A poesia do Jesus de Pasolini. Entrevista especial com Faustino Teixeira

Enrique Irazoqui, o ator que viveu Cristo, e Pier Paolo Pasolini nos bastidores de O evangelho segundo São Mateus | Imagem: reprodução http://cineugenio.blogspot.com

Por: Graziela Wolfart | 06 Abril 2019

Ao conceder a entrevista a seguir para a IHU On-Line, por e-mail, o teólogo Faustino Teixeira defende que, enquanto “arte total”, o cinema atravessa as grandes questões do humano e da criação, envolvendo todos os sentidos. “Ele trata do vazio e da incomunicabilidade; da finitude, da dor e impermanência; das histórias de vida e das alegrias; dos sonhos e melancolias, das jornadas pessoais e autoconhecimento, da beleza e delicadezas da vida”. Ao comentar sobre o filme O Evangelho segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini, Faustino argumenta que “o fato de ser um ateu não retira de Pasolini o dom e a capacidade de retratar Jesus com profundidade e beleza. O resultado está aí, ao acesso de todos. Assim como a espiritualidade não é uma propriedade de quem é religioso, a capacidade de adentrar-se no coração de uma figura humana como Jesus não se reserva apenas aos que se declaram cristãos ou religiosos. Em alguns casos isso pode ser até um impedimento...”.

Ele continua descrevendo a obra em questão, ao afirmar: “fiel ao traço do neorrealismo italiano, essa obra de Pasolini traduz uma comovente simplicidade e, sobretudo, uma intenção precisa de retratar o caminho de Jesus sob o ponto de vista do evangelho de Mateus. Distanciando-se claramente das imagens idealizadas de Jesus, presentes em obras anteriores, Pasolini busca descrever um Jesus humano, profundamente humano, dotado de paixão, doçura e serenidade, mas também de revolta e ira”. E conclui: “acolhido por Mateus, o ateu Pasolini encontrou na figura de Jesus um ser humano marcado por ‘implacabilidade’, por um rigor ético absoluto, que não faz concessão alguma para levar adiante o seu projeto do Reino. Daí o seu propósito de levar às telas esse realismo do evangelho e a humanidade de Jesus, e de um Jesus radicado em seu povo”.

 

Faustino Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)

Faustino Teixeira é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. É doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Entre suas obras publicadas, destacamos Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu (São Paulo: Terceira Via, 2017) e Finitude e Mistério. Mística e Literatura Moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2014). Também organizou, entre outros, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e As orações da humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018), em parceria com Volney Berkenbrock.

* Entrevista publicada originalmente na edição 412, de 08-05-2017, da Revista IHU On-Line.

Nota de IHU On-Line: Hoje, 06 de abril de 2019, das 9h às 9h20min, é exibido e debatido o filme O evangelho segundo São Mateus,de Pier Paolo Pasolini, no campus da Unisinos Porto Alegre, na sala TEDU 809 e 810.

As atividades integram o Ciclo de Filmes Cinema, Cultura, Fé e Teologia, que faz parte da 16ª Páscoa do IHU.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância do cinema para a compreensão das principais questões do humano?

Faustino Teixeira – Sou um apaixonado pelo mundo da arte. Em particular pela música, a pintura, a literatura (sobretudo a poesia) e o cinema. É instigante ver como nasce a inspiração do artista. Um dos grandes pintores de Juiz de Fora, Dnar Rocha – falecido em 2006 –, dizia em depoimento ao Museu de Imagem e Som: “Criança, dormia no pasto observando as nuvens ou as acompanhava passar pelos buracos nas telhas quebradas do meu quarto. Nisto residia uma pequena emoção, muito sutil, que não sei definir a razão”. São essas emoções e sensações que provocam a irrupção artística. O artista sorve sua inspiração no sentimento do mundo. Como diz Arthur Rimbaud em poema: “Meu gosto agora se encerra em comer pedras e terra. Só me alimento de ar, de rochas, de carvão e ferro”.

Enquanto “arte total”, o cinema atravessa as grandes questões do humano e da criação, envolvendo todos os sentidos. Ele trata do vazio e da incomunicabilidade (Antonioni); da finitude, da dor e impermanência (Bergman); das histórias de vida e das alegrias (G.Tornatore); dos sonhos e melancolias (Fellini), das jornadas pessoais e autoconhecimento (Wim Wenders), da beleza e delicadezas da vida (Kurosawa, Yojiro Takita e Doris Dörrie). O cinema encanta, pois conjuga recursos para tocar as emoções, como é o caso de trilhas sonoras que se irmanam com perfeição para favorecer o maravilhamento: a memória resgata a presença do clarinete de Mozart em cena antológica do filme Amadeus, de Milos Forman; o adagietto de Mahler no filme Morte em Veneza (Luchino Visconti); a singela presença da música de Ennio Morricone em cenas inesquecíveis de Era uma vez na América (Sergio Leone) e a linda música de Ry Cooder que embala a delicadeza de Natassia Kinski no filme Paris Texas (Wim Wenders). Outros tantos exemplos poderiam ser aventados. Além das trilhas sonoras, temos também sequências fotográficas que ficam na memória, seja em preto e branco ou em cores. O cinema reúne tudo isso para nos apresentar o mundo com seus encantos e dores.

Como sublinha Manoel de Oliveira em seu poema cinematográfico: “Filmes, filmes, os melhores se assemelham aos grandes livros que por sua riqueza e profundidade dificilmente são penetráveis. O cinema não é fácil. Porque a vida é complexa e a arte indefinível, indefinível será a vida e a arte complicada”. Ao trazer para o espectador, “histórias de vida”, o cinema provoca emoções únicas e uma alegria imarcescível, como a do garoto Totó, em Cinema Paradiso (de Giuseppe Tornatore). Os filmes fascinam, porque trazem o canto das coisas em toda a sua intensidade e podem iluminar o presente, “com a inocência do passado”. Como aquele inesquecível e singelo garoto siciliano retratado por Tornatore, que com sua “lanterna mágica nas mãos” jorra vida por todos os lados, com uma cativante alegria, fazendo estourar na mente, como bolhas de champanhe, a bela diafania do Mistério no Tempo.

IHU On-Line – O que caracteriza o olhar contemporâneo para as obras cinematográficas que abordam as questões de crença e fé?

Faustino Teixeira – Os temas da espiritualidade e da religiosidade estão muito presentes no cinema contemporâneo, seja de forma explícita ou implícita. Veja o exemplo de um documentário como Baraka, de Ron Frick (1992), filmado em 23 países, incluindo o Brasil, e que aborda de forma extraordinária a diversidade espiritual do planeta. Há também os recentes sucessos de bilheteria, como O grande silêncio (Philipe Gröning) e Homens e deuses (Xavier Beauvois). Dentre os temas religiosos, a abordagem de Jesus de Nazaré ou outros tramas evangélicos estão aí presentes, e não apenas nos registros cinematográficos, mas também na literatura: José Saramago, Norman Mailer, Anthony Burgess, Nikos Kazantzakis, Gore Vidal e outros. Em âmbito cinematográfico temos o Jesus de Zefirelli (1977) e a narrativa polêmica, Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard (1985). Abordar a saga de Jesus de Nazaré foi sempre algo intencionado por grandes diretores, e mesmo Chaplin e Orson Welles planejaram, sem sucesso, tratar cinematograficamente suas versões da vida de Jesus.

IHU On-Line – O que marca o olhar de Pasolini – um ateu – sobre Jesus?

Faustino Teixeira – O fato de ser um ateu não retira de Pasolini o dom e a capacidade de retratar Jesus com profundidade e beleza. O resultado está aí, ao acesso de todos. Assim como a espiritualidade não é uma propriedade de quem é religioso, a capacidade de adentrar-se no coração de uma figura humana como Jesus não se reserva apenas aos que se declaram cristãos ou religiosos. Em alguns casos isso pode ser até um impedimento... Grandes cineastas, como Luis Buñuel, abordaram temas religiosos com grande sensibilidade, como em A via láctea (ou o estranho caminho de São Tiago – 1969).

O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini é uma das obras clássicas do cineasta italiano, produzido em 1964 e filmado, sobretudo, no distrito italiano de Basilicata. A região, que na época vinha marcada por pobreza e desolação, servia plenamente às intenções do cineasta de reproduzir com afinco o tempo de Jesus. Fiel ao traço do neorrealismo italiano, essa obra de Pasolini traduz uma comovente simplicidade e, sobretudo, uma intenção precisa de retratar o caminho de Jesus sob o ponto de vista do evangelho de Mateus. Distanciando-se claramente das imagens idealizadas de Jesus, presentes em obras anteriores, Pasolini busca descrever um Jesus humano, profundamente humano, dotado de paixão, doçura e serenidade, mas também de revolta e ira. Dirá Pasolini que uma frase de Cristo que é chave para compreender seu filme é: “Não vim trazer paz, mas espada” (Mt 10,34). Rompe-se com a imagem tradicional de um Jesus Cristo star, dos cabelos longos e loiros, que tangencia a história no seu esplendor extra-humano. Para o papel do personagem, escolheu um catalão, Enrique Irazoqui, que quebra nitidamente a dinâmica iconográfrica estabelecida. Sua figura impressiona, apresentando-nos um Jesus magro, rude, de ombros recurvados, fartas sobrancelhas pretas, pele bem morena e cabelos curtos. Um Jesus, cujo olhar profundo permanece vivo na lembrança dos que assistiram ao filme. O toque da fotografia, dos cenários mínimos e enquadramentos simples, com muitas filmagens em primeiro plano, contribuem para marcar essa presença viva e profética de um Jesus derradeiramente humano. Esse artista espanhol que interpretou Jesus tinha inaugurado com o filme o seu trabalho de representação, assim como todo o elenco, composto por pessoas do povo.

Sem uma preocupação muito incisiva de “reconstituição histórica”, Pasolini optou por deixar falar as imagens, com os personagens comuns, “protegidos pela neutralidade”, portadores de uma naturalidade comovente, favorecendo ao espectador sensações novidadeiras e emoções genuínas. Impressiona também a figura singular de Maria, de olhar terno e sereno, e com sua bela imagem o filme se inicia. Contagiante o seu olhar de acolhida e aconchego. Para representar a personagem, em seus dois tempos, Pasolini convidou Marguerita Carusa (para a jovem Maria) e Susana Pasolini (mãe do diretor – que representou Maria aos pés da Cruz). A jovem e rural Maria, de Pasolini, é bem diferente da moderna Maria de Godard, uma mulher da cidade, filha de um frentista e jogadora de basquete. Contribui igualmente para aclimatar a história, uma trilha sonora solene, com peças de Bach, Mozart, Prokofiev e Webern.

IHU On-Line – Um Jesus radicalmente humano?

Faustino Teixeira – Sim, um Jesus que vive e participa das tramas de nossa “aldeia” humana, e que enquanto demasiadamente humano traduz para nós as marcas do divino. E Pasolini quis apresentar esse Jesus, passo a passo, acompanhando de perto sua jornada pessoal, sob a guia do olhar de Mateus. O diretor preferiu não usar roteiro, optando por seguir a descrição de Mateus, página por página. Privilegia os grandes discursos de Jesus, que é um traço peculiar do evangelista, e em particular o Sermão da Montanha, que é a “composição mais grandiosa de Mateus” (R. Brown), visando apresentar o ensinamento ético e religioso do grande profeta de Nazaré. Um dos bons momentos do filme, emocionante, ocorre justamente na passagem das Bem Aventuranças, com o enquadramento do rosto de Jesus em primeiro plano. Quando há distanciamento do texto literário de Mateus é para poder acentuar ainda mais o lado humano dos personagens, o conflito de cada um, como no caso do acréscimo dos dramas humanos de André e Maria. Diferentemente do filme de Mel Gibson sobre Jesus – rodado quarenta anos depois, nas mesmas locações – onde todo o acento vem dado no sofrimento de Jesus, a obra de Pasolini privilegia seus ensinamentos, o poder de suas palavras. Não se apaga ou nega a dor de Jesus, o sofrimento de sua paixão, mas esse processo vem descrito sem tanto sangue, mas guardando integralmente sua realidade e crueza.

IHU On-Line – Em que medida se dá, nesse filme, uma “poetização do real”?

Faustino Teixeira – Pasolini relata que quis com esse filme fazer poesia. Sublinha em depoimento de 1985, num debate sobre o ciclo dos anos 1960, que o que pretendeu fazer no filme foi uma “obra de poesia” e não uma obra religiosa ou ideológica, no sentido comum que tais termos evocam. E acrescenta: “Em palavras simples: eu não acredito que Cristo seja filho de Deus, porque não sou crente – pelo menos conscientemente. Mas acredito que Cristo seja divino: isto é, creio que nele a humanidade é uma coisa tão elevada, tão rigorosa e ideal que ultrapassa os termos comuns da humanidade. Por isso falo em ‘poesia’: instrumento irracional para exprimir este meu sentimento irracional por Cristo”. Convidado por João XXIII para participar de um encontro com artistas em Assis, em 1962, Pasolini deparou-se no quarto de seu hotel com um exemplar do evangelho de Mateus e, encantado, fez toda a leitura do texto e ali mesmo teve a ideia de fazer um filme sobre o tema.

Acolhido por Mateus, o ateu Pasolini encontrou na figura de Jesus um ser humano marcado por “implacabilidade”, por um rigor ético absoluto, que não faz concessão alguma para levar adiante o seu projeto do Reino. Daí o seu propósito de levar às telas esse realismo do evangelho e a humanidade de Jesus, e de um Jesus radicado em seu povo. Não precisou acrescentar muita coisa, apenas deixar o Jesus de Mateus falar, passo a passo, traduzindo-o fielmente em imagens vivas. E o resultado foi fabuloso: uma das obras mais belas e poéticas sobre Jesus de Nazaré. O filme, produzido em 1964, recebeu três indicações para o Oscar e ganhou o prêmio especial do júri no Festival de Veneza, bem como o prêmio do Office Catholique International du Cinéma. De forma muito singela, na abertura dos créditos, o filme vem dedicado ao “querido”, “alegre” e “familiar” João XXIII, o grande papa que provocou o início da abertura da Igreja aos tempos modernos. E esta dedicatória foi motivo de efusivos aplausos dos cardeais católicos que assistiram ao lançamento do filme no cine Ariston, em Roma, em 1964.

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