Aquelas que rompem o teto de vidro. As samaritanas: mulheres que aumentam a aposta, ontem como hoje

Foto: Mentnafunangann | Wikimedia Commons

02 Junho 2021

 

"Ao longo dos séculos cristãos, as boas samaritanas foram inúmeras, algumas reconhecidas e citadas como exemplo ou até mesmo beatificadas e santificadas, outras, e são maioria, anônimas, como a samaritana da parábola. E nas nossas estradas há muitos 'hereges', mulheres que consideramos estranhas ao nosso sistema social e, muitas vezes, também ao religioso, mas que não se esquivam do cuidado e da dedicação a tantos "infelizes" da sociedade do bem estar".

 

A opinião é de Marinella Perroni, teóloga e biblista, fundadora da Coordenação das Teólogas Italianas, autora de vários livros, professora no Pontifício Ateneu Santo Anselmo de Roma, em artigo publicado no caderno feminino Donne Chiesa Mondo do L'Osservatore Romano, junho-2021.  A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo. 

 

As samaritanas: plural feminino. De acordo com o Evangelho de João, Jesus fala a uma mulher samaritana e, de acordo com o Evangelho de Lucas, Jesus aponta para um samaritano qualquer como uma figura exemplar de obediência à Lei mosaica. Impondo, em ambos os casos, sair do sistema.

 

Há tempo, de fato, os samaritanos tinham construído o seu próprio templo no monte Gerizim porque os judeus os consideravam cismáticos devido à sua contaminação étnica e religiosa e os impediam de participar do culto oficial de Jerusalém. Portanto, foi Jesus o primeiro a sair do sistema.

 

A mulher de Samaria

Sempre me perguntei por que um dos mais famosos templos parisienses da era do consumismo recebeu o nome de “La Samaritaine”. A motivação está longe de ser insignificante: na fachada da primeira bomba hidráulica encomendada pelo rei Henrique IV (1553-1610) na ponte mais antiga de Paris, a Pont Neuf, havia um grupo escultórico representando o encontro de Jesus com a Samaritana e, nessa mesma ponte, tinha a lojinha de Ernest Cognacq, que com a esposa Marie-Louise Jaÿ fundaria, por volta de 1870, os famosos magazines da Ville lumière. Em suma, quando ainda a memória bíblica era uma urdidura para a vida da Europa, era natural associar à água a memória da mulher samaritana do Evangelho. Desconhecida dos três Evangelhos sinóticos, a mulher samaritana [Jo 4, 4-42] é para João uma verdadeira protagonista de seu evangelho. O seu encontro com Jesus realiza-se na cidade de Sicàr, importante do ponto de vista religioso porque está ligada, pela presença de um poço de água ainda hoje venerado, à memória do patriarca Jacó e do seu filho José. Não deve causar surpresa, então, que o poço, a água e uma ânfora sejam pistas narrativas claras para o evangelista do significado que toda a história tem para ele, centrada no primeiro longo discurso com o qual Jesus inicia sua revelação pública.

 

Houve. é verdade, o encontro imediatamente anterior com Nicodemos [Jo 3,1-21] mas, se considerarmos a narrativa como um todo, quase parece que o diálogo com o importante rabino de Jerusalém, homem do sistema, seja útil sobretudo para preparar aquele com alguém que está, por outro lado, duplamente fora do sistema, por ser mulher e por ser samaritana. Nicodemos vai intencionalmente a Jesus, mas o encontro acontece à noite, como se ele não quisesse se comprometer, o diálogo deles progride com dificuldade. Nicodemos também faz perguntas, tenta saber quem é aquele homem, mas as respostas de Jesus logo se transformam em um longo monólogo porque Nicodemos, silenciosamente, sai de cena.

 

O encontro entre a mulher samaritana e Jesus, por outro lado, é ocasional, acontece em plena luz do dia e se desenvolve até culminar na confissão da condição messiânica de Jesus pela mulher que até mesmo empreende uma feliz ação missionária para com os seus concidadãos.

 

A mulher deixou o seu jarro, foi à cidade e disse ao povo: “Venham ver um homem que me contou tudo o que fiz. Ele poderia ser o Cristo?"

 

No centro do diálogo só pode estar a água, e a estratégia retórica dos mal-entendidos, cara ao evangelista, permite enfocar o fato de que o verdadeiro fulcro do diálogo está no reconhecimento de que a água, símbolo da sabedoria que dá vida, é ao mesmo tempo também figura do ensinamento de Jesus e do dom do Espírito. O jarro deixado ao lado do poço é um sinal de que a mulher de Samaria entendeu isso: como Jesus lhe disse, se ela aceitar o seu ensinamento, não terá mais "sede para a eternidade". O protagonismo da samaritana é, para o evangelista, tudo menos secundário: ela é a interlocutora com quem Jesus elabora o primeiro de seus discursos de revelação, é a sequência de suas perguntas que, em um movimento em espiral, obriga Jesus a se mostrar cada vez mais e abertamente a se declarar como o Messias. Porque pressionado pela samaritana, Jesus profere um discurso fortemente enraizado na tradição do Antigo Testamento, mas também visionário, orientado para a novidade do dom messiânico do Espírito.

 

Jesus diz-lhe: “Dá-me de beber”. Seus discípulos tinham ido à cidade para buscar alimento. Então a samaritana lhe disse: “Como, sendo tu judeu, pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? [...] A mulher respondeu-lhe: “Eu sei que virá o Messias, chamado Cristo: quando ele vier, nos fará conhecer todas as coisas”. Jesus disse-lhe: “Sou eu que estou falando contigo”.

 

Por sua vez, também a mulher adquire uma consciência cada vez maior graças às suas próprias perguntas e compreende que, para acolher a novidade messiânica, também ela deve questionar o seu sistema religioso. Infelizmente, hoje como ontem, muitos intérpretes preferem considerar que o súbito pedido feito a ela por Jesus para ir chamar seu marido se refira à sua desordem sexual, pois ela é obrigada a admitir que não tem marido e parece aceitar sua culpa por ter tido bem mais do que um. Se, ao invés da instabilidade da vida conjugal da mulher, a referência aos seus "cinco maridos" for entendida pelo que quer ser, ou seja, uma denúncia de parte de Jesus das múltiplas divindades a que os samaritanos rendiam culto junto com a de Yhwh, então está em perfeita sintonia com o resto do discurso e se prepara para a revolucionária revelação do novo culto, que agora está ocorrendo "em espírito e verdade", e ao qual todos, tanto judeus como samaritanos, terão que se converter. Para um evangelista como João, que se inspira numa tradição espiritual que acompanha o sistema da "grande igreja", o protagonismo da mulher de Samaria serve para aludir ao fato de que a revelação de Deus se choca, por um lado, com a misteriosa rejeição de quem poderiam tê-la recebido e, por outro lado, com o inesperado acolhimento por parte daqueles que lhe são considerados mais estranhos. Certamente não é surpreendente, então, que sejam precisamente as mulheres, na época já progressivamente empurradas para fora das margens das primeiras comunidades cristãs, que, em vez disso, desempenham um papel muito importante no desenvolvimento da trama teológica de um evangelho que deseja seja, senão realmente transgressor, pelo menos alternativo: Maria de Nazaré vigia sobre o início e cumprimento da missão messiânica de seu filho; Marta de Betânia pronuncia a mais alta confissão cristológica de todo o Evangelho; sua irmã Maria, além de assistir à ressurreição de seu irmão Lázaro, unge profeticamente os pés e a cabeça de Jesus na ceia que precede o caminho da paixão; Maria de Magdala é a destinatária da primeira aparição do Ressuscitado e recebe dele a primeira entrega apostólica. Com elas, também a mulher de Samaria, a herege.

 

A boa samaritana

Devia ser o final dos anos 1960. A missa dominical do meio-dia na igreja do Jesus em Roma. Um padre jesuíta que eu conhecia muito bem está fazendo a homília e se aventura a atualizar a parábola do "Bom Samaritano": dois carros, o primeiro com placa ECV, Estado da Cidade do Vaticano, e o segundo DC, Democracia Cristã, passam sem perceber um homem ferido na estrada enquanto de um terceiro, com a placa URSS, União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, desce alguém que cuida da vítima. Abordagens um pouco ingênuas, talvez, que em nós, mais jovens, não causaram nenhum escândalo, mas custaram ao jesuíta um mês de proibição de pregar. Uma sanção que não deve surpreender: Jesus, afinal, teve um destino muito pior. Por outro lado, dizer que um herege herda a vida eterna porque respeita a Lei mais do que dois expoentes da religião oficial certamente não deve ter agradado a muitos.

 

A parábola, uma das mais conhecidas do Evangelho, é pronunciada por Jesus para responder a um desafio levantado por um doutor da Lei que questiona seu direito de ensinar por não estar oficialmente credenciado para tal e, como sempre, inverte a perspectiva do interlocutor: a um pobre homem deixado ferido por salteadores na beira da estada, prestam socorro não duas figuras institucionais, um sacerdote e um levita, mas um herege, um samaritano que cuida dele até pagar sua recuperação em uma hospedaria. Todos homens no palco: o infeliz que se depara com os bandidos, um sacerdote, um levita, um samaritano, um hoteleiro.

 

Por outro lado, pode-se presumir que, na época de Jesus, nenhuma mulher poderia se aventurar sozinha na estrada de Jerusalém a Jericó. Se a representássemos hoje, entretanto, certamente poderíamos imaginar um elenco inteiramente, ou pelo menos parcialmente, feminino. Além disso, uma vez que a parábola começa com “um homem" genérico e como devemos sempre considerar que este termo não significa necessariamente alguém do sexo masculino, então é inteiramente legítimo imaginar que quem é agredido pelos bandidos e quem cuida dele pode também ser mulher. Se hoje nós fizéssemos uma releitura assim de uma das mais famosas parábolas do Evangelho ninguém ficaria surpreso. Não tanto pelo politicamente correto, mas por um dado de fato, talvez nem um pouco acidental, que está agora sob os olhos de todos: o âmbito da caridade foi o primeiro "teto de vidro" que, na Igreja, as mulheres conseguiram romper, e um grande número delas ocupa posições de destaque nos organogramas das organizações humanitárias de todas as igrejas e de todos os estados. Há anos participei de um encontro internacional de mulheres em que tomaram a palavra dirigentes de grandes instituições de diversos países que trabalham, e muitas vezes também vivem, em estreito contato com situações emergenciais de pobreza, doença, guerra, resgate no mar, deportação. São tantas as mulheres que, na Caritas, nas Misereor, na Cruz Vermelha Internacional, nos Médicos Sem Fronteiras, mas também nas mil correntes de dedicação que não precisam de câmeras, se aproximam de inúmeros desventurados de todo o mundo. São tantas que se dedicam a missões ou às beiras das estradas de nossas cidades. Nos últimos meses, não vimos tantas enfrentando a emergência pandêmica nos nossos hospitais, aproximando-se silenciosamente até mesmo daqueles que eram forçados a morrer na solidão?

 

Isso certamente não é uma novidade. Ao longo dos séculos cristãos, as boas samaritanas foram inúmeras, algumas reconhecidas e citadas como exemplo ou até mesmo beatificadas e santificadas, outras, e são maioria, anônimas, como a samaritana da parábola. E nas nossas estradas há muitos "hereges", mulheres que consideramos estranhas ao nosso sistema social e, muitas vezes, também ao religioso, mas que não se esquivam do cuidado e da dedicação a tantos "infelizes" da sociedade do bem estar. Mesmo as samaritanas, capazes de se tornarem próximas de qualquer pessoa em dificuldade, não são menos provocativas do samaritano do Evangelho. Na conclusão da parábola, de fato, Jesus pronuncia não um ensinamento, mas uma advertência: “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?”. Ele respondeu: "Quem teve misericórdia dele." Jesus disse-lhe: “Vá e faça o mesmo” (Lc 10,36). Poderíamos perguntar-nos quantos estariam dispostos a seguir o exemplo de alguma que venha de um país distante, que tenha uma cor de pele diferente, que é não tenha todoas os vistos necessárias para estar dentro do sistema, que pertença a outra igreja ou honre outro Deus, só porque faz o bem. Porém, ontem como hoje, as samaritanas do Evangelho são o espelho dos ministérios que muitas mulheres exercem na Igreja no âmbito da caridade, mas também do ensinamento teológico e da catequese. Fora do sistema? Talvez tenha chegado a hora - e é esta - em que comece a não ser mais verdade.

 

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