“A pandemia expôs ainda mais que a instituição eclesial segue ancorada em linguagens, ideias e imagens do passado”. Entrevista com José Arregi

Missa transmitida da capela da escola São Felipe Neri, em Mandaluyong, Filipinas. Foto: Grig Montegrande | Inquirer

17 Abril 2020

“Que ponha a defesa efetiva dos pobres de toda a Terra, como faz o papa Francisco, acima de todo dogma, rito e norma moral, assuma um paradigma cultural, político e teológico integralmente ecológico e feminista, e aceite radicalmente o princípio da laicidade tanto na ordem sociopolítica como espiritual”. Nas palavras do teólogo José Arregi, a Igreja tem pela frente, depois do coronavírus, esta árdua tarefa, se aspira a deixar de ser uma instituição cujo “deslocamento social e cultural” é “evidente”.

Crítico do discurso “medieval de sempre”, Arregi reflete nesta entrevista sobre a urgência de reformar os códigos eclesiásticos e a teologia de fundo, provocando a aparição de uma Igreja que demonstre ser verdadeiramente samaritana.

A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 15-04-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Como a sociedade espanhola está percebendo a implicação da Igreja e o papel que está exercendo na pandemia? Está cumprindo sua função social?

Careço de dados sociológicos, porém minha impressão pessoal, desde Gipuzkoa, é que a Igreja institucional se sente mais distante ou ausente que nunca. Compreende-se, pois nenhuma instituição social estava preparada para essa situação, local e planetária, inédita, porém no caso da Igreja Católica, seu distanciamento social e cultural se torna muito mais evidente. Com contadíssimas exceções, a Igreja Católica acatou com civismo e responsabilidade as diretrizes administrativas sobre o confinamento – não poderia ser de outra forma –, porém creio que, no geral, revela-se incapaz de se fazer próxima e samaritana nesta situação, de se mostrar acessível, próxima, presente de outra maneira, de colocar luvas e máscaras e oferecer suas casas e seus meios materiais ou pessoais ao serviço dos mais vulneráveis, ou de pronunciar ao menos uma palavra humana, compreensível, de consolo e de alento tão necessários.

Por que não conseguiu como instituição visibilizar bem sua luta contra a pandemia e não pode, e nem tentou, quebrar o teto de vidro dos grandes meios de comunicação, especialmente as televisões?

A pandemia expôs ainda mais que a instituição eclesial segue ancorada em linguagens, ideias, imagens do passado. As eucaristias televisionadas nas Igrejas sem alma me parecem rituais de outro mundo. Quando os Estados estão recorrendo à geolocalização para o controle dos contágios – com o risco de que o controle acabe sendo tão perigoso quanto o contágio do vírus –, quando os cientistas recorrem à inteligência artificial para buscar a vacina da covid-19 – submetendo-se quase à força aos interesses de grandes farmacêuticas em uma corrida maluca para ganhar, a origem de todos os males –, quando o mundo inteiro está em suspense diante de um futuro que pode ser muito melhor ou muito pior que o que nos trouxe até aqui..., os bispos seguem animando a rezar por Deus pelo fim desta pandemia (que alguma vez acabará) e muitos teólogos seguem entornando o dilema de Epicuro (século IV a.C.): se Deus pode e não quer, ou se quer e não pode evitar esses sofrimentos... Enquanto seguir imaginando Deus como Ente Supremo pessoal à imagem humana, a Igreja seguirá confinada, cada vez mais longe desta sociedade, de suas angústias e alegrias.

Crês que a Igreja institucional fará parte do novo contrato social que parecer estar se tecendo?

Serão indispensáveis para isso duas condições. Em primeiro lugar: que ponha a defesa efetiva dos pobres de toda a Terra, como faz o papa Francisco, por cima de todo dogma, rito e norma moral, assuma um paradigma cultural, político e teológico integralmente ecológico e feminista, e aceite radicalmente o princípio da laicidade tanto na ordem sócio-política como espiritual. E, em segundo lugar: que esteja disposta a levar a cabo uma releitura da Bíblia e de toda tradição teológica, mais além de toda letra e de todo significado, uma reinterpretação a fundo de todos seus dogmas e categorias, e uma reforma absoluta do modelo clerical da Igreja. De outro modo, a Igreja institucional não será fermento, testemunha, companheira de caminho e comensal de Emaús... sem isso, a Igreja seguirá se fazendo cada vez mais estranha e alheia a essa sociedade, até se dissolver.

A crise do coronavírus está fazendo aflorar o lado religioso de muita gente, que estava escondido até agora? Os indiferentes religiosos voltarão ao catolicismo ou irão definitivamente em busca de novas espiritualidades?

Parece claro que o coronavírus faz com que sintamos em carne viva nossa fragilidade e vulnerabilidade, nossa finitude, nossa morte. De imediato, a humanidade, começando pelas maiores potências, encontra-se confinada, confrontada com seus medos, sua solidão, sua morte e a morte das pessoas queridas, em estado de conflito planetário, como nunca visto antes.

Porém, creio que seria um grande erro pensar que isso vai significar o recrudescimento das formas religiosas tradicionais e, concretamente, da Igreja Católica. É muito possível que muita gente redescubra a profunda necessidade de se olhar mais a fundo a si mesmo, à natureza que somos, ao céu estrelado, de submergir-se no Mistério do que é, de se reconciliar com suas feridas profundas, de reconhecer a necessidade e cuidado e de ternura, de reinventar a economia e a política, de recuperar a paz, o respiro, o alento a nível pessoal e estrutural, a nível econômico, político, planetário, de voltar a sentir que todos somos um e que somente juntos poderemos nos salvar. É muito possível que essa pandemia leve muita gente a redescobrir a necessidade da “espiritualidade” como profundidade da vida e de todo o real, porém não creio que, ao menos na imensa maioria, voltem a encontrar nas instituições religiosas tradicionais com seus dogmas, ritos e códigos.

O medo da morte que perpassa pela sociedade encontrou sentido, consolo e esperança na Igreja? Sem a possibilidade de realizar funerais, a Igreja perdeu o último rito de passagem que lhe restava?

Espero que a situação atual seja um parênteses e que possamos voltar a nos despedir de nossos mortos de maneira presencial e coletiva, seja em uma forma religiosa ou laica. Espero que voltem os funerais religiosos, porém gostaria que, depois do coronavírus, mude sua linguagem e seu marco arcaico, e nelas se dê o necessário às demandas e propostas (textos, gestos, palavra) das famílias “não crentes”, de modo que os distanciados da Igreja possam se sentir confortáveis nelas, recebam o consolo real, e a fronteira entre a “liturgia” (ação do povo) religiosa e leiga vá se diminuindo.

A internet se consagrou (depois de ser demonizada por muitos clérigos) como um grande meio de humanização e de evangelização?

Obrigado Internet! Sem ela, a pandemia teria sido uma catástrofe familiar, social, econômica... muito maior para todos. Sem ela, também as instituições religiosas teriam sentido muito mais. Porém, ao mesmo tempo, o coronavírus deveria ser uma ocasião para pararmos e pensar pausadamente sobre como utilizar a Internet muito mais sabiamente, uma ocasião para medir os riscos de passarmos o dia colados a uma tela ou à ameaça de um controle ditatorial de nossas vidas por parte dos Estados e dos grandes poderes desumanos. O mesmo vale para as instituições religiosas: muitos bispos utilizam massivamente as novas tecnologias para difundir a mesma mensagem “de sempre”, medieval, incompreensível. Quanto mais se difunde, mais negativo é seu efeito, mais cresce a distância entre o Evangelho e a cultura, mais descuida a Igreja de sua missão profética no mundo de hoje. É a hora de um grande discernimento por parte da Igreja institucional.

Como será a Igreja pós-coronavírus? Que características terá? Para que linhas apontará? Afetará as reformas do papa Francisco?

O coronavírus nos demonstrou, mais uma vez, que o futuro é imprevisível, e constitui um claro convite à cautela também a respeito do futuro concreto da Igreja. Em qualquer caso, essa pandemia poderia constituir um sinal dos tempos que chama a Igreja a dar um salto adiante histórico em uma dupla linha estritamente relacionada: uma chamada, em primeiro lugar a se converter pessoal e institucionalmente na Igreja dos pobres e para os pobres, dando prioridade absoluta à bem-aventurança e à libertação dos pobres respeitando a doutrina; um chamado, em segundo lugar, a reiventar radicalmente outro modelo não clerical-hierárquico-masculino da Igreja e, ao mesmo tempo, a renovar a fundo (não somente em linguagens e formas superficiais) toda a teologia (crenças, ritos, normas...).

O mais provável, me parece, é que a Igreja seja incapaz de responder a esse duplo e único desafio, e que, em consequência, a distância entre a Igreja e o mundo de hoje aumente e a crise da Igreja se acentue. O papa Francisco está sendo um profeta mundial de uma Igreja pobre e para os pobres, porém sua teologia segue sendo muito tradicional. Enquanto persista esse desajuste, a reforma necessária da Igreja me parece impossível.

Poderá seguir mantendo sua atual estrutura econômica, territorial e funcional?

A drástica redução numérica dos fiéis (que creio que acabará se estendendo a nível planetário) por um lado, e, por outro, a globalização da Internet exigem, efetivamente, que se repense todo o funcionamento e a organização da Igreja Católica (paróquias, dioceses, Vaticano, distinção entre clérigos-leigos, exclusão da mulher, sacramentos...). A pesadíssima maquinaria clerical, vertical e centralizada é insustentável. Porém não se trata tanto de “formas de organização”, mas sim de modelo de religião e de Igreja.

A pandemia despertou no laicato a consciência do seu ser “povo sacerdotal” e, portanto, a exigência de assumir ministérios ordenados?

Essa consciência vem de muito antes, porém é verdade que a pandemia e o confinamento a agudizam. E não se trata de que os “leigos” assumam “ministérios ordenados”, mas sim de superar a distinção entre leigos e clérigos (distinção criada pelos clérigos) e, portanto, entre “ministérios ordenados” e “ministérios não ordenados”, como se os primeiros emanassem de Cristo através de seu representante sagrado (o bispo) e os segundos fossem “mera delegação da comunidade”. Esse esquema já não tem sentido. Aprenderemos no confinamento? Um coronavírus terá que nos ensinar essa nova teologia?

A atual práxis sacramental terá que ser revisada, especialmente a eucaristia e a penitência?

Como entender que não podemos celebrar a memória sacramental de Jesus porque não podemos ir a uma igreja ou porque um “sacerdote ordenado” não possa vir à casa? Como seguir mantendo que não há “sacramento eucarístico” (que significa dar graças pela vida) se não há “transubstanciação” do pão e do vinho ou do que seja em “Corpo de Cristo”? Pois o que são o pão, o vinho e tudo o que é senão o corpo de Cristo, se soubermos olhá-los com os olhos do evangelho? E como entender que não somos perdoados se um sacerdote canonicamente ordenado não nos absolve? O que é o pecado senão o dano que fazemos a nós mesmos, e como curá-lo senão derramando um pouco de olho ungido uns sobre os outros, confinados em casa ou na rua ou nas instituições políticas e nas leis do mercado que terá que revisar quando passe essa pandemia, se não queremos que outra pandemia muito pior acabe com todos? O que é o perdão senão seguir cuidando a vida e confiando no outro? Não devem ser nossa palavra, nosso olhar e nossos gestos cotidianos o verdadeiro sacramento do perdão mútuo, “setenta vezes sete”, cada dia?

 

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