10 Setembro 2018
O Vaticano também produz um dossiê. Jorge Mario Bergoglio ordenou uma investigação interna para reconstruir a cadeia de comando que permitiu que o ex-cardeal Theodore Edgar McCarrick, abusador em série, agisse imperturbado e abusasse de jovens seminaristas por mais de vinte anos. Com isso, o Papa pretende responder ao relatório com pedido de renúncia incluído - por suposto acobertamento de McCarrick - assinado por Carlo Maria Viganò, ex-núncio apostólico em Washington. Francisco optou pelo silêncio sobre Viganò para planejar – e a Santa Sé confirma - uma sólida reação com documentos, datas, nomes, que se reserva o direito de usar em público e, especialmente, no Vaticano. “Todo dia explode uma bomba que desorienta os fiéis. Aqueles que detestam o papa já estão à obra para a sucessão”, relata um colaborador de Francisco.
A reportagem é de Carlo Tecce, publicada por Il Fatto Quotidiano, 09-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em volta de São Pedro dançam inimigos, novas levas de antigos personagens, circulam documentos ‘fajutos’, falsas indiscrições embebidas de veneno. Não é apenas Viganò. E depois tem o viés, cada vez mais purulento, dos escândalos sexuais e dos pedófilos de batina que o Vaticano nunca tratou. O pontificado de Bergoglio está na corda bamba: ou retoma o prumo ou cai de vez. Com a ajuda de várias fontes, aqui está um resumo de todo o caso.
Carlo Maria Viganò é um arcebispo aposentado, "embaixador" nos EUA por sete anos, até 2016. Viganò foi afastado do cargo de chefe do Governo geral, no outono de 2011, por desavenças com o então poderoso Tarcisio Bertone, secretário de Estado de Joseph Ratzinger. Ele denunciou corrupção e má-fé em várias cartas que provocaram o Vatileaks e corroeram a liderança do pontífice alemão. Era considerado um moralizador. Até que foi obrigado a voltar mais cedo dos Estados Unidos e logo se posicionou ao lado dos críticos de Francisco. Viganò compilou um memorial - divulgado pelo jornal La Verità que envolve os dois papas vivos, 38 cardeais e bispos e isenta João Paulo II - para desvendar a conspiração de silêncio do Vaticano a respeito de McCarrick, ex-arcebispo de Washington.
O monsenhor relata as sanções secretas, porém não exaustivas, de Ratzinger contra o norte-americano, os avisos aos cardeal Bertone e William Levada (na época no Santo Ofício), as conversas infrutíferas com o próprio Francisco. Os seguidores de Bergoglio aventaram razões para uma vingança de Viganò: o Papa o afastou muito rapidamente dos EUA, não o premiou com o barrete de cardeal, não lhe concedeu o apartamento no Vaticano que o ex-núncio manteve por muito tempo, mesmo a distância. Respostas desarticuladas e prejudiciais: desacreditar aquele que acusa, não reduz o valor das acusações. Pelo menos, agora já não é mais suficiente. Porque os bispos italianos, europeus e estadunidenses - as sentinelas de Francisco em uma igreja dividida pela tradição e exposta a perigos cismáticos - percebem um desconforto considerável entre os fiéis e temem um declínio da popularidade do Bergoglio. Por exemplo, o tema dos abusos sexuais - ligado a Viganò - será discutido no próximo conselho permanente dos bispos italianos. No Vaticano, estão cientes que o passado de McCarrick ofuscou o ainda mais perturbador passado de seis dioceses da Pensilvânia. Os magistrados do estado norte-americano divulgaram um relatório de 1.300 páginas – que se refere a um período de setenta anos - que identifica 301 padres predadores e (até o momento) 1.000 vítimas menores de idade, adolescentes e crianças abusadas na paróquia. O Vaticano, inclusive para o promotor Josh Shapiro, acobertou o escândalo. Quanto ao idoso McCarrick (de 1930), ao contrário, o Papa Francisco reivindica a expulsão do colégio cardinalício desde julho passado e a obrigação de retirar-se para a vida privada sem aguardar o processo canônico. Um precedente único para a Igreja.
Os bergoglianos descobriram que a secretaria de Estado tinha sido informada sobre a conduta de McCarrick desde o ano 2000, que a Cúria ignorou as suspeitas recebidas com assiduidade dos Estados Unidos, que as providências de Ratzinger não eram sanções, que o núncio Viganò encontrou várias vezes o ex-cardeal exibindo cordialidade. Notícias que absolvem Francisco, já divulgadas no circuito midiático. Ao contrário, oscila o cargo de Donald Wuerl, cardeal e arcebispo de Washington e, portanto, herdeiro de McCarrick. No exame do grupo composto por aqueles que sabiam e talvez tenham silenciado, também por questões logísticas, está David Joseph Farrell. O prefeito do dicastério para a família - do qual já tratou o Fatto - era o bispo auxiliar e co-inquilino de McCarrick.
O tema da pedofilia na Igreja é demasiado sério e grave para ignorar o "comunicado" – assim é definido com desdém – de Viganò, mas para o Vaticano a figura do ex-núncio esconde as manobras de quem combate, dia após dia, contra o Papa Francisco. O indício mais angustiante para a Santa Sé vem dos Estados Unidos e do apoio organizado - cerca de trinta bispos, sob a direção do Cardeal Raymond Burke – ao relatório de Viganò.
O sínodo sobre os "divorciados" - e a exortação Amoris Laetitia - abalou profundamente a Igreja e, de forma sumária e, portanto, errada, dividiu-a em duas partes: reformistas e conservadores. Estes últimos entre laicos e religiosos recrutam aliados em todo o mundo: desde os três bispos do Cazaquistão ao banqueiro Ettore Gotti Tedeschi, ex-presidente do IOR de Ratzinger, que foi "expulso" do Vaticano de Bertone porque professava transparência das contas. Gotti Tedeschi escreveu recentemente um livro com o ministro Lorenzo Fontana – La culla vuota della civiltà (O berço vazio da civilização, em tradução livre) - com prefácio de Matteo Salvini.
Protagonistas mais ou menos voluntários do Vatileaks e do período que levou Ratzinger a demitir-se, voltam aos holofotes e retornam Julian Herranz, Jozef Tomko e Salvatore De Giorgi, os três cardeais - escolhidos por Ratzinger - que conduziram uma investigação sobre os podres no Vaticano. As numerosas pastas, confiadas por Ratzinger a Francisco no encontro em Castel Gandolfo na passagem do cargo, estão sob custódia militar no Vaticano. Já influenciaram um Conclave. Aquele que elegeu Bergoglio. Hoje está reaberta a caça à pasta - útil também como sugestão - por que alguém espera em breve uma reunião dos cardeais na Capela Sistina? Na dúvida, o Papa Francisco encomenda seu dossiê.
Leia mais
- Theodore McCarrick: de presbítero a cardeal em 20 anos. Mas o que a Santa Sé sabia do seu passado?
- EUA. Igreja da Pensilvânia encobriu mais de 1.000 abusos contra crianças nas últimas décadas
- Ex-núncio nos EUA, Viganò: ''O papa deve renunciar''
- Fatos e omissões do dossiê Viganò contra o Papa Francisco
- Quem é o arcebispo Carlo Maria Viganò?
- Por que o Papa não se defende?
- A Hostilidade desenfreada pelos críticos do Papa Francisco ao Concílio Vaticano II
- A inquisição ressuscita na Igreja estadunidense
- ''A Cúria não esquece. Um anti-Francisco chegará.'' Entrevista com Vito Mancuso
- A história das acusações bombásticas contra o papa fica mais surreal a cada minuto
- O dossiê contra o papa e a crise da Igreja estadunidense: nem Wojtyla nem Ratzinger escapam
- O Vaticano sob um golpe hollywoodiano
- A guerra suja volta ao Vaticano
- Caso Viganò: quem quer atacar o Papa Francisco? Entrevista com Andrea Tornielli
- Dossiê pouco convincente, mas é necessária uma réplica. Nos EUA é apenas o começo, pois as gavetas precisam ser esvaziadas. Entrevista com Thomas Reese
- Quem está por trás da manobra contra Francisco. Artigo de Alberto Melloni
- Sítio divulga lista de cardeais que apoiam Viganò
- A Igreja e o dossiê dos venenos. Assim o Papa deixa que os fatos falem na longa batalha dos abusos
- EUA. Igreja da Pensilvânia encobriu mais de 1.000 abusos contra crianças nas últimas décadas
- O Cazaquistão "bastião da fé", mas os católicos são apenas um por cento
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Agora Francisco ordena um dossiê contra as ‘bombas inimigas’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU