O debate sobre o “Deus que perdemos”: uma opinião

Foto: Cathopic

28 Agosto 2021

 

"Estamos diante de uma enorme mudança na religiosidade humana e estamos diante de uma espécie de mutação genética espiritual, uma mudança espiritual copernicana. Os sinais são muitos e representam um momento decisivo para as religiões", escreve Antonio Greco, em artigo publicado por Manifesto4otobre, 05-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

Simplificando, do debate (ver o post anterior com uma síntese das diferentes posições intitulado O debate sobre "O Deus que perdemos": uma síntese) destaca-se a concordância entre os participantes sobre as seguintes afirmações:

 

• “Deus” é uma palavra ainda muito confundida com a religião e mantém forte seu caráter antropomórfico. Existe uma concordância substancial em aceitar a diferença entre o pensamento filosófico e teológico do século XX e a filosofia e teologia do passado, que pretendia não apenas demonstrar racionalmente a existência de Deus, mas definir sua essência: "quem" ou "o que" é Deus? Em vez disso, no século XX perfila-se uma linha de reflexão predominante que, retomando o tema central da “teologia negativa”, afirma que tudo o que sabemos sobre Deus é que ele está além de nossos pensamentos; que, portanto, não sabemos quem ou o que ele seja, mas o que ele não é.

 

• Estamos diante de uma enorme mudança na religiosidade humana e estamos diante de uma espécie de mutação genética espiritual, uma mudança espiritual copernicana. Os sinais são muitos e representam um momento decisivo para as religiões.

 

Ainda que entre os participantes exista a confissão explícita de que muitos deles não leram todos os quatro volumes sobre o tema publicados pela Gabrielli, os elementos de contraste e de não compartilhamento e as objeções mais relevantes, em minha opinião, que se dirigem a esses pesquisadores pós-teístas são:

 

1 - “Existe um ateísmo sério, que devemos estimar. Um ateísmo de retorno, redutivo, é pequeno demais". O pós-teísta que renuncia ao Deus-Pessoa é acusado de ateísmo redutivo ou escondido porque deixa um vazio, tende para o agnosticismo. Curva-se em direção a um vago panteísmo. Flerta com o “Deus sive Natura” de Spinoza.

 

2 - Não se pode renunciar ao Deus-pessoa. Em vez disso, é necessário reabrir a questão de Deus: não se Deus existe ou não, mas qual Deus!

 

3. Quando nos dirigimos "para além de Deus e das religiões", criam-se as motivações a partir das quais já não faz sentido a oração humana individual ("o simples suspiro diante da empreitada da vida") e se reduz ou desaparece a dimensão comunitária daqueles que vivem como crentes por causa do desaparecimento, ou no mínimo, do enfraquecimento da participação em uma visão e uma ação coletiva espiritualmente inspirada.

 

 

Não sou teólogo nem historiador das religiões e não tenho a pretensão de responder às referidas questões, sérias e muito relevantes, mas me permito observar:

 

1. Quem assume o ateísmo teórico e o ateísmo prático (inevitavelmente entrelaçados e muito difundidos no Ocidente), que nascem e também são causadas inclusive por aquele "deus antropomórfico" sobre o qual ironizam os "crentes puros" e que uma determinada teologia, que escapa de qualquer contato com a realidade, continua a praticar?

 

A ciência pode e deve ser criticada. A ciência não é a 'verdade', mas é a melhor técnica que os seres humanos desenvolveram até agora para compreender o que é o mundo natural e como ele funciona.

 

Mas as duas derivas opostas são deletérios: aquela de quem a ignora não só por ignorância, mas também por medo de ter que rever suas categorias mentais e porque não quer mudanças por preguiça ou por interesses consolidados, e também é necessário evitar a deriva oposta do cientista sabe-tudo e arrogante, convencido de que tem a verdade absoluta em seu bolso.

 

Como é possível ignorar na pesquisa sobre "Deus" as ciências cosmológicas, a física e a biologia?

 

O que o infinitamente grande e o infinitamente pequeno têm a dizer? Subtraíram o homem de se sentir o centro do universo e redimensionaram o pequeno mundo em que vivemos para nos dar outro incomparavelmente maior e mais rico, mais misterioso e transbordante de vida.

 

 

Além disso, graças às novas ciências cosmológicas, o homem moderno se libertou (ou está se libertando) da antiga cosmovisão geocêntrica, estática, antropocêntrica e androcêntrica. A nova visão cosmológica deu origem a uma imagem do mundo completamente nova, radicalmente diferente daquela que forneceu o contexto para o nascimento das tradições religiosas abraâmicas e o desenvolvimento de seu patrimônio simbólico teológico, doutrinal e espiritual. Tendo em conta essa nova e revolucionária visão cosmológica, o desafio que se coloca hoje é ir além das formas tradicionais do dualismo (natural/sobrenatural, céu/terra, ...), do monismo, do teísmo e do ateísmo. Não se trata de uma deriva niilista, nem de uma fé reduzida à experiência pessoal ou de fazer evaporar sua dimensão institucional (Ulrich Beck [1]), nem pode bastar a referência à tese do "cristão anônimo", ainda que muito respeitável, proposta por Karl Rahner [2]. Por que não pensar que as religiões assim como as conhecemos estão destinadas a deixar espaço para algo novo e ainda imprevisível?

 

Mais ainda: como é possível no debate sobre "teísmo ou pós-teísmo" ignorar os dados de uma Terra velha, sujeita à lei do limite e da finitude? Essas verdades científicas são difíceis de ignorar em contraste com uma imaginária teleologia tão difundida na teologia acadêmica e no senso religioso comum? Uma imagem errada de Deus e um imaginário futuro de salvação da Terra não só não leva à fé, mas induz à repulsa para com Deus.

 

A pesquisa pós-teísta é uma das tentativas de pesquisa que quer tirar espaço ao "crente-crédulo", assume ao longo do tempo o desencanto do horizonte pós-moderno de tirar espaço também aos sem-deus (a-teos) por causa de um "deus" que sobretudo a instituição religiosa desenhou de maneira demasiadamente antropomórfica, e sugere a proposta de um risco radical: o risco de uma fé que nasça "fora da religião" nas pegadas de Jesus "que morreu como blasfemador, em estado de execração, fora da religião".

 

2. No que diz respeito à reabertura da “questão de Deus”, sigo a posição de Armido Rizzi [3], que para mim é muito mais convincente. Rizzi [4] escreve:

 

“A helenização do cristianismo é um feitiço da alma, que permeou profundamente a espiritualidade cristã, do homem em busca de Deus, e que inverteu a espiritualidade bíblica de Deus em busca do homem. (...) Cerca de doze anos atrás fui convidado a falar sobre a ideia de Deus no pensamento europeu do século XX; junto comigo um estudioso da filosofia deste século. Conhecendo seus interesses, decidi reservar para mim a parte sobre a ideia de Deus na teologia da libertação. (...) Não na Europa, mas na América Latina - nasceu uma teologia que não se limitava a mudar a resposta, mas tinha mudado a pergunta: não "o que é” Deus, não a sua essência ou natureza, mas "onde está” Deus, onde devo procurá-lo e posso encontrá-lo? E havia dado uma resposta: "Deus está no homem", especialmente no pobre: este é o Deus do Antigo e do Novo Testamento. Vou reproduzir aqui um texto de Mons. Oscar Romero, bispo de San Salvador e mártir, que reflete essa concepção: Há um critério para saber se Deus está perto ou longe de nós: qualquer um que se preocupa com o faminto, o nu, o desaparecido, o torturado, o prisioneiro, de toda esta carne sofredora, tem Deus por perto. (...) Quem busca o rosto de Deus, encontra-o nos pobres, quem quer viver o seu amor deve servir os pobres. Pobres não são apenas aqueles que não possuem posses econômicas, mas aqueles que estão doentes, humilhados, prisioneiros, presos, estrangeiros, etc. (cf. por exemplo Mt 25,31ss.)”.

 

A teologia da libertação não é a mesma busca da teologia pós-religião. Esta última também não se limita a mudar a resposta a uma antiga questão: se existe e o que é o "Mistério sem nome", mas tenta mudar a pergunta: quem não quer ficar indisponível e submeter-se aos ritos de a nova religião global hoje dominante (o culto do mercado, do dinheiro, do lucro e do capital), onde pode encontrar o Além (melhor em latim, o Ultra)?

 

 

3. Com o pós-teísmo, acaba a oração e qualquer forma de comunidade de crentes é desmantelada?

 

O crente comum acredita que evita as desgraças, a dor, a ânsia e o medo que assolam o homem, colocando-se nas mãos de Deus Pai. Experimentei pessoalmente o profundo conforto que a fé religiosa pode proporcionar nos momentos difíceis da vida. Quando acontece uma desgraça ou uma doença, pedir implorantes a ajuda do Pai Eterno, que a todos ama como filhos, é de grande conforto e consolo. Em situações de grave perigo, quando se acredita que não há outra saída, uma oração fervorosa ao Senhor oferece a esperança de poder superar a situação. Em momentos cruciais, pedir a intervenção de algum santo particularmente milagroso enche-nos de esperança e livra-nos da angústia. E o que dizer do medo da morte?

 

Mas é realmente verdade que a oração, como vivida por um crente comum, nos torna serenos e felizes?

 

Se quisermos ser objetivos, devemos admitir que, na vida cotidiana, percebe-se pouca serenidade ou contentamento nos chamados fiéis. A angústia, a depressão e o desespero atingem o crente e o não crente em igual medida. Com base em sua experiência com milhares e milhares de pacientes terminais, Umberto Veronesi [5] afirmou que os crentes têm muito mais medo da morte do que os não crentes.

 

 

Por que isso acontece?

 

Porque à oração de pedido, aquela mais comum, meio pelo qual se comunica com o Deus-pessoa, a resposta é o seu silêncio. Daí o contragolpe. E isso acontece porque a religião humanizou Deus.

 

Por fim, sustenta-se que “se [Deus] não fosse vivente, (...) sentiríamos o movimento para amar, respeitar, ajudar, favorecer, salvar os nossos semelhantes?”. Quando refletimos sobre a relação entre fé e comunidade, seria bom que muitos crentes não esquecessem o confronto entre o martírio do crente, convicto de que o sacrifício é a porta de entrada para um mundo melhor, e o significado extremo e radical do gesto dos combatentes da Resistência ao nazifascismo, que não acreditavam na ressurreição e que deram a vida, ou seja, tudo, por uma comunidade livre e justa, sem esperança ou consolo, com coragem lúcida, na solidão e consciência, sem esperar em nenhuma recompensa no além.

 

Como blog, estamos atentos a qualquer tentativa de abordar os questionamentos fundamentais da nossa vida - como amar, ser justos, ser livres, enfrentar o sofrimento e a morte [6].

 

A pesquisa espiritual da teologia pós-religião, certamente não a única, sem qualquer adesão acrítica a ela, é uma pequena parte de nossa busca por um jesuísmo/cristianismo sereno, profético e sem álibi.

 

Referências

[1] Foi um sociólogo e escritor alemão (1944-2015).

[2] Jesuíta e teólogo alemão (1904-1984), católico, entre os protagonistas da renovação da Igreja levou ao Concílio Vaticano II.

[3] Estudioso poliédrico, teólogo atual e teólogo da alteridade (1933-2020). 

[4] Em “Servitium” nº 214 de julho-agosto de 2014.

[5] Foi oncologista e político italiano (1925-2016).

[6] Remetemos às seguintes intervenções sobre o tema no blog. Disponível aqui

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

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