A Juventude: Reflexões sobre um filme de Paolo Sorrentino. Artigo de Faustino Teixeira

Cena do filme A Juventude, de Paolo Sorrentino | Foto: Gianni Fiorito / Divulgação

26 Novembro 2021

 

"Estamos diante de um filme magnífico, a meu ver, que aborda questões fundamentais da vida humana, de modo particular a questão da felicidade", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Faustino Teixeira (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Faustino Teixeira possui graduação em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, graduação em Filosofia pela UFJF, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é professor convidado da UFJF no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, depois de sua aposentadoria como professor titular na mesma Universidade, em 2017. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: religiões, pluralismo religioso, diálogo inter-religioso, catolicismo e mística.

 

Teixeira é autor de vasta obra. Entre suas publicações, destacamos: Buscadores cristãos no diálogo com o Islã (Paulus: 2015), Cristianismos e Teologia da Libertação (Fonte Editorial: 2014), Teologia e pluralismo religioso (Nhanduti: 2012) e Sociologia da Religião: Enfoques Teóricos (Vozes: 2003). 

 

Eis o artigo. 


Estamos diante de um filme magnífico que aborda questões fundamentais da vida humana, de modo particular a questão da felicidade. Sua estreia se deu no Festival de Cinema de Cannes, em maio de 2015. O filme ganhou 12 prêmios em festivais onde foi apresentado, sendo a música Simple Song [1], que aparece ao final do filme, indicada ao Oscar de melhor canção original. Houve ainda a indicação ao Globo de Ouro para a melhor atriz coadjuvante (Jane Fonda) e melhor canção. Posso ainda registrar a beleza da fotografia, a cargo de Luca Bigazzi.

 

 

Podemos aqui fazer menção a um tema freudiano, como lembra Lucia Sivoletta Wendlig, abordando o filme em Crônicas Cariocas em abril de 2016 [2]: será o ser humano alguém fadado à felicidade? Na verdade, há como contraponto, o princípio realidade, que barra qualquer hipótese de uma felicidade completa, mas que é sempre parcial. O mundo real não consegue satisfazer nossos desejos.

 

Ser ou não feliz, é um tema recorrente no filme.

 

Tive acesso ao roteiro, que foi publicado em livro na Itália, em 2015. Temos ali todas os momentos e falas do filme, que são muito significativos [3].

 

O roteiro é simples: somos apresentados a dois personagens que se encontram à beira dos 80 anos, amigos de longa data: Fred Ballinger (Michael Caine) e Mick Boile (Harvey Keitel). O primeiro é um compositor e maestro aposentado, autor de uma linda e reconhecida composição: Canção simples (Simple song); o segundo é um bem sucedido cineasta, decidido a fazer um último filme, que seria o seu testamento.

 

Os dois estão num idílico e luxuoso Spa no pé dos alpes, na Suíça, entre paisagens maravilhosas. Com eles, outros personagens diversos: pessoas de idades e objetivos diversos: Lena Ballinger (a filha e secretária de Fred – que vinha de um casamento rompido com Julian [4]); Jimmy Tree (Paul Dano), um jovem ator, que ficou conhecido por representar Mister Q (um robô de ferro, cuja armadura pesava noventa quilos, e sua face quase não era vista); um ex-jogador argentino de futebol (uma paródia com Maradona) [5]; uma atriz famosa mas decadente (Brenda Morel – interpretada por Jane Fonda); um professor de alpinismo (Luca Moroder, interpretado por Robert Seethaler); uma linda miss Universo (Madalina Diana Ghenea); e uma cantora inglesa (Paloma Faith).

 

Os dois amigos recordam naquele lugar paradisíaco passagens da vida, da infância. Fazem igualmente planos para o futuro. O filme lança para todos os que o assistem a delicada questão do legado que deixamos para os outros na vida. Em certos momentos do filme fica a sugestão de que a obra que fizeram firmou-se como mais importante do que aquilo que “conseguiram fazer de suas vidas” [6]. A expressão NOSTALGIA talvez consiga dar um significado mais preciso ao filme: do grego nostós = regresso e algoz = dor.

 

Temos também a temática da passagem do tempo, como numa frase da tradição budista: “Tudo muda. Tudo aparece ou desaparece”; ou então Rilke: “O que é nosso flutua e desaparece” (Segunda Elegia de Duíno).

 

Há ainda a questão do preconceito: a visão preconceituosa do jovem ator com respeito à miss universo [7] ou da filha do compositor com respeito ao professor de alpinismo. Essa questão foi apontada com presteza por Alessandra Ogeda em sua resenha do filme [8].

 

Sorrentino é um diretor muito influenciado por Fellini, e vemos no filme passagens que lembram o grande diretor italiano, sobretudo Oito e Meio.

 

 

Pontuando algumas cenas do filme:

 

1. Uma reflexão sobre a amizade. Em momento do filme, num encontro de Lena com Mick, ela estranha o fato do cineasta não estar sabendo de determinado detalhe de posicionamento de seu pai, o compositor. Considera estranho haver certo recato na intimidade entre os velhos amigos, e diz: “Que estranha amizade, a de vocês”. E ele responde com tranquilidade: “Nas belas amizades o que dizemos são apenas as coisas belas” [9].

 

2. O tema da juventude. É memorável a cena em que os dois amigos, num passeio no hotel, assistem um jovem a passar rapidamente com sua moutain bike, numa roda só, em ousado procedimento na inclinada rampa da estrada, com energia fantástica.

 

Mick fala ao amigo que não se lembra mais de quase nada, nem mesmo de seus pais ou de sua infância. Mas lembra-se do dia em que aprendeu a andar de bicicleta. E que felicidade (mesmo assim como algo tão banal). E diz que pela manhã tinha se recordado de outra coisa... e o amigo Fred adivinhou: o dia em que caiu da bicicleta. E justificou o porque adivinhou: “Porque isto se dá com todos. Aprende a fazer uma coisa, fica feliz, e acaba por esquecer de frear” [11].

 

 

Há também o “clima de alegria”, como na exemplar cena em que o velho compositor Fred rege, no meio das árvores, um coral de vacas. É uma cena única: com gestos de delicadeza das mãos ele vai regendo, sentado num tronco, e ao som dos sinetes das vacas juntam-se o som das cigarras e dos pássaros. Com muita doçura ele fecha os olhos e admira aquela sensação maravilhosa = uma sinfonia da natureza. Como diz o roteiro, é a primeira vez no filme em que o compositor aparece como alguém feliz. Compondo mentalmente, ele seleciona os rumores que estão à disposição e se percebe regendo maravilhosamente [11].

 

E a cena mais ao final, quando o médico do Spa diz a ele que seus exames estão perfeitos, e que não tem problema algum na próstata: “O senhor está tão sadio como um peixe”. E indica para ele o que o aguarda fora dali: “A juventude” [12]. Mas Fred dirá ao amigo músico mais adiante que ele voltaria para a sua casa, e para a rotina normal.

 

3. A diferença do olhar entre as pessoas: exemplificada no olhar que a filha Lena reflete sobre o seu pai, e a reação deste ao falar da questão para a mulher internada numa clínica privada:

 

A filha lamenta o fato do pai só ter pensado na música. Nada mais havia na sua vida. O que devia imperar era apenas o silêncio: o silêncio para ajudar a inspiração; o silêncio para descansar. E também a aridez: nada de carinho ou abraço, nem um beijo sequer. E a filha continua: “Não conseguiste a cura de teu sofrimento”. Até hoje sequer conseguiu levar flores para a mulher, internada numa clínica em Veneza. E ainda: “Queria ser Stravinskij, mas não tinha um milésimo de seu gênio” [13].

 

Durante o filme, ela fica comovida de presenciar uma cena amorosa de seu pai, um carinho enquanto “fingia” dormir. Isto pela primeira vez na vida [14].

 

Fica também emocionada por ter presenciado uma fala de seu pai com o emissário da rainha, quando disse a ele que não queria mais reger sua música, pois só mesmo sua mulher seria capaz de ser a soprano. A filha diz: “Ele demorou 80anos para dizer uma coisa romântica” [15].

 

E o olhar do pai, quando visita sua mulher, já ao final do filme, na clínica em que está internada. Ele diz: “Melanie, os filhos não sabem. Não conhecem as coisas dos genitores (...). Não podem saber. Não sabem como tremi pela primeira vez que te vi no palco (e a orquestra ria reservadamente)”. Eles, os filhos, não sabem como você me amou e como eu te amei. Eles não sabem o que fomos eu e tu, não obstante tudo...” [16]. Em outro momento do filme, diz ao amigo Mick que aquilo que faltava em sua vida agora era a sua mulher Melanie.

 

E a mulher ali no quarto, sem voltar o olhar para o marido, imóvel junto à janela, com o olhar destruído pela doença [17].

 

 

4. A nervura central da questão da morte: a questão fundamental não é simplesmente deixar a memórias aos que ficam, transmitir o saber... Tudo isso acaba por escamotear o único problema, que é a morte, assim tão vizinha (palavras de Fred a Mick) [18].

 

Em certo momento, o cineasta sublinha: “A maior parte dos homens morrem não só sem testamento, mas morrem sem que ninguém se dê conta” [19].

 

E o maestro assiste sem conseguir reagir à morte suicida do amigo já ao final do filme, depois que ele recebeu a negativa da personagem querida por ele para concluir o seu filme. Num encontro entre os dois no hotel ela disse a ele: “A sua carreira terminou (...). O seu filme testamento não interessa a ninguém, arriscando colocar tudo a perder com respeito aos belos filmes que fez” [20].

 

Na dura cena do suicídio do amigo, Fred diz que volta à rotina da casa, enquanto Mick sublinha que não consegue viver com a rotina, e as emoções para ele são tudo. “Com grande simplicidade” ele se achega à janela e joga o seu corpo, sem que o amigo pudesse fazer algo para salvá-lo [21]

 

5. A irrevogabilidade da velhice: a bela cena em que Mick com uma luneta mostra a uma jovem uma montanha vista de perto (com um lado da luneta) e vista de longe (com o outro lado). Isto para expressar a diferença entre a juventude (que se vê de bem perto) e a velhice (que se vê de longe) [22].

 

Como sublinha Alessandra Ogeda, “neste filme, a reflexão maior é sobre a passagem do tempo. Sobre as características das pessoas quando elas são jovens, que tipo de olhar, percepção, sensibilidade que elas tem, e o que acontece quando elas envelhecem – muda o olhar, a percepção e tudo mais” [23].

 

6. A questão da sexualidade. Na magnífica cena em que os dois velhos amigos ficam deslumbrados com a entrada da miss universo na grande piscina da sauna, com sua beleza impressionante [24]. A beleza causa um impacto impressionante nos dois, como se estivessem diante de algo sensacional mas inatingível. Uma mulher “concebida para causar distúrbio no mundo (disagio nel mondo)” [25].

 

Há também a cena “estranha” da relação sexual do casal alemão, que durante as refeições sequer se falam, e que em determinado momento o homem leva um tapão da mulher. Depois, os velhos amigos, flagram os dois em cena escaldante no meio da floresta [26].

 

E igualmente a sensação sentida por Fred no jeito especial com que a jovem massagista toca o seu corpo. Fred pergunta a ela se ela entende tudo com as mãos e ela responde: “Se compreendem muitas coisas tocando. Mas talvez pelo fato das pessoas terem medo de tocar-se” [27]. A experiência da jovem é grande, capaz de sentir no toque o estado emocional de cada um, como ocorreu com Fred [28].

 

7. Outros detalhes: como o esfregar do papel das balas por Fred, com aquele barulho característico, como se estivesse compondo. Em certa cena, o seu velho amigo diz que aquilo que ele compõe com o papel da bala é o que de melhor fez na carreira [29]. Só na cena mais ao final, depois de visitar sua mulher, deixa de fazer isto [30].

 

Notas: 

 

[1] Toda a bela trilha sonora do filme é de autoria de David Lang.

[2] Disponível aqui. (acesso em 20/11/2021)

[3] Paolo Sorrentino. La giovinezza. 2 ed. Milano: Rizzoli, 2015. Grande parte de minha reflexão foi inspirada nesse livro.

[4] Ele, Julian, filho do velho cineasta Mick, tinha arrumado uma amante e dizia que ela era boa de cama. Isso irá irritar profundamente Lena quando soube disso pelo pai no hotel: Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 69.

[5] Sempre citado no roteiro como o obeso sul-americano. Em determinado momento do filme, o cineasta Mick sublinha que aquele sul-americano tinha sido “o último, verdadeiro, autêntico mito na Terra”: Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 56.

[6] Disponível aqui.  (acesso em 20/11/2021).

[7] Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 118-119.

[8] Disponível aqui.  (acesso em 20/11/2021).

[9] Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 144.

[10] Ibidem, p. 89.

[11] Ibidem, p. 44-45.

[12] Ibidem, p. 179.180.

[13] Ibidem, p. 72.

[14] Ibidem, p. 144.

[15] Ibidem, p. 144.

[16] Ibidem, p. 184.

[17] Ibidem, p. 183 e 192.

[18] Ibidem, p. 115-116.

[19] Ibidem, p. 166.

[20] Ibidem, p. 158

[21] Ibidem, p. 173.

[22] Ibidem, p. 101.

[23] Disponível aqui  (acesso em 20/11/2021).

[24] Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 151.

[25] Ibidem, p. 152.

[26] Ibidem, p. 52, 79 e 91.

[27] Ibidem, p. 98.

[28] A mesma massagista aparece em outros momentos do filme em cenas lindas de dança, como exemplares movimentos plásticos.

[29] Paolo Sorrentino. La giovinezza, p. 150.

[30] Ibidem, p. 149 e 186.

 

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