O que esconde a divergência entre Bergoglio e o cardeal O’Malley? Entrevista com Alberto Melloni

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24 Janeiro 2018

Durante a sua viagem ao Chile e ao Peru, o Papa Francisco, ao responder às perguntas dos jornalistas sobre o “caso” do bispo de Osorno, Juan Barros, acusado de ter encoberto os crimes de pedofilia do padre Fernando Karadima – importante figura de religioso carismático e formador de grande parte do clero chileno, condenado em 2011 pelo Vaticano a seguir uma “vida de oração e penitência” – saiu abertamente em defesa do prelado espanhol.

A reportagem é de Francesco Gnagni Porpora, publicada por Formiche, 23-01-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

“No dia em que me trouxerem evidências contra o bispo Barros, eu falarei. Não há uma única evidência contra ele. Isso é calúnia. Está claro?”, disse Bergoglio aos microfones dos enviados.

O caso anima o debate no Chile há diversos anos e, nos últimos dias, coincidindo com a visita de Bergoglio, deu origem a manifestações de rua e a críticas incendiárias contra Barros.

O arcebispo de Boston, Sean Patrick O’Malley, cardeal franciscano e presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, logo após as palavras de Francisco, divulgou uma nota que parecia ser particularmente crítica em relação às palavras do pontífice, em que afirmou que “é compreensível” que as declarações do papa sejam fonte de “grande dor para os sobreviventes”. E que determinados posicionamentos podem dar a impressão de um “abandono” em relação “àqueles que sofreram repreensíveis violações criminosas da sua dignidade humana”, o que “relega os sobreviventes a um exílio de descrédito”.

Na volta da viagem apostólica, falando com os jornalistas, como costuma fazer, Francisco pediu desculpas pelas palavras utilizadas, caso estas tenham ferido alguma vítima, reiterando substancialmente, porém, sua posição.

“A palavra ‘prova’ não era a melhor, eu diria ‘evidência’. O caso Barros foi estudado, foi re-estudado, e não há evidência para condená-lo. E, se eu condenasse sem evidência ou sem certeza moral, cometeria eu um crime de mau juiz”, disse Bergoglio.

Formiche.net falou sobre esse caso, antes da coletiva de imprensa do pontífice no avião, com o historiador do cristianismo Alberto Melloni, reitor da Fundação para as Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha e colunista do jornal La Repubblica.

Nota de IHU On-Line: Logo após a entrevista do Papa Francisco na viagem voltando do Chile e Peru, Alberto Melloni gravou uma entrevista que pode ser vista, em italiano, clicando aqui.

Eis a entrevista.

Já era amplamente esperado que o “caso Barros” seria objeto de discussão durante a viagem do papa. Mas que ele criaria atritos internos no Vaticano, e nesses termos, era muito menos previsível. Professor, pode nos explicar o que está acontecendo?

Eu não daria um peso tão grande à declaração de O’Malley, porque ele disse que não conhece o caso Barros. Ao mesmo tempo, porém, ele lembrou um princípio importante, sobre o qual me parece que o papa deu provas do seu consentimento de modo muito claro. Ou seja, a linha compartilhada sobre o fato de que, nos casos de estupros cometidos pelo clero, deve valer não o “favor rei” mas o “favor victimae”.

Nesse caso específico, o papa não pensa que se trata de uma questão de “favor rei”, mas simplesmente de calúnia. Ou seja, ele está convencido de que houve uma orquestração caluniosa contra um bispo, Barros, e que, portanto, não há uma questão de vítimas não ouvidas, mas de calúnias. Enquanto as acusações contra Barros dizem que, tendo ele sido colaborador de um padre estuprador pervertido, não teria feito o suficiente para desmascará-lo, ou talvez até soubesse e não agiu.

Mas as associações das vítimas dizem até que Barros estava presente no momento do estupro. A imagem é bastante forte.

Seria um caso bastante singular, porque, geralmente, quem está presente em um caso de estupro é um estuprador. Eu absolutamente não tenho ideia se Barros é culpado ou não, mas não estamos falando de uma vítima que acusa alguém, mas das vítimas de um homem a quem muitos na Igreja chilena estavam ligados. O papa considera a acusação de Barros como caluniosa: não é uma mudança de linha, ou uma renúncia a agir para combater os estupros perpetrados pelo clero.

Ao contrário, finalmente está se desfazendo um nó: antigamente, se você queria destruir uma pessoa consagrada ou in sacris e a acusava de heresia, você a condenava. Hoje, em vez disso, a acusação de estar envolvido em casos de estupros de meninos e de meninas pode ter o mesmo tipo de efeito, tanto quanto é justo que a Igreja seja inflexível ao tratar como filhos as vítimas, ao escutá-las, ao tentar fazer-lhes justiça e ao impedir a propagação desse crime masculino tão vasto e tão difuso, longe de estar apenas no âmbito clerical. Porém, parece-me igualmente correto pensar que possam existir inocentes acusados.

Então, o papa está evidentemente persuadido da inocência de Barros, até porque ele foi nomeado pelo próprio pontífice em 2015, quando as acusações já haviam sido todas formuladas.

Sim. A única coisa, porém, de que eu não sei nada diz respeito a algumas palavras que Francisco expressou durante uma audiência, que mostram como o papa está convencido de que Barros foi julgado e absolvido em um inquérito judicial que, no entanto, de fato, não existiu.

A investigação entrou em prescrição, apesar de o procurador ter acolhido a reconstrução das vítimas. Então, o papa poderia ter feito um erro de avaliação?

Pode ser que o papa foi informado de um inquérito judicial resolvido em absolvição, mas do qual não há confirmação. Eu não conheço o caso a partir de dentro, mas me parece legítimo pensar que, mesmo que o papa tenha uma convicção, esta não pode ser usada para dizer que houve uma mudança de linha. Até porque Francisco trouxe elementos importantes e decisivos para esse caso. Como o fato de que a questão não é absolutamente do clero pedófilo, mas também de bispos pusilânimes, isto é, de bispos que consideravam os padres como filhos e as vítimas como enteados.

Isso também ficou claro pelo fato de que, em Santiago, o papa se encontrou com as vítimas dos abusos, e o próprio O’Malley é indicado como uma figura muito próxima do papa, também por causa dos cargos que lhe foram confiados. Portanto, essa contraposição foi inesperada. Pareceu-me que, desta vez, o papa deu um pequeno passo atrás, e a Igreja, um pequeno passo à frente, reequilibrando, desse modo, o fato de que muita confiança, sobre essa questão, é geralmente posta no papa e muito menos, ao contrário, na Igreja.

De fato, não se resolve a questão do clero pedófilo com o papado e ela foi sobrecarregada com uma ilusão eclesiológica papista quando foi retirada das Conferências Episcopais e confiada ao ex-Santo Ofício contra elas mesmas, com a ideia de que um tribunal central julgaria melhor. Enquanto isso, ao contrário, justamente um tribunal central, mesmo aplicando o princípio do “favor rei”, que é um princípio jurídico sacrossanto, gerou a grande quantidade de problemas e confusões. Portanto, não se resolve a questão esperando que o papa faça ou não declarações de tolerância, mas com o mecanismo da escolha dos bispos, dos quais o único requisito exigido no passado era uma certa condescendência de marca vagamente conservadora, e, depois, quanto ao restante, que se virassem.

Muitos deles, por sua vez, não conseguiam ser bispos, isto é, conhecer seus filhos e filhas estuprados, enquanto o bispo deve ser um pai para os estuprados. Não é o prefeito de Nova York que deve controlar o Central Park à noite. Mas ele é alguém que, se não se comporta como um pai em relação às vítimas, abre mão de suas tarefas. Eu não sei se, sobre Barros, o papa tem razão ou não, mas que não se transforme o caso em uma questão de política, caso contrário, retornamos à ideia de que, se o papa fizer uma gritaria, as coisas se resolvem. Porque, então, outros papas também fizeram uma gritaria: Bento XVI gritava mais do que todos, mas não foi isso que mudou as coisas.

Essa ideia da inutilidade de um tribunal central também afetou o fato de que a comissão liderada por O’Malley foi recentemente fechada, por causa do fim do seu mandato, e se diz que pode até não ser renovada? Portanto, era equivocada a configuração do problema.

Eu simplesmente não acredito que o problema seja o de fazer uma inquisição romana da pedofilia, mas que os bispos sejam capazes de ser pais. Porque, caso contrário, deveriam renunciar, já que não sabem fazer o que lhes é exigido.

Se o papa falou de calúnias, isso significa que estas foram orquestradas, de algum modo. Quem seria, então, o orquestrador?

Eu não acho que ele se referia a uma orquestração das vítimas, certamente não são elas os orquestradores. Francisco usou uma expressão: quando estava na praça falando com os fiéis, ele disse que foram grupos de “esquerdistas” [zurdos]. Mas é claro que a questão da pedofilia tem uma dimensão gigantesca, que me parece ser muito pouco levada em consideração: ou seja, o fato de os homens ocidentais violentarem crianças e matarem mulheres não me parece ser um problema da Igreja, mas sim do Ocidente, em sentido vasto. Os homens deste Ocidente muito desenvolvido parecem ter, em uma parte muito pequena, mas dramaticamente enérgica, problemas dramáticos desse tipo.

No Peru, o papa também falou de feminicídio. A questão, portanto, é a da relação homem-mulher e da sua aliança, sobre a qual Francisco muitas vezes se pronuncia.

Certamente. Se alguém encontrar um único vício social que não tenha criado raízes também no clero, eu renuncio como professor. Todos os vícios sociais criaram raízes no clero: do nepotismo ao roubo, da mania de construção a qualquer outra coisa. Então, o fato de o crime de estupro de meninos e meninas – que nós, com um neologismo escorregadio, chamamos de pedofilia – existir também no clero impressiona dramaticamente, e entendemos que se enraíza naquele contexto porque é um crime que, por sua natureza, precisa de confiança e de intimidade. Mas é um crime longe de ser clerical, que deve ser perseguido sem hesitações nem medos, e sem inventar razões de Estado eclesiásticas, que seria uma verdadeira heresia, que desvia da fé cristã. Mas, ao perseguir isso, reconhecer que há casos de acusações que não são verdadeiras me parece ser uma possibilidade a ser levada em consideração, independentemente se o papa viu certo ou está errado sobre Barros.

Você pode me corrigir, professor, mas essa ideia de que todos os vícios da sociedade criam raízes também na Igreja não corre o risco de minar a sua própria credibilidade perante os fiéis, tanto na figura do sacerdote quanto na ideia da santidade da própria Igreja?

Se Deus quisesse fazer uma Igreja de anjos, mandava eles para serem padres. Se nos mandou homens, foi uma escolha do Pai eterno, portanto, o problema é dele. Isso também vale para as outras religiões, para os rabinos, os pastores, as pastoras. São seres humanos normais.

Então, não há possíveis reformas a serem implementadas para tentar combater a recorrência desses casos?

A reforma é a de pegar homens resolvidos a serem padres, porque a pedofilia não é um crime celibatário, mas masculino, praticado por celibatários, casados, hetero ou homossexuais, independentemente das condições sociais e de vida.

O tema, portanto, é o da seleção também nos seminários. Será que a crise das vocações também acarretou um certo relaxamento nas seleções dentro dos seminários?

O declínio geral das classes dirigentes não diz respeito apenas ao clero, basta olhar para a política. Não foram apenas os seminários que caíram de nível de qualidade, mas também todos os outros setores. Eu não vejo, nesse caso, uma especificidade das classes dirigentes cristãs, no declínio ético dos homens que têm o papel específico do padre. Ao contrário, vejo isso junto com o resto.

Uma tendência, portanto, de nivelamento das classes dirigentes já em curso na sociedade e de maneira abrangente.

Sim. Para a pedofilia, nós só podemos esperar que, na nossa sociedade, hoje, a denúncia desse crime seja mais fácil do que em outros contextos mais patriarcais e mais sexistas.

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