A ''verdadeira'' Teresa de Lisieux e as cartas manipuladas

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12 Novembro 2012

A devoção popular se lembra dela como a "pequena santa"¸ a santa menina, identificada com "a infância espiritual" do Evangelho de Mateus: "Se vocês não se tornarem como crianças, não entrarão no reino dos céus". Porém, ela, Thérèse Françoise Marie Martin, mais conhecida como Teresa do Menino Jesus, que morreu no Carmelo de Lisieux com apenas 24 anos em setembro de 1897 e foi canonizada por Pio XI em 1925, nos seus escritos originais, nunca usou a expressão "infância espiritual" e, embora citando quase mil vezes os textos da Sagrada Escritura, nunca citou esse texto de São Mateus.

A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 09-11-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O livro Teresa di Lisieux, il fascino della santità. I segreti di una “dottrina” ritrovata (Ed. Lindau, 616 páginas, nas livrarias italianas a partir do 15 de novembro) é uma contribuição à clareza histórica, mas sobretudo à redescoberta da autêntica Teresa. Escrito por Gianni Gennari, profundo conhecedor da santa francesa, o livro também traz o texto traduzido direta e escrupulosamente dos originais dos Manuscritos, que passaram à história com o nome que lhes foi dado pelas Irmãs de Teresa, História de uma alma.

A partir do livro, surge de modo claro o fato de que a doutrina da "infância espiritual" era desde sempre a da família Martin, dos pais e, principalmente, das irmãs de Teresa, que foram discípulas e filhas espirituais do padre jesuíta Almire Pichon, que, no entanto, nunca foi diretor espiritual nem confessor de Teresa. As suas irmãs viam-na como a perfeita realização da espiritualidade que lhes foi apresentada pelo douto jesuíta, mas Teresa havia escrito várias vezes, explicitamente, que o seu "Diretor" era Jesus, e somente Jesus.

Assim, escreve Gennari, durante 50 anos, as próprias irmãs Teresa "levaram todos, incluindo papas, a ver nela uma perfeita realização do ensinamento espiritual do seu diretor, a 'infância espiritual'". E o fizeram não só na divulgação devocional, na apresentação dos escritos de Teresa, muitas vezes mudados para esse fim, mas também nos testemunhos aos processos canônicos e na correspondência que tiveram com a Santa Sé para a preparação dos discursos de Bento XV e de Pio XI, para os quais foram usados os escritos da irmã Celina, enviados especialmente para a Santa Sé.

A esse respeito, Gennari cita uma carta de Pauline, até agora esquecida no seu significado de fundo. A irmã mais velha de Teresa, a "Pequena Mãe" e, depois, no convento, sua priora, dez dias antes que Teresa entrasse no Carmelo, lhe escreve que sim, ela certamente deverá ser "uma santa, mas uma PEQUENA santa", com maiúscula no manuscrito original. Era, e continua sendo, um pista "única, mas falsa", explica o autor, à qual todos convergiriam durante décadas, interpretando todos os textos de Teresa e também escondendo, embora de boa-fé, alguns dos mais significativos.

Gianni Gennari pôde conhecer pessoalmente o verdadeiro primeiro protagonista desse fato histórico, o padre André Combes, estudioso de espiritualidade, depois professor na Sorbonne e na Lateranense, que em 1946 se mudou para Lisieux para estudar os textos de Teresa e foi acolhido justamente pela irmã da santa, Madre Inês, como capelão do mesmo Carmelo. Em quatro anos de trabalho intenso, no entanto, ele descobriu as adulterações dos textos e pediu que fossem alteradas para restituir aos fiéis e aos estudiosos o que realmente Teresa escreveu. Mas quando propôs a publicação na íntegra dos "Manuscritos", nos quais se descobririam nada menos do que sete intervenções e correções da própria Madre Inês, em junho de 1950, por ordem de um visitador apostólico, ele seria "expulso" do Carmelo e de Lisieux.

Dentre outras coisas, a irmã de Teresa, Madre Inês, na mesma circunstância, talvez porque começava a compreender as razões de Combes, embora tendo sido nomeada de forma vitalícia por Pio XI, foi de fato deposta, e a priora que a sucedeu, com a chegada a Lisieux de um novo visitador apostólico, que pediu para ver todos os documentos originais, em uma noite no fim de 1951, faria queimar o Petit Carnet, isto é, o texto mais antigo dos Novissima Verba, porque nele não estava contida, como na boca de Teresa, a identificação da sua "pequena via", e portanto da sua "doutrina" com a infância espiritual. A mudança havia sido introduzida no texto, como pronunciado no dia 17 de julho de 1897, depois de nada menos do que 13 anos, por volta de 1910.

Portanto, deve-se a essa manipulação a imagem não correspondente à realidade divulgada como a via de Teresa e se compreende, então, por que Pio XI, que gostava e canonizou Teresa, quando, em 1932, lhe foi proposta a nomeação de Teresa a Doutora da Igreja, reagiu negativamente e com dureza, confirmada e reforçada pelo seu sucessor, Pio XII.

“Irmã universal”

Pois bem, com a expulsão de Combes de Lisieux, pouco a pouco se entendeu que o pedido de publicar os textos autênticos era justo, e a partir de 1956 começou a obra de recuperação, quando possível, dos originais de Teresa... Um caminho longo que lentamente faz surgir as linhas de uma verdadeira doutrina original e nova. Combes, e depois outros grandes teólogos como von Balthasar e Laurentin, mostram o verdadeiro rosto de Teresa, e assim, em 1997, chegaria a decisão de João Paulo II que a proclamou Doutora da Igreja (a terceira mulher a receber esse título depois de Catarina de Sena e de Teresa de Ávila). Esse evento pode-se dizer concluído com um discurso do papa teólogo Bento XVI, que, no dia 6 de abril de 2011, descreve aos fiéis a doutrina autêntica da Santa de Lisieux e a chama de "guia sobretudo dos teólogos".

Esse é o discurso do papa que levou o autor do livro a retomar nas mãos toda a história e a publicar o livro, dedicado explicitamente a Bento XVI e à memória do padre Combes. A partir da abundante documentação contida no livro de Gennari, emerge a redescoberta da verdadeira doutrina de Teresa. Não é, portanto, a "infância espiritual" em sentido minimalista que tem a criança como modelo, mas o modelo único é o Enfant de Dieu, Jesus filho de Deus, que pela graça "diviniza" a criatura humana com a invasão do amor do seu Espírito, transformando pela graça em si mesmo, como Teresa havia escrito explicitamente em uma carta a Celina: "Somos chamadas a nos tornar nós mesmas divinas (devenir des Dieux nous-memes)". Segue-se daí que amar a Deus e amar o próximo se torna um amor único, em que o modelo é o próprio amor que é Deus, a chama do Espírito Santo que transforma a criatura e a torna uma coisa só consigo pela graça.

Dos textos, surge uma proximidade muito singular de Teresa como "irmã universal" aos que sofrem, aos pecadores, aos distantes, aos não crentes, aos desesperados e aos que são tentados ao suicídio, e uma paixão missionária que a leva além de todas as fronteiras. Se ela não tivesse morrido tão jovem, a sua vontade, escreveu, era de ir a um Carmelo em Hanói, no Vietnã, colônia francesa à época. Singular também, a partir dos textos originais, era um um interesse profundo de Teresa pela vida e pela santidade dos padres, mesmo aqueles que se afastaram da Igreja.

O livro é, portanto, uma summa completa para quem quer se aproximar da figura da santa e, para além dos textos originais, da documentação completa do penoso fato histórico dos escritos, contém também todos os discursos dos papas sobre Teresa de Lisieux, com a sua posterior correção de rota e uma breve biografia do padre André Combes, que morreu em 1969.

Finalmente, em um breve, mas significativo posfácio, o autor relata a origem do seu primeiro encontro juvenil com os textos de Teresa ocorrido em circunstâncias dramáticas, depois de um coma profundo que durou oito meses. Para Gennari, vista na sua verdade recuperada, a doutrina de Teresa "é mais do que nunca necessária neste terceiro milênio" e "parece ser a resposta providencial de Deus das névoas dos mestres da suspeita" contemporâneos à santa, como "Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud sobretudo", testemunhando que "o humanismo da revelação cristã é o oposto da humilhação do ser humano e anuncia a oferta, à sua liberdade, da divinização e transformação na eternidade vivida já no tempo do dom da vida" .

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