta ou aquela declaração episódica feita pelo Papa Francisco. Certamente às vezes ficamos preocupados. Nós precisamos ficar. No entanto, nossas preocupações, nossos medos e nossa dor devem, por necessidade ética, ser expressos no contexto geral da amizade deste papa e da Igreja.

 

Que fique bem claro que o povo judeu não tem melhor amigo na cristandade hoje do que a Igreja Católica Romana. A Igreja Católica cumpriu as suas promessas feitas na Nostra Aetate e nas notas subsequentes à Nostra Aetate, apelando aos fiéis católicos para compreenderem o Judaísmo e o povo Judeu como o Judaísmo e o Povo Judeu se entendem.

 

Assim, a Igreja Católica Romana nos deu testemunho de algo que nenhuma igreja protestante jamais testemunhou. A Igreja Católica Romana afirmou a eficácia da aliança de nossa leitura das Escrituras de nossa tradição e através das lentes dos rabinos, o Talmud e o Midrash. A igreja afirmou que nossa leitura das Escrituras é espiritual e eticamente válida, vivificante e legítima. Ela nos entende como um amálgama indivisível de Deus, terra, linguagem, Torá, Mitzvot e povo familiar. As declarações da Igreja para nós em “Os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” e “O povo judeu e suas sagradas escrituras na Bíblia Cristã” contêm afirmações e declarações de afeto e respeito que não podem ser encontradas em nenhum lugar nos documentos oficiais das principais igrejas protestantes. Essas afirmações são provavelmente a mudança mais significativa na teologia cristã em 2 mil anos.

 

Sem dúvida, a Igreja Católica Romana é quase lendária pelo cuidado, erudição e diligência com que apresenta seus ensinamentos e instruções tanto para os fiéis católicos quanto para o mundo em geral. Ao mesmo tempo, também é verdade que um número significativo de católicos e judeus não leem documentos teológicos. É na vida da igreja que as ideias de tais documentos se tornam reais para que todos possam testemunhar. Isso pode ser chamado de teologia performativa. Os papas João Paulo II e Bento XVI foram mestres da teologia da performance no cenário mundial. Essa compreensão da teologia da performance foi testada com teólogos católicos e um ou dois bispos.

 

Em sua peregrinação a Israel em março de 2000, João Paulo II foi a Jerusalém, o coração de Israel, pela qual todos os olhos judeus ansiaram por séculos. Ele foi até o Muro – o Kotel – e lá no lugar de nossa maior lamentação, deu testemunho para o mundo. O mesmo é verdade para o Papa Francisco. Aqui estão dois exemplos que demonstram a amizade, o afeto e o respeito do Papa Francisco pelo Judaísmo e pelo povo judeu.

 

Em 11 de setembro de 2013, o Papa Francisco respondeu, por escrito, a uma série de perguntas feitas a ele em uma carta de Eugenio Scalfari, fundador do jornal italiano La Repubblica. Eis aqui um trecho:

 

Você [Dr. Scalfari] também me pergunta, na conclusão de seu primeiro artigo, o que devemos dizer aos nossos irmãos judeus sobre a promessa feita a eles por Deus: tudo deu em nada? Acredite em mim, esta é uma questão que nos desafia radicalmente como cristãos, porque, com a ajuda de Deus, especialmente a partir do Concílio Vaticano II, redescobrimos que o povo judeu é ainda para nós a raiz sagrada da qual Jesus germinou. Na amizade que cultivei ao longo de todos esses anos com os irmãos judeus na Argentina, muitas vezes na oração também questionava Deus, especialmente quando minha mente se voltava para a memória da terrível experiência do Shoá. O que posso dizer a você, com o apóstolo Paulo, é que a fidelidade de Deus à estreita aliança com Israel nunca falhou e que, através das terríveis provações destes séculos, os judeus mantiveram sua fé em Deus. E por isso, nunca seremos suficientemente gratos a eles como Igreja, mas também como humanidade. Eles, pois, precisamente por perseverar na fé do Deus da Aliança, chamaram a todos, também nós cristãos, para o facto de estarmos sempre à espera, como peregrinos, da volta do Senhor e, por isso, devemos estar sempre abertos a Ele e nunca se refugie naquilo que já alcançamos.”

 

Em sua notável carta, o papa vai muito além das mudanças teológicas formais no pensamento da Igreja sobre o judaísmo e o povo judeu. Sem surpresa para ele, mas surpreendentemente à luz da história, ele afirma a eficácia duradoura da aliança de Deus com Israel. Ele não apenas expressa amizade duradoura pelo povo judeu, mas também se refere à sua amizade de décadas com o povo judeu na Argentina.

 

O que é surpreendente, na verdade de tirar o fôlego, é que ele expressa o endividamento da Igreja, e o endividamento de toda a humanidade, pelo testemunho de séculos de Israel ao Deus Único, em meio a sofrimentos e tormentos indescritíveis. A incessante peregrinação e o desabrigo, que serviam como prova para Agostinho da punição imposta aos judeus por rejeitarem a Cristo, agora estão de cabeça para baixo. A devoção de Israel à Aliança, sua devoção inabalável e teimosa e observância dos Mitzvot por mais de dois milênios é um testemunho incomparável do Deus Único para a Igreja e para a humanidade. Este testemunho é tão significativo que o Papa Francisco escreve que a Igreja e a humanidade “nunca serão suficientemente gratas”.

 

O secular ensinamento cristão de desprezo pelo judaísmo e pelo povo judeu era uma condição necessária, mas ainda assim insuficiente para a destruição dos judeus europeus. Na esteira da Shoá, ficou claro que o Cristianismo e suas igrejas teriam que mudar. Francamente, seria preciso ser cego além da imaginação para não saber disso. Nesse sentido, comparativamente falando, as mudanças no pensamento teológico cristão sobre o judaísmo, a fé do povo judeu, eram moralmente inevitáveis. No entanto, muito mais era necessário.

 

O Cristianismo é uma religião. O Judaísmo não é apenas uma religião. É muito mais. Nós, o povo judeu, somos uma família que se tornou uma fé e permaneceu uma família. Nas palavras de um teólogo católico, para o judaísmo a sequência é: “Eu pertenço, faço, eu creio”; para o cristianismo, a sequência é: “Eu acredito, eu faço, eu pertenço”. Assim, se nasce judeu, mas ser cristão é “se tornar”.

 

Esse respeito e apreço por nossa autocompreensão nacional foi demonstrado quando o Papa João Paulo II foi a Jerusalém, em março de 2000, testemunhando assim que a Igreja não tem objeções teológicas ao retorno judaico à soberania na antiga pátria.

 

Isso também foi expressado de forma dramática quando o Papa Francisco colocou uma coroa de flores no túmulo de Theodor Herzl, o pai do sionismo moderno, em maio de 2014. Em 1904, Theodor Herzl foi a Roma, em busca do apoio do papa para o sionismo. Pio X respondeu com a seguinte declaração:

 

Não podemos dar aprovação a este movimento. Não podemos impedir os judeus de irem a Jerusalém – mas nunca poderíamos sancioná-lo. O solo de Jerusalém, se nem sempre foi sagrado, foi santificado pela vida de Jesus Cristo. Como chefe da Igreja, não posso dizer nada diferente. Os judeus não reconheceram nosso Senhor, portanto não podemos reconhecer o povo judeu”.

 

Em homenagem a Theodor Herzl em seu último local de descanso no Monte Herzl em Jerusalém, em um ato de teologia da performance, Francisco negou as palavras de seu predecessor. Papa Francisco é nosso amigo.

 

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