“O fanatismo substitui Deus por um objeto finito e crê que pode possuí-lo”. Entrevista com Adrien Candiard

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21 Outubro 2020

O frade dominicano Adrien Candiard, especialista em teologia muçulmana, considera errado lutar contra o fanatismo por considerá-lo “um desvio social ou psicológico”, e não um “erro religioso”.

 

A entrevista é de Youness Bousenna, publicada por Le Monde, 19-10-2020. A tradução da versão italiana, publicada por FineSettimana, é de Moisés Sbardelotto.

 

Frade dominicano especialista em teologia muçulmana, Adrien Candiard não tem medo de abandonar seu hábito de pesquisador para entrar no debate público. Ele já havia publicado, algumas semanas após os ataques de 2015, o livro “Comprendre l’islam. Ou plutôt : pourquoi on n’y comprend rien” [Compreender o Islã. Ou melhor: porque não se compreende nada] (Ed. Flammarion, 2016) para tentar superar as leituras simplistas sobre essa religião.

 

Agora, ele publicou “Du fanatisme, quand la religion est malade” [Do fanatismo, quando a religião está doente] (Ed. Du Cerf, 96 páginas), um breve ensaio no qual convida a dar espaço para a teologia onde o tema só é abordado através da psicologia e da sociologia. De fato, segundo esse membro do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo, onde ele mora, é confrontando o fanatismo com os seus erros teológicos que se poderá responder a ele.

 

Eis a entrevista.

 

Você deplora o fato de que o fanatismo religioso seja abordado apenas sob o ângulo da psicologia ou da sociologia, e nunca da teologia. Por que essa falha é problemática? 

Desde a época do Iluminismo, que colocou o conceito de fanatismo na praça pública, a abordagem dominante considera-o como a consequência de um excesso de religião. Logicamente, parece que, para curar esse excesso, a solução é falar o menos possível a respeito. Mas hoje podemos constatar que essa abordagem não funciona: reduzir o espaço do religioso não reduziu o fanatismo, porque o problema gerado por essa atitude é de não ouvir aquilo que os fanáticos têm a nos dizer. Em outras palavras, de não lidar religiosamente com a questão religiosa. Há, portanto, um erro de diagnóstico em não abordar o fanatismo como um erro religioso, mas simplesmente como um desvio social ou psicológico. Na minha opinião, o fanatismo não será combatido se não se levar em conta a religião, mas, pelo contrário, permitindo que os crentes vivam a sua vida espiritual dentro de um quadro religioso sadio.

 

Qual é o erro teológico que alimenta o fanatismo?  

Embora isto possa parecer paradoxal à primeira vista, acho que o principal erro teológico do fanatismo é não deixar espaço para a fé. Por trás da constante referência a Deus, há uma substituição de Deus por outros objetos, como o culto ou os mandamentos, que certamente fazem parte da prática religiosa, mas não são Deus. Esses objetos finitos e limitados, portanto, são considerados como absolutos e ilimitados, e este é um erro teológico bem conhecido sob o nome de idolatria. E esta é perigosa pelo fato de dar atributos divinos a coisas próximas a Deus. Mas, como Deus é infinito, essa infinitude é o antídoto: o crente que adora a Deus sabe que nunca poderá controlar Deus. O fanatismo, pelo contrário, substitui Deus por um objeto finito e crê que pode possuí-lo. 

 

 

Na sua opinião, essa exclusão da teologia é culpa de Voltaire, cuja definição de fanatismo expressada no seu “Dicionário filosófico” ainda nos permeia? 

Mais do que Voltaire e a sua definição de fanatismo, creio que foi Immanuel Kant quem desempenhou um papel importante nessa questão. No seu opúsculo “A religião nos limites da simples razão” (1793), o filósofo alemão aprofundou e estruturou essa intuição do Iluminismo segundo a qual as religiões devem se afastar do espaço público, colocando o problema não do lado da razão, mas tornando-o um objeto da moral. Assim considerada, a fé não deve mais ser discutida: deve ser simplesmente respeitada de modo incondicional. Excluindo assim a crença do âmbito das opiniões, Kant pretendia preservar a fé e pacificar a sociedade. Mas, na minha opinião, o problema de tal concepção é limitar o religioso ao âmbito da identidade. O fato é que, para vivermos juntos, devemos poder discutir serenamente as questões religiosas e não torná-las marcas identitárias indiscutíveis.

 

Então, o projeto do Iluminismo teria fracassado? 

Chegando depois das guerras religiosas, o humanismo do Iluminismo conseguiu trazer uma certa forma de pacificação. Nesse sentido, ele não errou. Mas acho que esse paradigma chegou ao seu limite, porque em parte se esgotou. Esses limites são o aparecimento do Islã como nova religião que os revelou, porque embaralhou novamente as cartas e nos obrigou a nos fazer novas perguntas. Então, observa-se que continuar reafirmando o paradigma do Iluminismo não funciona, porque evita enfrentar o elemento essencial do fanatismo religioso, que é o aspecto teológico que eu pretendo destacar no livro. Por exemplo, a saída da teologia do âmbito público a que o Iluminismo deu impulso funcionou historicamente, mas seria errado ver nisso uma panaceia: não é a solução definitiva.

 

Por que você prefere o termo “fanatismo” e não “integralismo”, “fundamentalismo” ou “extremismo”? 

A questão do léxico é fundamental. Não uso os termos “integralismo” e “fundamentalismo” porque eles remetem a realidades que não têm nada a ver uma com a outra. O integralismo é o nome assumido pela corrente do catolicismo que se considera integral e em rota de colisão com o mundo moderno, que se materializou com a rejeição do Concílio Vaticano II

Quanto ao fundamentalismo, ele designa a leitura literal da Bíblia, realizada por certas correntes protestantes estadunidenses. Em ambos os casos, os termos designam situações que tornariam a sua utilização imprecisa para definir outras realidades, como certas correntes do Islã. Para este último, o termo islamismo é ainda menos adequado: insere-se nele, grosso modo, tudo o que há de negativo nessa religião – portanto, é melhor falar das correntes existentes, como o jihadismo ou o salafismo. 

Uma vez distinguidos esses movimentos, constata-se que há um elemento comum, que são as formas rigoristas ou intransigentes dessas práticas. Para defini-las, eu não gosto de usar termos como “radicalismo” ou “extremismo”, porque eles deixam subentendido que ser um verdadeiro muçulmano equivaleria a ser semelhante ao ISIS. Em vez disso, viver a fé de forma radical não significa ir jogar bombas! Um cristianismo extremista ou radical pode ser o de São Francisco de Assis. Portanto, não me sinto confortável quando se usa um termo que coloca o argumento como um problema de excesso. A característica do fanatismo não é ir fundo nas coisas, mas desviá-las. Nesse sentido, parece-me que a palavra “fanatismo” é mais adequada para falar desse conjunto, sem confundir tudo.

 

Podemos colocar no mesmo plano a “absolutização” dos textos sagrados que você deplora, na medida em que, ao contrário da Bíblia, os muçulmanos consideram o Alcorão uma palavra divina? 

Não devemos esquecer que os elementos divergentes não existem apenas entre as religiões, mas também provêm de teologias dentro dessas crenças. O fanatismo, portanto, tem rostos diferentes subjacentes a diferentes teologias. Não há um fanatismo cristão ou um fanatismo muçulmano; o problema é mais complexo. Dito isso, a Bíblia é, para o cristão, um meio menos diretamente divino de alcançar a Deus do que o Alcorão para um muçulmano. Mas eu não acho que a teologia muçulmana clássica leva a idolatrar o Alcorão. Pelo contrário, desde o início, ela se defendeu desse perigo. O quarto califa e genro de Maomé, Ali, enfatizou que são os homens que fazem o Alcorão falar, e não Deus. Quanto a al-Achari, teólogo do século X que fundou uma das escolas mais ortodoxas do sunismo, ele afirmou que o Alcorão não é nem Deus nem outro em relação a Deus: assim, ele sublinha a sua qualidade divina, sem contudo identificá-lo com Deus. O Islã sempre alertou contra a ilusão de uma relação imediata com Deus através da leitura do Alcorão.

 

 

Que recursos esses textos sagrados oferecem ao crente para se proteger contra o fanatismo? 

A Bíblia e o Alcorão estão unidos na rejeição dos ídolos, que se encontra no primeiro dos Dez Mandamentos (“Não terás outro Deus além de mim”) e na profissão de fé muçulmana (“Não há outro deus senão Alá”). Mas esses textos evitam acima de tudo uma idolatria que consiste em se prostrar diante de estátuas, e isso não tem nada tem a ver com a idolatria que ensanguenta a nossa atualidade. 

O episódio do Êxodo em que os judeus começam a adorar um bezerro de ouro, no entanto, é repleto de ensinamentos: esses homens dirigem a sua adoração a um objeto finito, que podem manipular e do qual podem se apropriar, traduzindo uma tentação constante do coração humano. O trabalho dos crentes, portanto, consiste em se interrogar sobre o modo como tais mandamentos aparentemente simples nos permitem captar os perigos da idolatria. A ideia de que não há outro deus senão Alá nos toca no mais profundo do coração e nos interroga sobre o que significa “adorar a Deus”. Não se destruirá o fanatismo com uma política pública bem planejada, mas sim com essa conversão constante que nada mais é do que uma luta contra o pecado.

 

De que modo poderia ocorrer o retorno da teologia na nossa sociedade? 

Eu também, modestamente, tento fazer com que as mentalidades evoluam com contribuições como este livro, a fim de trazer a questão religiosa de volta ao âmbito da razão comum e de não a deixar mais no seu status de opinião pessoal que não pode ser discutida. Mas, para chegar a esse debate, o problema também deve ser sobre os meios para implementar isso. Desse ponto de vista, a escola infelizmente não me parece nada preparada para isso: é preciso deixar de fazer de conta que a religião não existe, que é o “credo” da escola laica republicana. 

No rastro do relatório sobre o ensino do fato religioso na escola, implementado por Régis Debray em 2002, o tema é atualmente abordado sob o ângulo de “fato religioso”, colocando unicamente o folclore em primeiro plano e ignorando o fato de haver um pensamento religioso. É preciso reafirmar que as religiões também trazem reflexões racionais e que, quando se formam mentes para o pensamento crítico, elas não podem ser excluídas do ensino. É preciso preparar os alunos para enfrentar e levar a sério os discursos teológicos.

 

 

Além da teologia, você também convida a dar um novo sentido à oração. Em que a oração ajuda o crente a lutar contra a tentação do fanatismo?

A oração, na vida espiritual, é o momento privilegiado para entrar em relação com Deus. Mas o que confunde imediatamente quem reza é que não se sabe rezar, que se faz aquilo que se pode, porque Deus é maior do que nós e não pode ser manipulado. Essa descoberta nos torna humildes e nos vacina contra a tentação de um fanatismo: não dominamos Deus, simplesmente busca-se falar com ele em silêncio. 

Para um cristão como eu, Cristo veio revelar que Deus nos ama infinitamente. E esse amor infinito e gratuito nos assusta. Por isso, buscam-se formas, ritos, para se proteger dessa vertigem. A oração deve permitir que nos voltemos à aceitação desse amor, que sejamos amados sem condições, enquanto muitas vezes preferimos nos apoderar das coisas com os nossos esforços, para que nos pertençam. Mas o amor humano ou divino não é possuído nem pode ser conservado como uma reserva. Aprender a ser amado, portanto, é aprender a não possuir: nesse sentido, é um exercício de pobreza. Mas isso traz vida, porque se renova todos os dias. O fanatismo, ligando-se infinitamente a objetos finitos, condena-se a morrer com eles.

 

 

Junto com a teologia e a oração, você acredita que o diálogo inter-religioso é uma das três soluções. Como ele pode ajudar? 

O diálogo inter-religioso entre dois crentes é uma experiência rara, porque só é possível quando existe uma amizade prévia. Quando dois crentes que se respeitam e se amam aceitam dialogar sobre algo tão íntimo como a fé, então ocorre um encontro profundo, e isso os torna infinitamente modestos. Isso implica não se considerar o representante da própria religião para falar em seu nome, mas agir como simples crente. Então, cada um falando da própria experiência de Deus, percebe-se que se tem diante de si um ser humano digno do máximo respeito. Esse diálogo entre crentes não requer nenhuma formação, senão a amizade. Oferece uma espoliação que leva à desapropriação de si mesmo, que é um dos remédios mais poderosos contra o fanatismo: assim deixamos de acreditar que somos donos de Deus.

 

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